Desde a introdução da vacina conjugada contra a Haemophilus influenza tipo B (Hib) (VCHib) em programas de vacinação infantil, houve uma eliminação quase total da meningite por Hib em países de alta e baixa renda.1,2 Isso resultou da imunização de crianças e conferiu proteção direta contra a doença invasiva por Hib não apenas entre as crianças vacinadas, mas também proteção indireta a indivíduos não vacinados por meio da interrupção de transmissão da bactéria em comunidades pela vacinação direcionada a crianças.3 Após a imunização infantil com a VCHib, a Streptococcus pneumoniae emergiu como a principal causa de meningite bacteriana na maioria dos países, embora seguida da Neisseria meningitidis (32%) em alguns países, como o Brasil.4 O estudo feito por Hirose et al. nesta edição do Jornal sugere que há uma probabilidade de ainda mais mudanças no perfil epidemiológico da meningite infantil no Brasil desde a introdução da vacina pneumocócica conjugada 10‐valente‐polissacarídeo‐Proteína‐D (PCV10) no programa de vacinação pública em março de 2010.5 Com o uso do Sistema de Informações sobre Doenças de Notificação Obrigatória em casos confirmados de meningite pneumocócica no estado do Paraná, Hirose et al. documentaram uma redução de aproximadamente 60% na incidência de meningite pneumocócica e de 76% na incidência de óbito devido à meningite pneumocócica em crianças com menos de dois anos. Isso ocorreu após dois anos da introdução da PCV10 no programa de vacinação pública no Brasil, em comparação com a era antes da PCV10.
Embora essas observações sejam encorajadoras, é importante interpretar os achados no contexto das limitações e possíveis vieses inerentes a sistemas de informação passivos, incluindo a variabilidade na completude e precisão de captação de casos com o passar do tempo. Isso poderia influenciar inadvertidamente os achados decorrentes de estudos ecológicos que usam essas bases de dados administrativas, por meio da superestimação do impacto da PCV (caso a divulgação tenha sido subaproveitada após a introdução da PCV) ou da subestimação de seu efeito (caso tenha havido uma divulgação aprimorada dos casos na era pós‐PCV). Uma forma de abordar essa limitação é analisar registros de outras doenças nesses sistemas que tenham menos probabilidade de ter sido afetados pela intervenção sob investigação e que não estejam sujeitas a mudanças temporais. Nesse sentido, teria sido útil analisar as tendências na incidência de outras causas de meningite bacteriana, como a Streptococcus do Grupo B (EGB), que, embora afete principalmente crianças < três meses, deve manter‐se em grande parte inalterada.6,7 Essa análise “muda” ajudaria na verificação da estabilidade na documentação de casos de meningite bacteriana no sistema de informação. Da mesma forma, a divulgação das tendências de incidência por sorotipo vacinal e não vacinal (excluídos os sorotipos para os quais pudesse haver proteção cruzada ou que fossem conhecidos por sua variabilidade temporal) fortaleceria ainda mais a interpretação dos resultados atuais. Em contrapartida, as tendências em meningite devido a Neisseria meningitidis teriam sido menos úteis como análise “muda” das variáveis, já que está sujeita a mudanças temporais e poderia ser igualmente afetada pela introdução de vacinas desenvolvidas recentemente contra essa bactéria.
Além disso, apesar de o atual estudo detalhar a proporção de casos de meningite pneumocócica em virtude dos sorotipos da PCV10 antes da era da PCV10 (58%) e durante a era da PCV10 (46%), os resultados não foram analisados especificamente com relação às mudanças específicas do sorotipo da vacina na incidência de meningite, possivelmente em virtude de a aplicação do sorotipo ter sido feita em < 50% de casos isolados. Adicionalmente, o estudo provavelmente não tem número suficiente de casos de meningite por sorotipos individuais para determinar se houve proteção uniforme contra todos os sorotipos ou se as mudanças foram específicas em alguns sorotipos, como 1 e 5, o que poderia passar por uma flutuação natural anualizada na incidência. O Sorotipo 1, em especial, é uma grande causa de meningite pneumocócica em alguns contextos,8 que, apesar de incluído na PCV10 (e na PCV13), poderia ter diminuído rapidamente devido às flutuações naturais em sua incidência, que estava, temporária e coincidentemente, relacionada à introdução da PCV.
Assim, embora a diminuição na incidência de meningite pneumocócica, que esteve temporariamente relacionada à vacinação infantil com a PCV10 neste estudo ecológico, seja promissora, os resultados precisam ser corroborados por estudos adicionais sobre a eficácia da vacina no mesmo contexto. Esses estudos vieram recentemente do Brasil, incluindo um estudo caso‐controle multicentralizado sobre a doença pneumocócica invasiva (DPI), que incluiu casos de meningite.9 No segundo estudo, Domingues et al. relataram que a vacinação com PCV10 com o uso da série principal de três doses (aos dois, quatro e seis meses de idade) e uma dose de reforço aos 12 meses de idade foi associada a uma redução de 84% (IC de 95%: 66‐92) na DPI por sorotipo da PCV10 e também, notavelmente, a uma redução de 78% (IC de 95%: 41‐92) nos sorotipos correspondentes à vacina (6A e 19A), nos quais a reatividade imunológica cruzada foi relatada de estudos antecipados sobre imunogenicidade.10 Isso indica que a formulação da PCV10 impediu de maneira eficaz a DPI em virtude de, no mínimo, 12 sorotipos, incluindo o sorotipo 19A (EV: 82%; IC de 95%: 11‐96). O Sorotipo 19A surgiu previamente como um sorotipo importante que causava uma “doença substituta” após a introdução da vacina pneumocócica conjugada 7‐valente‐polissacarídeo‐proteína CRM197 (PCV7) em programas de vacinação de certos países de alta renda, devido, em grande parte, à expansão clonal de cepas resistentes a antibióticos pré‐existentes.11 Além disso, a expansão clonal de outros sorotipos que não PCV7, incluindo os sorotipos 1, 3, 7F, 22F e 33F, foi observada no Reino Unido após a vacinação por PCV7.12 A eficácia da PCV10 contra a DPI é corroborada, ainda, por um teste de controle randomizado em bloco de PCV10 feito na Finlândia, no qual a eficácia da vacina foi de 100% para o cronograma de dosagem 3 + 1 e de 93% para uma série básica de duas doses seguida por uma dose de reforço.13
Apesar das limitações deste estudo, os resultados são, ainda assim, compatíveis com o impacto da vacinação infantil pela PCV7 sobre a meningite por sorotipo vacinal em países de alta renda. Uma análise recente do efeito da PCV7 sobre a meningite pneumocócica em países da Europa e da América do Norte documentou reduções de meningite por sorotipo vacinal de 59% no espaço de um ano após a introdução nos EUA e de até 100% em alguns países entre as faixas etárias visadas para vacinação.14 Além disso, muitos estudos apresentaram um declínio na incidência de meningite por sorotipo vacinal entre as faixas etárias não visadas para vacinação. Nos EUA, esse declínio entre as faixas etárias não vacinadas com PCV foi ligeiramente menor (59% a 65% de redução) em comparação com o observado em crianças com menos de um ano (83% de redução) dez anos após a introdução da PCV7.15 Isso reflete certa transmissão contínua de sorotipos vacinais mesmo em países como os EUA e possivelmente um retardamento na materialização de proteção indireta com relação ao efeito direto entre faixas etárias visadas para vacinação. Da mesma forma que a VCHib, o efeito indireto da vacinação com PCV de crianças na principal faixa etária do reservatório de colonização pneumocócica e da fonte de transmissão nas comunidades está relacionado ao fato de que a vacinação reduz o risco da aquisição de colonização nasofaríngea por meio de sorotipos vacinais.16 Consequentemente, existe uma interrupção na transmissão dos sorotipos vacinais na comunidade e uma redução na aquisição desses sorotipos mesmo entre indivíduos não vacinados, o que evita, assim, que desenvolvam DPI (incluindo meningite).3 Embora o estudo de Hirose et al. não tenha analisado o efeito da vacinação com PCV10 na infância sobre a incidência de meningite pneumocócica em faixas etárias não vacinadas com a PCV, os achados de Hammitt et al. no Quênia justificam que a PCV10 (da mesma forma que a PCV7 e a PCV13) resulta na proteção indireta da comunidade contra a colonização pneumocócica (e, consequente e provavelmente, contra a doença).17
Apesar do sucesso na redução da incidência de meningite pneumocócica, ela continuou sendo a causa principal da meningite bacteriana nos EUA (58%) sete anos após a introdução da PCV7, embora tenha ficado atrás da EGB nesses < 18 anos.7 Além disso, a proporção de fatalidades por meningite pneumocócica permaneceu inalterada nos EUA e no Reino Unido durante o período de vacinação com PCV (14%‐16%),7,12,18 bem como no atual estudo, que compara os períodos antes da PCV (31%) e após a PCV (19%, p=0,25). Adicionalmente, existe ainda uma alta taxa (63%) de sequelas neurológicas em crianças sobreviventes de meningite pneumocócica, independentemente de a aquisição ocorrer devido aos sorotipos na vacina PCV7.18 Com a expectativa de reduções adicionais na meningite pneumocócica desde a transição da formulação da PCV7 para a PCV13 em muitos países, a incidência de meningite pneumocócica provavelmente diminuirá ainda mais em países em que a vacina PCV13 (ou PCV10) tiver sido amplamente implementada. Essa alteração já é observada nos EUA um ano após a transição da vacinação com PCV7 para a PCV13, com uma redução adicional de 57% observada na DPI devido aos sorotipos da PCV13 em comparação com o período do uso da PCV7.19 Entretanto, a redução da meningite pneumocócica foi inferior à redução observada na bacteremia, pneumonia e mastoidite causadas por sorotipos vacinais.19 Com a redução ainda maior da meningite pneumocócica, espera‐se que a EGB se torne agora a principal causa da meningite bacteriana nos EUA entre a população pediátrica, embora concentrada em crianças de < três meses de idade.7 Apesar de uma vacina conjugada trivalente com proteína‐polissacarídeo contra EGB estar atualmente na fase II de estudos clínicos,20 o alvo dessa vacina é a imunização de grávidas destinadas a uma crescente transferência transplacentária de anticorpos capsulares para o feto, posteriormente esperada para proteger a criança contra a meningite por EGB (estreptococos do grupo B) e outra doença invasiva por EGB.21
Apesar de a meningite pneumocócica estar entre as formas menos comuns de doença pneumocócica grave, ainda é uma doença de altas proporções de casos de fatalidade e sequelas neurológicas. As PCVs foram, agora, estabelecidas para evitar a meningite por sorotipos vacinais. Considerando a maior incidência de doença pneumocócica e o índice muito mais elevado de mortalidade relacionados à meningite pneumocócica (35%) em crianças de países de baixa renda,22 deve‐se priorizar a introdução da PCV em todos os países de baixa e média renda com bom custo‐benefício e de maneira sustentável.
FinanciamentoO autor recebeu financiamento e participou dos exames clínicos de estudos sobre a PCV; além disso, recebeu honorários por participar do comitê de palestrantes e de conselhos consultivos da GlaxoSmithKline e da Pfizer.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflitos de interesse.