To study the evidence on the role of water and fluid intake in the prevention and treatment of functional intestinal constipation in children and adolescents.
Source of dataA search was carried out in the Medline database (between 1966 and 2016) for all published articles containing the following words: constipation, water, and fluids, published in Portuguese, English, and Spanish. All original articles that assessed children and adolescents were selected by title and abstract. The references of these articles were also evaluated.
Synthesis of dataA total of 1040 articles were retrieved. Of these, 24 were selected for reading. The study included 11 articles that assessed children and adolescents. The articles were divided into two categories, those that evaluated water and fluid intake as a risk factor for intestinal constipation and those that evaluated their role in the treatment of intestinal constipation. Five articles were included in the first category. The criteria for assessing fluid intake and bowel rhythm were different in each study. Three studies demonstrated an association between low fluid intake and intestinal constipation. Regarding treatment, five articles with heterogeneous methodologies were found. None of them clearly identified the favorable role of fluid intake in the treatment of intestinal constipation.
ConclusionThere are few articles on the association between fluid intake and intestinal constipation. Epidemiological evidence indicates an association between lower fluid intake and intestinal constipation. Further clinical trials and epidemiological studies that consider the international recommendations for fluid intake by children and adolescents are required.
Estudar as evidências sobre o papel do consumo de água e líquidos na prevenção e no tratamento da constipação intestinal funcional em crianças e adolescentes.
Fontes de dadosForam pesquisados na base de dados do Medline (entre 1966 e 2016) todos os artigos publicados com as seguintes palavras: constipação, água e líquidos, nos idiomas português, inglês e espanhol. Foram selecionados, pelo título e resumo, todos os artigos originais com crianças e adolescentes. As referências desses artigos também foram avaliadas.
Síntese de dadosForam encontrados 1.040 artigos. Desses, 24 foram selecionados para leitura. Foram incluídos 11 artigos que estudaram crianças e adolescentes. Os artigos foram distribuídos em duas categorias, os que avaliaram o consumo de água e líquidos como fator de risco para constipação intestinal e os que avaliaram o seu papel na terapêutica da constipação intestinal. Cinco artigos se enquadraram na primeira categoria. Os critérios para avaliar consumo de líquidos e ritmo intestinal foram diferentes em cada estudo. Três estudos demonstraram relação entre baixo consumo de líquidos e constipação intestinal. Quanto ao tratamento, foram encontrados cinco artigos com metodologias heterogêneas. Em nenhum deles foi possível identificar com clareza o papel favorável do consumo de líquidos no tratamento da constipação intestinal.
ConclusãoExistem poucos artigos sobre a relação entre consumo de líquidos e constipação intestinal. Evidências epidemiológicas indicam associação entre menor consumo de líquidos com constipação intestinal. São necessários outros ensaios clínicos e estudos epidemiológicos que levem em consideração as recomendações internacionais para consumo de líquidos por crianças e adolescentes.
Constipação intestinal é uma manifestação clínica comum na população pediátrica, mais de 90% dos casos são enquadrados nos distúrbios funcionais gastrintestinais.1–3 Assim como se observa em outros distúrbios funcionais gastrintestinais, a constipação intestinal na infância resulta da interação de fatores biológicos, alimentares e psicossociais que interferem na motilidade intestinal.4 Os principais fatores vinculados à alimentação são o consumo de água e de fibra alimentar.3–6
Conforme as diretrizes, o tratamento da constipação intestinal funcional inclui esvaziamento do fecaloma e terapia de manutenção, mediante uso de laxantes, para evitar a reimpactação fecal, treinamento de toalete e orientações para aumento da ingestão de fibras alimentares e de água.4,7–9 Entretanto, a diretriz da European Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (ESPGHAN)/North American Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (NASPGHAN), publicada em 2014, questiona a eficácia do aumento na ingestão de água na terapêutica da constipação intestinal e sugere que, de acordo com as evidências, não deve ser recomendado aumento no consumo de líquidos no tratamento da constipação intestinal funcional.10 Ao analisar as evidências que sustentam esse posicionamento, pode ser constatado que esse foi baseado em apenas um ensaio clínico publicado em 1998.11
Considerando que o maior consumo de água faz parte do tratamento da constipação intestinal funcional em outras diretrizes7–9 e na prática clínica, esse recente posicionamento motivou o presente estudo com o objetivo de estudar as evidências sobre o papel do consumo de água e líquidos na prevenção e no tratamento da constipação intestinal funcional em crianças e adolescentes.
MetodologiaUsou‐se a base de dados Medline. O período avaliado foi de janeiro de 1966 a novembro de 2016. Foi feita pesquisa dos artigos que analisassem o papel da ingestão de água e/ou líquidos no tratamento e na prevenção de constipação intestinal em crianças e adolescentes. Como estratégia, foi feita uma ampla busca com os seguintes pares de palavras: “constipation” e “water”; “constipação” e “água”; “estreñimiento” e “agua”; “constipation” e “fluid”; “constipação” e “líquidos”; “estreñimiento” e “neto”. Através da leitura do título e resumos foram selecionados todos os artigos originais que incluíam crianças e adolescentes. Não se restringiu a pesquisa para a avaliação exclusiva de ensaios clínicos controlados e aleatorizados. Nessa seleção, não foram incluídos artigos de revisão, editoriais e comentários.
Além disso, foi consultada a lista de referência dos artigos selecionados na tentativa de obter outros artigos não indexados. Os artigos selecionados foram analisados por dois autores para a extração final das informações.
ResultadosNo início da busca foram encontrados 1.040 artigos. Foram selecionados todos os artigos que estudavam a relação entre constipação intestinal e consumo de líquidos ou que usavam os líquidos como parte da terapêutica. Dessa forma, foram selecionados para leitura 26 artigos.11–36 Desses, apenas os 11 artigos11,22,24–30,32,36 que estudaram crianças e adolescentes foram incluídos nesta revisão. Após análise, os artigos foram divididos em duas categorias: os que avaliaram o consumo de água e líquidos como possível fator de risco para constipação intestinal e os que avaliaram o seu papel na terapêutica da constipação intestinal.
Dos artigos encontrados, seis avaliaram a água e/ou líquidos como possível fator de risco na constipação intestinal.22,24,25,28,30,36 Esses estudos foram feitos na Espanha,22 em Hong‐Kong,24,28 no Reino Unido,25 na Tailândia30 e na Coreia.36 Foram estudados de 84 a 1.426 indivíduos. Os critérios usados para avaliar o consumo de líquidos e o ritmo intestinal foram diferentes em cada pesquisa. Os principais resultados são apresentados na tabela 1. Quatro artigos demonstraram relação entre baixo consumo de líquidos e ocorrência de constipação intestinal.22,28,30,36 Os outros dois estudos encontraram menor consumo de líquidos nas crianças com constipação intestinal, no entanto a diferença não foi estatisticamente significante.24,25
Características dos estudos em crianças que avaliaram a água ou líquidos como fator de risco de constipação intestinal
Autores/Ano/Participantes/local | Metodologia | Principais resultados |
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Comas Vives et al., 200522 898 crianças da Espanha entre quatro meses e 15 anos (média de 6,7 anos). | Constipação intestinal foi considerada como menos de três evacuações por semana acompanhadas de dor e dificuldade. O grupo controle foi formado por crianças que fizeram consulta médica por qualquer outro motivo e que não tinham história prévia de constipação intestinal. | Consumo de líquidos (água e suco) inferior a quatro copos de água por dia foi observado em 73,4% das crianças com constipação intestinal e em 26,8% das crianças sem constipação intestinal (p<0,05). A regressão logística mostrou que em relação ao consumo de menos de quatro copos por dia, o consumo de quatro a oito copos reduzia o risco de constipação intestinal para 0,42e o consumo de mais de oito copos para 0,17. |
Lee et al., 200824 368 crianças entre três e cinco anos de Hong Kong. | Constipação intestinal foi diagnosticada com base no critério de Roma II. Crianças que tinham o hábito intestinal normal foram consideradas como grupo controle. Registro de consumo de líquidos por três dias. | O volume total de líquidos consumido no grupo com constipação intestinal (624mL) e no grupo controle (685mL) não apresentou diferença estatisticamente significante (p=0,58). |
Jennings et al., 200925 84 escolares ingleses entre sete e dez anos. | Constipação intestinal foi diagnosticada com base no critério de Roma II. O hábito intestinal foi avaliado através de um diário evacuatório de sete dias. Registro de consumo de líquidos por sete dias. | As crianças com constipação intestinal tinham menor consumo de água (média 832g) em relação às crianças sem constipação intestinal (média 925g), entretanto sem diferença estatisticamente significante. |
Chan & Chan, 201028 383 escolares entre oito e dez anos em Hong Kong. | Constipação intestinal foi diagnosticada através de uma escala de constipação intestinal. Aplicação de questionário que contemplava informações demográficas, dados clínicos e medicamentos, dieta e fatores ambientais. | Os estudantes que tinham consumo de líquidos de três a quatro copos (200mL/copo) (OR=0,12; IC 95%: 0,05‐0,34) e cinco copos ou mais (OR=0,07; IC 95%: 0,03‐0,18) apresentavam menor probabilidade a ter constipação intestinal do que os estudantes que consumiam de um a dois copos. |
Chien et al., 201130 1426 estudantes tailandeses entre dez e 18 anos | Constipação intestinal foi considerada apenas por frequência de evacuações menor do que 3 vezes na semana. Consumo de líquidos, frutas, vegetais foi avaliado por questionário. | Análise logística multivariada mostrou que o baixo consumo diário de líquidos (< 1,8 L; OR=1,2; IC 95%: 1,07–1,43), frutas (< 1 porção; OR=1,6; IC 95%: 1,42‐1,84), vegetais (< 1 porção; OR=1,4; IC 95%: 1,25–1,67) e cereais integrais (OR=1,2; IC 95%: 1,08–1,38) foi, independentemente, associado com maior risco de frequência evacuatória menor do que três vezes por semana. |
Park et al., 201636 212 crianças entre 25 e 84 meses | Constipação intestinal foi diagnosticada com base no critério de Roma III. Informações sobre hábitos alimentares foram avaliadas por questionário. | Análise logística multivariada mostrou que a ingestão de 500ml ou menos de água (OR=9,9; IC 95%: 0,9–99,5) foi um forte preditor de constipação intestinal em crianças. |
O consumo de líquidos na terapêutica da constipação intestinal foi avaliado em cinco artigos.11,26,27,29,32 Esses artigos apresentavam metodologias heterogêneas. Os estudos foram feitos nos Estados Unidos,11,26,29 na Coreia27 e na Grécia.32 Desses, apenas um constatou efeito positivo do maior consumo de líquidos no tratamento da constipação intestinal. O efeito positivo foi observado quando o tratamento incluía polietilenoglicol 4000.27 Dois artigos avaliaram o aumento do consumo de líquidos, após intervenção comportamental sem26 e com29 incentivo para consumo de líquidos, em crianças com encoprese retentiva (incontinência fecal por retenção). Em ambos os estudos foi observado aumento no consumo de líquidos. Além disso, também foi observado aumento na frequência evacuatória26 e diminuição da ocorrência de escape fecal.29 Nos demais artigos, não foi observado efeito estatisticamente significante do aumento do consumo de líquidos no tratamento da constipação intestinal (tabela 2).11,32
Características dos estudos em crianças que avaliaram o papel da água na terapêutica da constipação intestinal
Autores/Ano/Participantes/local | Metodologia | Principais resultados |
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Young et al., 199811 90 crianças americanas entre dois e 12 anos com constipação intestinal. | Após uma semana de registro do consumo de líquidos, 108 pacientes com constipação intestinal foram distribuídos em três grupos: 1. Controle, 2. Aumento do consumo de água em 50% em relação ao basal, 3. Aumento da oferta de líquido hiperosmolar (> 600 mOsm/L). Alimentação foi avaliada através de registro por três dias. Registrou‐se a frequência de evacuações e consistência de fezes. A intervenção durou duas semanas. | O estudo foi concluído por 90 pacientes. Não se observou variação estatisticamente significante em qualquer dos três grupos no fim da segunda e terceira semana de intervenção quanto a frequência de evacuações, consistência das fezes e dificuldade para evacuar. |
Kuhl et al., 200926 26 crianças americanas entre três e 11 anos com encoprese por retenção (“incontinência fecal por retenção”). | Foram feitas de cinco a seis sessões de intervenção comportamental que abordaram os temas: fisiologia da encoprese por retenção, medicação, importância da fibra alimentar e líquidos claros, treinamento de toalete e manutenção do tratamento. Recomendação de líquidos: primeira sessão, explicação da importância do consumo e orientação de ingestão ([idade+5g de fibra]x28ml [1 onça]) e a segunda sessão: orientação de ingestão de líquidos ([idade+10g de fibra]x28ml [1 onça]). Alimentação foi avaliada através de diário de alimentação. | A frequência evacuatória aumentou de 12 para 16,1 por semana, comparando a primeira e a última semana de tratamento. A média do consumo de líquidos aumentou significativamente de 480ml para 720ml, comparando a primeira com a última semana de tratamento (p ≤ 0,001). Não houve grupo controle para comparação. |
Kuhl et al., 201029 37 crianças americanas entre quatro e 12 anos com encoprese retentiva (“incontinência fecal por retenção”). | Foram comparados dois tipos de tratamento durante seis a sete semanas: 1. intervenção comportamental e 2. Intervenção comportamental mais incentivo de ingestão de líquidos, sessão 3=[idade (em anos)+5] x 28mL (1 onça)] e sessão 5=[idade (em anos)+10] x 28mL (1 onça)]. Os dados clínicos e alimentares foram obtidos por: revisão de prontuários (retrospectivos 2005 e 2007); intervenção comportamental e incentivo para o aumento do consumo de água (prospectivos 2008 e 2009). As recomendações de consumo do volume de água foram explicadas com jogos e atividades adequadas à idade. As crianças receberam uma garrafa de 450mL para auxiliar no controle do consumo de líquidos. | O consumo de líquidos foi maior no grupo que recebeu incentivo específico para aumentar o consumo, na fase intermediária do tratamento (448mL versus 224mL) e na final (532mL versus 280mL) (p ≤ 0,001) A frequência de evacuações e de episódios de escape fecal na primeira semana foi igual nos dois grupos. Quando comparados o início e o fim do tratamento, o grupo com intervenção e incentivo apresentou diminuição na ocorrência de escape fecal (p ≤ 0,05) e tendência no aumento da frequência evacuatória (p=0,08). |
Bae et al., 201027 27 crianças coreanas entre dois e 14 anos com constipação intestinal | Foram selecionados prontuários de crianças que estavam em uso de medicação (Polietilenoglicol‐4000 e lactulose) para manutenção do controle de constipação intestinal. A dosagem dos medicamentos era estável por mais de três meses e os participantes apresentaram diário de evacuações, o qual continha informações sobre a frequência evacuatória, consistência das fezes e quantidade de líquidos consumidos. A recomendação de líquidos foi baseada no peso corporal. A avaliação da frequência evacuatória e da consistência das fezes foi feita através de um sistema de pontos. | No grupo tratado com polietilenoglicol‐4000 (N=14) observou‐se maior frequência de evacuação no período de maior consumo de líquidos comparado com o período de menor consumo (medianas de 27,7 e 25,1, respectivamente, p=0,009) e menor consistência das fezes (mediana 20,0 e 15,0, respectivamente, p=0,002). No grupo tratado com lactulose (N=13), não foram observadas essas diferenças. |
Karagiozoglou‐Lampoudi et al., 201232 86 crianças gregas entre um e 11 anos com constipação intestinal de acordo com o critério da NASPGHAN (2006)7 | Participantes randomizados em dois grupos. Ambos os grupos foram tratados com administração de lactulose. Um grupo recebeu instruções escritas sobre a dieta, orientados pelo gastroenterologista, e no outro grupo uma nutricionista prescreveu dieta personalizada para sete dias, foram calculada as necessidades energéticas, de nutrientes, água e fibra alimentar. Avaliação da alimentação foi feita com o emprego de dois recordatórios de 24 horas, na primeira visita e após um mês, respectivamente. | Após um mês de tratamento observou resposta favorável (frequência evacuatória ≥ 3 vezes por semana, ausência de evacuação dolorosa e ausência de fezes duras) em ambos os grupos. O grupo que recebeu dieta personalizada apresentou aumento no consumo de energia, carboidrato, lipídeos, fibra e água, enquanto que o outro grupo apresentou aumento apenas do consumo de fibra (p=0,013). O grupo com intervenção dietética individualizada apresentou maior aumento no consumo de fibra alimentar (0,83g/Kg/dia versus 0,24g/Kg/dia; p=0,001) e de água (29,9mL/Kg/dia versus 1,89mL/kg/dia; p<0,001) comparado com o outro. |
NASPGHAN, North American Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition.
Esta revisão revelou que são poucos os estudos que avaliaram a baixo consumo de líquidos como fator associado à constipação intestinal ou sobre o papel dos líquidos na terapêutica da constipação intestinal. Dos 11 artigos encontrados, seis22,24,25,28,30,36 analisaram associação entre consumo de água e líquidos e constipação intestinal e cinco seu papel no tratamento da constipação intestinal.11,26,27,29,32
Associação entre constipação intestinal e menor consumo de líquidos em amostras da população geral indica a possibilidade de existir relação causal entre as duas variáveis. Nesse sentido, em quatro22,28,30,36 dos seis22,24,25,28,30,36 artigos foi encontrada associação estatisticamente significante entre baixa ingestão de líquidos e evidência de constipação intestinal. Nos outros dois artigos,24,25 o consumo de líquidos pelas crianças com constipação intestinal foi menor. No entanto, a diferença não foi estatisticamente significante. Esses artigos são heterogêneos e difíceis de comparar em função da maneira como as variáveis foram quantificadas e dos métodos usados para estudar a relação entre as variáveis.
Em quatro artigos22,28,30,36 avaliou‐se a razão de chances (odds ratio) para analisar a associação entre menor consumo de líquidos e maior probabilidade de constipação intestinal. Na Tailândia, consumo de líquido menor do que 1.800mL/dia entre 10 e 18 anos associou‐se com aumento em 20% no risco de ocorrência de menos de três evacuações por semana.30 Por sua vez, em crianças espanholas, constatou‐se que, em relação ao consumo inferior a quatro copos por dia (800mL), foi observada diminuição de 2,5 vezes na probabilidade de constipação intestinal. Quando o consumo de líquidos foi de quatro a oito copos por dia, a diminuição foi de 5,8 vezes.22 Em Hong Kong, considerou‐se como ponto de corte o consumo de até dois copos por dia (400mL) como referencial. Constatou‐se que o consumo de 600 a 800mL por dia e mais de 1.000mL associava‐se com diminuição da chance de constipação intestinal em oito a 14 vezes, respectivamente.28 Na Coreia, consumo menor do que 500mL/dia entre os 25 e 84 meses de idade apresentou associação com maior risco de constipação intestinal.36 Como pode ser constatado na tabela 1, foram usados critérios diferentes para avaliar o hábito intestinal, mas todos os estudos indicaram relação estatisticamente significante entre menor consumo de água e indícios de constipação intestinal. A força das associações expressas pela razão de chances apresentou grande variabilidade. Os únicos dois artigos23,24 que não revelaram associação estatisticamente significante entre constipação intestinal e menor consumo de líquidos usaram o critério de Roma II37 para caracterização de constipação intestinal. Nesses artigos, é possível especular que o critério de Roma II foi muito rigoroso para caracterizar constipação intestinal nas amostras que não foram formadas em ambulatórios especializados. Ou seja, o critério de Roma II pode ser considerado mais apropriado para pacientes com constipação intestinal grave atendidos em serviços especializados. No entanto, tem menor positividade em inquéritos feitos com amostras da população geral.3 Apesar do consumo de líquido pelas crianças com constipação intestinal ter sido inferior, o estudo estatístico não atingiu significância (tabela 1). Esses dois artigos24,25 foram os que avaliaram menor número de crianças em relação aos demais,22,28,30,36 o que pode ter influenciado na falta de associação entre consumo de água e constipação intestinal. Assim, com base nos estudos que expressaram seus resultados como razão de chances, apesar da grande variabilidade na caracterização dos desfechos, todos apontaram para a associação entre menor consumo de líquidos e indícios sugestivos de constipação intestinal. Quando a mesma temática foi analisada em adultos e idosos foi observado que as informações disponíveis também são limitadas. Em adultos, cinco dos seis artigos publicados demonstraram associação entre baixo consumo de líquidos e constipação intestinal.14,23,31,33,34 Em idosos foram encontrados seis artigos,13,15,17,19,21,35 cinco15,17,19,21,35 não identificaram relação entre consumo de líquidos e constipação intestinal. Portanto, tanto em crianças como em adultos predominam as evidências que indicam associação entre menor consumo de líquidos e constipação intestinal. Do ponto de vista experimental, foi demonstrado que a restrição de líquidos para ratos determina menor ingestão de ração e eliminação de menor quantidade de fezes. Quando foi controlado o efeito da diminuição da ingestão de ração, foi confirmado que a restrição do consumo de água associa‐se com redução no peso fecal.38 Em adultos humanos saudáveis foi observado que a privação de líquidos diminui a frequência de evacuações e o peso das fezes.14
Nesses artigos com amostras da população geral não foi considerado se os indivíduos estudados apresentavam consumo de líquidos na faixa recomendada internacionalmente. Existem duas recomendações para o consumo de líquidos, uma para a América do Norte (Dietary References Intake)39 e outra para a Europa (Comunidade Europeia).40 No Brasil sugere‐se que sejam seguidas as recomendações norte‐americanas.41 Deve ser destacado que ambas as recomendações levam em consideração não somente a quantidade de água consumida na forma de líquidos (água, suco e refrigerantes), como também a água contida nos alimentos. Os estudos pediátricos compilados nesta revisão não consideraram a água presente nos alimentos, apenas na forma de líquidos. Assim, no futuro, devem ser planejados estudos epidemiológicos que considerem não somente o volume e a qualidade dos líquidos consumidos como também a estimativa de água nos alimentos. Esses valores deverão ser relacionados com as recomendações existentes para consumo de líquidos pela população pediátrica.
A diretriz da NASPGHAN/ESPGHAN10 afirma, conforme a opinião de especialistas, que, pela falta de evidências científicas, o aumento do consumo de líquidos não deve fazer parte programa terapêutico da constipação intestinal funcional. Mencionam apenas o artigo publicado em 1998 por Young et al.11 (tabela 2). Esse ensaio clínico aleatorizado comparou duas intervenções com aumento de líquido com um grupo que não recebeu esse tipo de recomendação. O projeto remete a uma simples reflexão: qual seria o placebo que poderia ser usado neste estudo para que o mesmo fosse duplo‐cego? Assim, esse ensaio clínico que envolveu 90 pacientes não revelou diferença na resposta clínica às três intervenções relativas à maior consumo de líquidos. O artigo não informa se os pacientes foram tratados simultaneamente com outras condutas, o que poderia mascarar algum papel dos líquidos na evolução da constipação intestinal. Os outros quatro artigos26,27,29,32 não são ensaios clínicos prospectivos. Os artigos de Kuhl et al.26,29 avaliaram o efeito de uma orientação padronizada para aumentar o consumo de líquidos como parte do tratamento da encoprese por retenção (incontinência fecal por retenção). Aparentemente, os autores consideram o pressuposto de que aumentar o consumo de água é uma medida que faz parte do tratamento da constipação intestinal. No primeiro foi evidenciado que os pacientes apresentaram aumento do consumo de líquidos e da frequência de evacuações no fim do acompanhamento. Entretanto, como não havia grupo controle, não foi possível atribuir o efeito ou parte dele ao aumento do consumo de líquidos.26 No segundo artigo,29 um grupo foi tratado prospectivamente e comparado com dados do prontuário de outros pacientes tratados previamente. Foi constatado que a intervenção proporcionou maior consumo de líquidos, entretanto não houve melhor resposta clínica. Esses dois estudos com delineamento não destinado especificamente a avaliar a eficácia do consumo de líquidos no tratamento da constipação intestinal não ofereceram evidências sobre a eficácia dos líquidos no controle da constipação intestinal associada com incontinência fecal por retenção. Outro artigo sobre esse assunto é um ensaio clínico randomizado.32 Foi feito para comparar dois tipos de tratamento: 1. dieta padronizada e 2. intervenção dietética personalizada. Observou‐se que o grupo que recebeu intervenção dietética personalizada apresentou maior aumento no consumo de água em relação ao grupo com dieta padronizada. No entanto, ambos os grupos apresentaram melhora similar na frequência evacuatória, dificuldade e dor para evacuar. Ambos os grupos receberam lactulose durante o período de observação.32 Não foi informada a dose de lactulose usada e se permaneceu igual nos dois grupos durante o período de acompanhamento. O artigo mais recente encontrado na busca da literatura foi feito na Coreia.36 Foram avaliados, de forma retrospectiva, prontuários de pacientes com constipação intestinal que se encontravam estáveis havia pelo menos dois meses e que continham o registro de consumo de líquidos, consistência das fezes e frequência de evacuações. No artigo não é definido o que era considerado maior e menor consumo de líquidos. O artigo não especifica, também, como foram calculados os escores de consistência e frequência de evacuações a partir das informações nos prontuários. As informações de cada paciente foram estudadas em dois momentos. Os resultados mostram que houve associação entre maior frequência de evacuações e menor consistência das fezes com o uso de polietilenoglicol 4000 nos períodos com maior consumo de líquidos. No entanto, em função das suas limitações pode ser considerada discutível a relevância clínica das diferenças observada. Portanto, a análise desses artigos para avaliar o papel dos líquidos no tratamento da constipação intestinal não mostrou resultado consistente.
Em relação ao papel da ingestão de água na terapêutica da constipação intestinal, em adultos e idosos, foram encontrados três estudos, um em adultos18 e dois em idosos.12,16 Na pesquisa feita em adultos, foi observado que pacientes com constipação intestinal que consumiam dois litros de água apresentavam aumento estatisticamente significante na frequência evacuatória e diminuição no uso do laxante. Em idosos, foi encontrada associação entre maior consumo de líquidos e fibra alimentar com melhora da constipação intestinal,12 além de menor necessidade de laxantes.16 Entretanto, nessa situação fica difícil discriminar se o efeito positivo foi devido ao maior consumo e líquidos ou de fibra alimentar ou, ainda, devido ao efeito sinérgico das duas intervenções.
Assim, a partir da análise da literatura, foi constatado que são poucos os estudos que avaliaram a relação entre o consumo de água e/ou líquidos e constipação intestinal. Além disso, esses são heterogêneos e difíceis de comparar. Os resultados dos estudos com amostra da população geral sugerem que o menor consumo de água e/ou líquidos está associado com constipação intestinal. Em relação ao papel da água na terapêutica da constipação intestinal, os poucos artigos existentes não mostraram vantagem do maior consumo de líquidos na terapêutica. Por outro lado, os estudos com amostras da população geral evidenciam efeito favorável do aumento do consumo de líquidos no sentido de proporcionar melhoria no hábito intestinal. Existem evidências também de que crianças e adolescentes normais não atingem as recomendações de consumo diário de líquidos. Nesse contexto, considera‐se que o consumo adequado de líquidos e fibra alimentar faz parte do esperado para um hábito alimentar saudável. Essas medidas podem constituir uma medida preventiva e uma terapêutica inicial para os casos de constipação intestinal leve. Por outro lado, os pacientes mais graves com fecaloma e incontinência fecal devem fazer programa terapêutico que envolve medidas terapêuticas para desimpactação e medicamentos para assegurar que o ritmo intestinal se normalize. Para esses pacientes, apesar de não existirem evidências, é importante avaliar o consumo de líquido. Caso necessário deve ser orientado aumento no consumo de líquidos para que o paciente atinja ao menos o que é recomendado internacionalmente.
Desse modo, conclui‐se que existem poucos artigos que estudaram a relação entre consumo de líquidos e constipação intestinal em crianças e adolescentes. Os resultados sugerem que o menor consumo de água se associa com maior risco de constipação intestinal. Assim, pode‐se especular, com base nos estudos feitos com amostras da comunidade, que maior consumo de água pode ser benéfico na prevenção e no tratamento da constipação intestinal leve. Novos estudos são necessários para melhor compreensão do papel da água e líquidos na etiologia e na terapêutica da constipação intestinal na criança e no adolescente.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
Como citar este artigo: Boilesen SN, Tahan S, Dias FC, Melli LC, Morais MB. Water and fluid intake in the prevention and treatment of functional constipation in children and adolescents: is there evidence? J Pediatr (Rio J). 2017;93:320–7.
Trabalho desenvolvido na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Escola Paulista de Medicina (EPM), Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica, São Paulo, SP, Brasil.