A doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) é um espectro de doenças hepáticas que pode resultar em doença hepática terminal e na necessidade de transplante de fígado. A esteatose simples, ou fígado gorduroso, ocorre precocemente na DHGNA e pode progredir para esteato‐hepatite não alcoólica, caracterizada pela presença de dano hepatocelular, como inflamação lobular e balonismo celular, e pode evoluir para fibrose e cirrose com aumento do risco de carcinoma hepatocelular (CHC) em uma proporção variável de casos. A DHGNA é considerada o componente hepático da síndrome metabólica (SM),1 que também inclui obesidade, hipertensão, dislipidemia, resistência à insulina e, portanto, importantes fatores de risco cardiovasculares até mesmo em um estágio inicial.2,3
A carga global da DHGNA é paralela à prevalência de obesidade e o grau de acúmulo hepático de triglicerídeos é proporcional à gravidade de cada componente da SM.4 Com expectativa de mais de dois bilhões de indivíduos com sobrepeso/obesidade em todo o mundo até 2030, a DHGNA tem indubitavelmente se tornado a doença hepática crônica de mais destaque do século 21 em adultos e jovens.5 Durante as últimas décadas, a obesidade passou a ter um início precoce na vida, com aumento drástico na infância.6 Esse achado representa uma ameaça grave à saúde dos jovens e levanta a questão de como esse surgimento precoce de sobrepeso afetará a carga e o manejo da DHGNA mais tarde na vida. Em um estudo recente, Hagström et al.7 mostraram que o sobrepeso no fim da adolescência é uma variável preditora significativa de doença hepática grave, inclusive CHC mais tarde na vida. Os pesquisadores usaram dados de registro de mais de 1,2 milhão de homens suecos alistados para o serviço militar entre 1969 e 1996. Durante um acompanhamento de mais de 34 milhões de pessoas‐ano, foram identificados 5.281 casos de doença hepática grave, inclusive 251 casos de CHC. Foi encontrada uma associação com doença hepática grave para sobrepeso [razão de risco (RR) 1,49; intervalo de confiança (IC) de 95%, 1,35 a 1,64] e para homens obesos (RR 2,17; IC de 95%, 1,82 a 2,59). O desenvolvimento de diabetes mellitus tipo 2 (DMT2) aumentou ainda mais o risco de doença hepática grave em todas as categorias do índice de massa corporal (IMC). O estudo de Hagström et al.7 estabelece de forma definitiva que o risco de doença hepática grave relacionado à obesidade inicia precocemente na vida.
Além das complicações hepáticas, os pacientes com DHGNA também estão sujeitos a alto risco de doença cardiovascular (DCV).2 De fato, a DHGNA pode ser considerada, em adultos, bem como em crianças, uma doença multissistêmica que afeta vários órgãos extra‐hepáticos e que envolve várias doenças crônicas extra‐hepáticas, em especial DMT2, DCV e doença renal crônica.8,9
A prevalência exata da DHGNA é incerta. Vários estudos demonstraram uma prevalência de 3% a 10% em populações pediátricas em geral, que aumenta até 60‐70% em indivíduos com comorbidades metabólicas.10 É importante salientar que a prevalência da DHGNA varia amplamente, depende da área geográfica e dos métodos de diagnóstico usados.11 Os estudos de base populacional iniciais, que estimaram a prevalência da DHGNA pediátrica ao determinar as aminotransferases por ultrassonografia em vários países, indicaram prevalência de 3% a 7%.11 Em um estudo autópico, feito em crianças não selecionadas que morreram em acidentes na Califórnia, a prevalência da DHGNA histológica variou de 0,7% em crianças de 2 a 4 anos a 17,3% em indivíduos de 15 a 19 anos, porém aumentou 38% em crianças obesas.12 Em coortes de crianças de várias nacionalidades selecionadas por sobrepeso ou obesidade, a prevalência de alanina aminotransferase elevada foi maior e variou de 8% a 24%, ao passo que a prevalência de fígado brilhante variou de 1,7 a 77%.11 Uma metanálise recente que incluiu 76 populações de estudo independentes composta de jovens entre um e 19 anos levou a uma estimativa de DHGNA de 7,6% (IC de 95%, 5,5–10,3%) na população geral e 34,2% (IC de 95%, 27,8–41,2%) em clínicas de obesidade.13 Nas duas populações, houve heterogeneidade marcada (I2=98%), que foi parcialmente representada pela distribuição de sexo, diferença no IMC e etnia. A prevalência da DHGNA é maior em homens, indivíduos com adiposidade mais grave e asiáticos. Notavelmente, o uso das enzimas hepáticas para diagnosticar a DHGNA levou a uma subestimação significativa da prevalência da doença.13
O diagnóstico da DHGNA atualmente exige comprovação de esteatose, que conta com técnicas de imagem na prática clínica. Para abordar esse diagnóstico em um número grande de pacientes, a biópsia do fígado, um teste invasivo com certo risco de complicações, não é viável nem ética para ser usada como uma ferramenta de exame. Ademais, a biópsia do fígado é suscetível a viés de amostragem. Atualmente, o ultrassom é a modalidade mais comumente usada para determinar esteatose hepática, devido a seu custo relativamente baixo, disponibilidade e segurança. Contudo, o ultrassom depende de um técnico e tem sensibilidade e especificidade limitadas para avaliação de esteatose. Entre as modalidades de imagem atualmente disponíveis, a espectroscopia de ressonância magnética (ERM) é o método de RM mais direto para separar o sinal do fígado em seus componentes de água e gordura e calcular uma fração de gordura.14 Contudo, a ERM demonstra algumas limitações; é muito demorada para ser usada na prática clínica de rotina e exige um técnico qualificado para fazer o exame, processar os dados e interpretar os resultados corretamente. Devido a essas limitações, a ERM ainda não se encontra disponível em geral na prática clínica atual para avaliar e monitorar a esteatose hepática. Ao contrário da ERM, a RMI mostrou maior promessa de avaliação quantitativa da esteatose hepática em adultos14 e crianças.15,16 Diferentes métodos podem ser usados para avaliar a esteatose hepática por RMI, porém o mais usado é o de Dixon modificado, com base em sequências gradiente eco de duas fases.17 No tempo de eco dentro de fase, os sinais de água e gordura são acrescentados e, portanto, a intensidade total do sinal é maior. No tempo de eco fora de fase, os sinais de água e gordura se cancelam entre si e consequentemente a intensidade total do sinal cai. Apesar de um fígado saudável não apresentar diferença nas intensidades de sinal entre as imagens dentro de fase e fora de fase, no caso de armazenamento de gordura a intensidade do sinal do fígado diminui na imagem fora de fase.17 Esse método de imagem é confiável na ausência de inomogeneidade do campo magnético. A principal desvantagem é que a quantidade de água e gordura pode afetar seus sinais.17 Isso pode ser administrado ao se obterem novas imagens com a ponderação variável T1, por meio da aplicação de duas imagens flip angle, como alto flip angle para mostrar pequenas quantidades de gordura nos tecidos que incluem principalmente água ou baixo flip angle para revelar pequenas quantidades de água em tecidos ricos em gordura. Adicionalmente, a deposição hepática de ferro, normalmente coexistente com a esteatose hepática, causa aumento no decaimento do T2* e reduz a detecção de gordura no fígado.18 As outras variáveis de confusão de quantificação incluem sinal de T1, complexidade espectral da gordura, correntes de Foucault e viés de ruído.18 Ao abordar esses fatores de confusão, uma melhoria recente na RMI forneceu a medição da densidade de prótons da fração de gordura [(PDFF): a fração da densidade de prótons no fígado atribuível à gordura no fígado], uma propriedade inerente do tecido e uma medida direta do teor de gordura no fígado.14 A RMI‐PDFF é precisa e confiável para quantificar a esteatose hepática e foi validada com relação à biópsia do fígado em adultos18 e crianças.17 Assim, a RMI‐PDFF surge como um biomarcador útil, principalmente em pacientes para os quais a biópsia de fígado não é indicada ou é impratocável.18
Nesse cenário, Benetolo et al.19 publicaram um artigo sobre esse assunto no Jornal, descreveram a prevalência da DHGNA entre crianças e adolescentes brasileiros acompanhados em uma clínica ambulatorial de obesidade. Com o uso da RMI, eles constataram que a prevalência da DHGNA foi de 28%, menor do que a relatada em outros estudos de diferentes países, inclusive o Brasil. Com base na pouca literatura disponível, a prevalência da DHGNA na América do Sul parece ser maior do que a taxa relatada nos EUA. Especificamente, a prevalência da DHGNA (conforme avaliada por ultrassonografia) em estudos de base populacional na América do Sul foi estimada em ∼30,45% (IC de 95%, 22,74–39,4%). De fato, a maior parte dos estudos que relatam a prevalência da DHGNA na América do Sul foi feita no Brasil. Contudo, em um estudo chileno, a prevalência da DHGNA (conforme avaliado por ultrassonografia) foi estimada em 23%.10 Outro estudo, da Colômbia, que também usou ultrassonografia, relatou uma prevalência de 26,6% em homens.10 Essas taxas podem ser influenciadas por predisposição genética. Contudo, um achado importante do estudo de Benetolo et al.19 é que, entre crianças com menos de 10 anos, a prevalência da DHGNA foi de 31,8%, semelhante à encontrada naqueles com mais de 10 anos. A esteatose hepática foi associada ao sexo masculino, triglicerídeos, transaminases e acanthosis nigricans, apesar de não haver associação à resistência à insulina e SM. Houve algumas limitações ao estudo de Benetolo et al., que podem ter contribuído para a falta de associação da DHGNA à resistência à insulina. O pequeno tamanho da amostra pode causar um erro tipo 2.
Concluindo, os efeitos deletérios da obesidade sobre a saúde hepática não devem ser ignorados, principalmente durante a infância. As crianças com obesidade de longa duração devem ser examinadas para doença hepática. Quanto mais cedo o início da obesidade, maior o risco de desenvolver DHGNA. Enquanto aguardamos o desenvolvimento de terapias medicamentos eficazes para DHGNA, todos os prestadores de cuidados de saúde devem unir seus esforços, em nível populacional, para controlar e prevenir a obesidade infantil e na adolescência.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.