To evaluate the contribution of ultra‐processed food (UPF) on the dietary consumption of children treated at a Basic Health Unit and the associated factors.
MethodCross‐sectional study carried out with a convenience sample of 204 children, aged 2–10 years old, in Southern Brazil. Children's food intake was assessed using a 24‐h recall questionnaire. Food items were classified as minimally processed, processed for culinary use, and ultra‐processed. A semi‐structured questionnaire was applied to collect socio‐demographic and anthropometric variables. Overweight in children was classified using a Z score >2 for children younger than 5 and Z score >+1 for those aged between 5 and 10 years, using the body mass index for age.
ResultsOverweight frequency was 34% (95% CI: 28–41%). Mean energy consumption was 1672.3kcal/day, with 47% (95% CI: 45–49%) coming from ultra‐processed food. In the multiple linear regression model, maternal education (r=0.23; p=0.001) and child age (r=0.40; p<0.001) were factors associated with a greater percentage of UPF in the diet (r=0.42; p<0.001). Additionally, a statistically significant trend for higher UPF consumption was observed when data were stratified by child age and maternal educational level (p<0.001).
ConclusionsThe contribution of UPF is significant in children's diets and age appears to be an important factor for the consumption of such products.
Avaliar a contribuição dos alimentos ultraprocessados no consumo alimentar de crianças pertencentes à área de abrangência de uma unidade básica de saúde e os fatores associados.
MétodoEstudo transversal com amostra de conveniência de 204 crianças, entre dois a 10 anos, no Sul do Brasil. O consumo alimentar das crianças foi obtido por meio do Recordatório Alimentar de 24 horas e, posteriormente, os alimentos foram classificados em minimamente processados, processados para culinária e ultraprocessados. Um questionário semiestruturado foi aplicado para a coleta das variáveis sociodemográficas e antropométricas. O excesso de peso das crianças foi definido por meio do escore Z>2 para menores de cinco anos e Z>+1 para entre cinco e 10 anos segundo o Índice de Massa Corporal para idade.
ResultadosA frequência de excesso de peso foi de 34% (IC95%: 28% a 41%). O consumo médio de energia foi de 1.672,3kcal/dia, 47% (IC95%: 45% a 49%) provenientes dos ultraprocessados. No modelo de regressão linear múltipla, a escolaridade materna (r=0,23; p=0,001) e a idade da criança (r=0,40; p<0,001) foram associados à maior contribuição percentual dos ultraprocessados na alimentação (R=0,42; p<0,001). Adicionalmente foi observada uma tendência linear significativa para maior consumo de ultraprocessados quando os dados foram estratificados pela idade da criança e nível de escolaridade materna (p<0,001).
ConclusõesA contribuição dos ultraprocessados é expressiva na alimentação infantil e a idade da criança mostrou‐se como fator associado mais importante para o consumo desses produtos.
A prevalência de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) associadas à alimentação tem crescido em ritmo acelerado e chamado atenção para as taxas na população infantil.1 De acordo com a Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde, de 2006, foi registrada uma prevalência nacional de sobrepeso de 6,6% em crianças de até cinco anos.2 Já os resultados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) mostraram que a prevalência de excesso de peso variou de 25% a 40% em crianças entre cinco e nove anos.3
As evidências científicas apontam que o aumento nas taxas de excesso de peso e DCNT é decorrente, entre outros fatores, da inversão dos padrões alimentares.4 Essa inversão caracteriza‐ se pela substituição cada vez maior da alimentação tradicional por alimentos e bebidas altamente processados e prontos para consumo.5
Em geral, esses produtos ultraprocessados apresentam alta densidade energética, excesso de gorduras totais e saturadas, maiores concentrações de açúcar e/ou sódio e baixo teor de fibras.5‐7 Ainda, têm por característica, devido a sua composição e a seu processamento, ser hiperpalatáveis, com maior durabilidade e prontos para o consumo. Dessa forma, têm uma ampla vantagem comercial quando comparados com os alimentos in natura ou minimamente processados, além de apresentar menor custo.5
Os dados da POF indicaram que a alimentação das crianças brasileiras é deficiente em frutas, legumes e verduras. Ainda, apresenta excesso de consumo de biscoitos, embutidos, bebidas com adição de açúcar, sanduíches e salgados.8
Dentre os fatores que estão condicionados à qualidade da alimentação das crianças, a renda e a escolaridade dos pais merecem destaque. As pesquisas sugerem que uma alimentação de qualidade está diretamente relacionada ao maior nível de escolaridade e à maior renda.9,10
Há evidências entre excesso de peso na infância e desenvolvimento precoce de diabetes mellitus, doenças cardiovasculares, dislipidemias e hipertensão na vida adulta.11 Assim, a infância é um período crucial para a prevenção das DCNT por meio do incentivo e da adoção de hábitos saudáveis que tendem a permanecer durante a fase adulta.12 Os pais exercem grande influência no desenvolvimento desses hábitos pela criança e devem ser exemplos positivos em relação à alimentação saudável associada à prática de exercício físico.13
Portanto, o objetivo do presente estudo foi avaliar a contribuição dos alimentos ultraprocessados no consumo alimentar de crianças pertencentes à área de abrangência de uma unidade básica de saúde e os fatores associados.
MétodosFez‐se um estudo transversal descritivo, com uma amostra de conveniência de crianças de dois a 10 anos que procuram atendimento com consultas previamente agendadas em uma unidade básica de saúde (UBS) de Porto Alegre, RS.
O presente trabalho faz parte de um estudo maior intitulado “Obesidade e fatores de risco para doenças crônicas em crianças atendidas na Estratégia de Saúde da Família em uma unidade básica de saúde de Porto Alegre, RS.” Em termos de amostra, foram incluídas 204 crianças, o que forneceu a este estudo um poder estatístico de 90% para testar uma diferença de médias com magnitude de efeito (E/S) ≥0,5 desvio padrão para α= 0,05. Em dados categóricos, esse tamanho amostral forneceu um poder de 80% na comparação de proporções com diferenças iguais ou maiores do que 20% vs. 40% para α = 0,05.
Foi incluída no estudo apenas uma criança por núcleo familiar (mesma mãe ou responsável, com vínculo biológico ou não). Quando mais de uma criança dessa faixa etária e do mesmo núcleo familiar compareceu à UBS, o responsável decidia qual participaria do estudo. Os critérios de exclusão foram: incapacidade física para tirar as medidas antropométricas, distúrbios do trato gastrointestinal ou orofaríngeo que acarretassem alterações do consumo alimentar e crianças com desordem do espectro autista.
A equipe de trabalho foi composta por nutricionistas e acadêmicas de nutrição previamente treinadas e a coleta dos dados ocorreu de setembro de 2012 a julho de 2013. As medidas antropométricas foram aferidas em duplicata com técnicas padronizadas conforme a Organização Mundial da Saúde.14 O peso (kg) foi obtido com balança digital com capacidade para 200kg e precisão de 50g e para aferir a altura (cm) foi usado estadiômetro fixo à parede. Foram consideradas com excesso de peso (sobrepeso e obesidade) as crianças menores de cinco anos com indicador de escore Z>2 e as com cinco a 10 anos com indicador de escore Z>+1 de acordo com o IMC para idade.15 Os dados antropométricos foram analisados com os softwares Anthro® e Anthro Plus® (Anthro®, WHO AnthroPlus, 2007, EUA).
Para avaliar o consumo alimentar, foram usados dois recordatórios alimentares de 24 horas (R24h). O primeiro foi feito por meio de entrevista direta com a mãe ou responsável. As perguntas referiram‐se à alimentação da criança no dia anterior acerca do tipo, modo de preparo, da marca comercial, das medidas usadas e quantidades consumidas. Para minimizar o viés de memória e fortalecer a qualidade da informação sobre o tamanho das porções consumidas, foi usado um álbum de fotografias de utensílios e alimentos.16 Já o segundo R24h foi obtido via contato telefônico com intervalo de uma a oito semanas com a mesma pessoa que respondeu o primeiro e não correspondente ao mesmo dia da semana do anterior, para, posteriormente, estimar a média de consumo.
A conversão dos alimentos relatados em medidas caseiras para gramas foi feita com base na padronização de Pinheiro.17 E a análise dos nutrientes foi feita de acordo com a Tabela Brasileira de Composição dos Alimentos (TACO)18 e também a consulta de rótulos daqueles alimentos não constantes na tabela. Posteriormente, os alimentos foram agrupados de acordo com a proposta de Monteiro et al.5 em in natura ou minimamente processados (G1), processados para culinária (G2) e ultraprocessados (G3).
As variáveis estudadas foram: 1. Criança: sexo, idade, peso, altura e consumo alimentar (calorias, proteínas, lipídios, carboidratos, fibras, sódio, gordura saturada, gordura monoinsaturada, gordura poli‐insaturada, gordura trans); 2. Mãe: idade e escolaridade; 3. Núcleo familiar: renda per capita.
Para a análise das características associadas à contribuição dos alimentos segundo o grau de processamento na alimentação das crianças, foram usados os macronutrientes (carboidratos, lipídeos e proteínas).
A escolaridade materna foi definida de acordo com a quantidade de anos de estudo. Essa variável foi dicotomizada em: < 11 anos (até ensino médio incompleto) ou ≥ 11 anos (ensino médio completo e/ou superior). Já a renda familiar per capita foi avaliada em reais (R$) e, posteriormente, categorizada como R$ < 500 e R$ ≥ 500.
Para as análises, as crianças foram estratificadas em dois grupos: pré‐escolares (dois a seis anos) e escolares (sete a 10 anos). O protocolo de estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre sob o n° 120124.
Os dados quantitativos foram inicialmente descritos em média e desvio padrão. Na presença de assimetria, a mediana e a amplitude interquartil (P25; P75) foram usadas. A normalidade das distribuições foi testada por meio do teste de Shapiro‐Wilk. Dados categóricos foram sumarizados com frequências absolutas e relativas. Para apresentar a tendência central das variáveis da contribuição absoluta e percentual da ingestão dos nutrientes de acordo com o grau de processamento dos alimentos, foi usada média (erro padrão).
Para a comparação das variáveis quantitativas foi usado o teste t de Student e na comparação das proporções o teste do qui‐quadrado. Em casos de assimetria, foi empregado o teste de Mann‐Whitney.
Para avaliar a associação independente dos fatores em estudo que apresentaram significância na análise univariada foi feita uma regressão linear múltipla com a contribuição percentual de alimentos ultraprocessados (AUP) como variável dependente.
Além disso, foi feita uma análise estratificada pela escolaridade da mãe e idade da criança. A avaliação da tendência linear dessa estratificação em relação ao percentual de AUP foi por meio da regressão linear simples e para o excesso de peso por meio do qui‐quadrado de tendência linear.
Considerou‐se como nível de significância estatística a probabilidade inferior a 5% em todos os testes estabelecidos. Os dados foram duplamente digitados com o software EpiData® (Epi Info, versão 6, Statistics Program for Public Health, 1995, EUA) com checagem de consistência. As análises estatísticas foram feitas no software SPSS® (IBM SPSS Statistics para Windows, versão 20.0, 2011, EUA).
ResultadosA amostra final foi composta por 204 crianças, com uma perda de cinco, devido ao não preenchimento do R24h. Quanto às características da amostra, foi registrado um número maior de crianças em idade escolar. Com relação ao sexo, as proporções foram idênticas. A frequência de excesso de peso na amostra avaliada foi de 34% (IC95%: 28% a 41%) (tabela 1).
Distribuição da amostra segundo as características sociodemográficas e antropométricas
Características | Grupo etário | |||
---|---|---|---|---|
Total | Pré‐escolar | Escolar | p | |
Sexo, n (%) (n=204) | ||||
Feminino | 102 (50,0) | 66 (55,0) | 36 (43,4) | 0,12 |
Idade, anos (n=204) | 5,9±2,5 | 4,1±1,4 | 8,5±1,1 | ‐ |
Peso, kg (n=202) | 26,4±10,8 | 20,2±5,6 | 35,2±10,4 | ‐ |
Altura, cm (n=199) | 199,3±16,5 | 107,9±10,7 | 134,9±8,4 | ‐ |
Estado nutricional, n (%) (n=199) | ||||
Eutrofia | 131 (66,0) | 81 (70,0) | 50 (60,2) | 0,16 |
Excesso de peso | 68 (34,0) | 35 (30,0) | 33 (39,8) | |
Idade materna, anos (n=187) | 34,8±8,1 | 33,3±8,3 | 37,1±7,2 | 0,001 |
Escolaridade materna n (%) (n=184) | ||||
< 11 anos de estudo | 66 (36,0) | 32 (29,0) | 34 (46,0) | 0,01 |
≥ 11 anos de estudo | 118 (64,0) | 78 (71,0) | 40 (54,0) | |
Renda per capita, R$ (n=182) | 545,6 (339,0; 757,5) | 533,3 (349,9; 757,50) | 570, 8 (302,7; 783,7) | 0,51 |
Os resultados são expressos em média±dp, frequências (%) e mediana (P25; P75). Teste t de Student; qui‐quadrado; p<0,05.
Quanto à ingestão de energia (tabela 2), em média as crianças consumiram 1.672,3kcal/dia e 47% (IC95%: 45% a 49%) foram derivadas do G3. A contribuição dos alimentos do G1 se destaca na disponibilidade para o consumo de nutrientes essenciais, como proteína, fibra e gordura monoinsaturada. Já no G3, verificamos uma contribuição mais expressiva de lipídios, carboidratos, sódio e gordura trans.
Contribuição absoluta e percentual na ingestão diária de nutrientes de acordo com o grau de processamento dos alimentos
Total (n=204) | G1 Média (EP) | G2 Média (EP) | G3 Média (EP) | |
---|---|---|---|---|
Energia (kcal/d) | ||||
Absoluto | 1672,3 (41,4) | 761,8 (21,3) | 96,9 (5,8) | 813,6 (31,0) |
Percentual | 100 | 47,0 (1,0) | 6,0 (0,4) | 47,0 (1,1) |
Proteína (g/d) | ||||
Absoluto | 68 (2,1) | 48,1 (1,6) | 0,4 (0,1) | 19,6 (1,0) |
Percentual | 100 | 70,6 (1,1) | 0,6 (0,1) | 28,8 (1,1) |
Lipídeos (g/d) | ||||
Absoluto | 56,2 (1,8) | 21,5 (0,8) | 6,3 (0,3) | 28,5 (1,5) |
Percentual | 100 | 40,6 (1,3) | 12,0 (0,6) | 47,4 (1,4) |
Carboidrato (g/d) | ||||
Absoluto | 206,5 (5,8) | 80,3 (3,1) | 10,2 (1,2) | 115,9 (4,5) |
Percentual | 100 | 39,7 (1,2) | 4,9 (0,5) | 55,3 (1,3) |
Fibra (g/d) | ||||
Absoluto | 14,6 (0,5) | 10,2 (0,4) | 0,1 (0,0) | 4,3 (0,3) |
Percentual | 100 | 68,7 (1,3) | 0,7 (0,1) | 30,6 (1,3) |
Sódio (mg/d) | ||||
Absoluto | 2215,7 (71,2) | 348, 3 (20,1) | 721,7 (24,8) | 1147,6 (58,7) |
Percentual | 100 | 17,3 (0,8) | 34,9 (1,1) | 47,8 (1,4) |
Gordura saturada (g/d) | ||||
Absoluto | 20,7 (0,7) | 9,5 (0,4) | 1,1 (0,1) | 10,1 (0,5) |
Percentual | 100 | 47,4 (1,4) | 5,6 (0,3) | 47,0 (1,4) |
Gordura monoinsaturada (g/d) | ||||
Absoluto | 13,8 (0,5) | 6,9 (0,3) | 1,5 (0,1) | 5,4 (0,3) |
Percentual | 100 | 50,9 (1,4) | 12,2 (0,6) | 36,9 (1,5) |
Godura poli‐insaturada (g/d) | ||||
Absoluto | 9,5 (0,3) | 2,5 (0,1) | 3,6 (0,2) | 3,4 (0,2) |
Percentual | 100 | 28,2 (1,3) | 38,1 (1,6) | 33,7 (1,7) |
Gordura trans (g/d) | ||||
Absoluto | 1,4 (0,1) | 0,3 (0,0) | 0,0 (0,0) | 1,0 (0,1) |
Percentual | 100 | 29,5 (1,8) | 5,2 (0,5) | 65,3 (1,9) |
G1, alimentos in natura ou minimamente processados; G2, ingredientes culinários; G3, alimentos ultraprocessados; EP, erro padrão.
Quando analisados os dados acerca da contribuição percentual do consumo diário de macronutrientes de acordo com o grau de processamento dos alimentos (tabela 3), observou‐se que a ingestão de alimentos provenientes do G1 foi inversamente proporcional ao aumento da idade da criança (p<0,001). Em contrapartida, a proporção de consumo do G3 tem uma relação direta à medida que a idade da criança aumenta (p<0,001). Em relação às variáveis sexo, estado nutricional e renda per capita, não foram observadas diferenças significativas na contribuição dos diferentes grupos.
Características associadas à contribuição percentual no consumo de macronutrientes de acordo com o grau de processamento dos alimentos
n | G1a | G2b | G3a | |
---|---|---|---|---|
Grupo etário | ||||
Pré‐escolar | 121 | 50,9 (1,2) | 5,5 (0,6) | 43,7 (1,4) |
Escolar | 83 | 40,6 (1,6) | 4,7 (0,5) | 54,7 (1,7) |
Valor p | < 0,001 | 0,60 | < 0,001 | |
Sexo | ||||
Masculino | 102 | 45,7 (1,5) | 5,1 (0,6) | 49,2 (1,6) |
Feminino | 102 | 47,7 (1,4) | 5,2 (0,5) | 47,1 (1,5) |
Valor p | 0,33 | 0,65 | 0,36 | |
Estado nutricional, IMC/idade | ||||
Eutrofia | 131 | 47,0 (1,3) | 4,8 (0,4) | 48,2 (1,4) |
Excesso de peso | 68 | 45,2 (1,7) | 5,8 (0,8) | 49,0 (2,0) |
Valor p | 0,41 | 0,55 | 0,73 | |
Escolaridade materna, | ||||
< 11 anos de estudo | 66 | 49,4 (1,8) | 5,8 (0,8) | 44,8 (1,9) |
≥ 11 anos de estudo | 118 | 45,5 (1,4) | 4,7 (0,5) | 49,8 (1,5) |
Valor p | 0,09 | 0,11 | 0,04 | |
Renda per capita, R$ | ||||
< 500 | 77 | 46,8 (1,6) | 5,3 (0,6) | 48,0 (1,7) |
≥ 500 | 105 | 46,9 (1,5) | 4,7 (0,5) | 48,4 (1,6) |
Valor p | 0,95 | 0,05 | 0,85 |
G1, alimentos in natura ou minimamente processados; G2, ingredientes culinários; G3, alimentos ultraprocessados; IMC, índice de massa corporal. Os resultados são expressos em média (erro padrão).
p<0,05.
Ao comparar o percentual de consumo de macronutrientes das crianças e a escolaridade materna, foi observado que as crianças filhas de mães com escolaridade inferior a 11 anos tenderam a consumir mais alimentos do G1 (p=0,09). Enquanto que aquelas filhas de mães com escolaridade ≥ 11 anos têm maior contribuição do G3 na alimentação (p=0,04).
A partir do modelo de regressão linear múltipla, com o percentual de contribuição do G3 como variável dependente, os fatores escolaridade materna (r=0,23; p=0,001) e idade da criança (r=0,40; p<0,001) apresentaram uma correlação múltipla moderada e foram fatores significantes para maior contribuição do G3 na alimentação das crianças (R= 0,42; p < 0,001).
Adicionalmente, foi observado um crescimento no consumo de AUP quando os dados foram estratificados pela escolaridade materna e pela idade da criança. Esse achado atingiu significância estatística pelo teste de tendência linear (p<0,001). O excesso de peso também aumentou na comparação dos grupos extremos nessa estratificação (18 vs. 38%). No entanto, na análise de tendência linear o crescimento atingiu significância limítrofe (p=0,079).
DiscussãoCom base nos resultados, foi possível observar que há uma taxa elevada de excesso de peso nas crianças estudadas, o que chama atenção para esse agravo nutricional nessa faixa etária. O crescente aumento nos índices de sobrepeso e obesidade ainda na infância tem sido relatado na literatura científica e relacionado como importante preditor de obesidade e desenvolvimento de DCNT na vida adulta.19,20
A frequência de excesso de peso encontrada neste trabalho acompanha o observado no Brasil. Valores semelhantes foram verificados em um levantamento de base escolar em Itajaí, SC, cuja frequência observada foi de 30% em crianças de seis a 11 anos.9 Os resultados de um estudo feito em áreas de abrangência das unidades de saúde em Colombo, PR, indicaram menores frequências, 12% das crianças entre dois e cinco anos tinham excesso de peso.21
Nesta pesquisa, a contribuição calórica proveniente do G3 foi superior à encontrada para a população brasileira, estimada em 28%.6 Já para a população do Canadá, esse valor se torna mais expressivo ainda, representa 61% da energia diária.7 No entanto, nenhuma das pesquisas citadas avaliou exclusivamente crianças como o presente estudo.
Como observado (tabela 2), a contribuição dos carboidratos e lipídeos na alimentação das crianças foi mais expressiva no G3. Esse resultado reforça os achados de maior ingestão de alimentos ricos em gorduras e açúcares, como biscoitos recheados, produtos de panificação, doces e refrigerantes pelo público infantil.22
Os resultados deste estudo também se assemelham aos de outras pesquisas. No Canadá, uma pesquisa comparou uma cesta básica composta por alimentos do G1 mais do G2 e outra apenas com os do G3. A cesta que não continha os ultraprocessados apresentou maior teor de proteína (19 vs. 10%) e fibra (14,8 vs. 6,8g), menor quantidade de gordura total (33,8 vs. 39,3%), açúcares livres (3,8 vs. 18,6%) e sódio (3,1 vs. 3,8g).7 As pesquisas brasileiras indicam achados semelhantes em relação a esses nutrientes.5,23
Outro aspecto desfavorável dos AUP é serem ricos em sódio. A ingestão de sódio em excesso está associada ao desenvolvimento de hipertensão arterial.24 A alteração da pressão arterial na infância tem uma associação com esse problema na vida adulta.25
Ainda cabe salientar que o sal usado na preparação dos alimentos ou à mesa é componente do G2. Portanto, somado ao sódio intrínseco dos AUP eleva a estimativa de ingestão diária de sódio pelas crianças em estudo.
De acordo com Sarno et al.,24 o excesso de sódio consumido pode ser motivado pelo aumento do consumo de alimentos industrializados. Uma pesquisa feita nos Estados Unidos demonstrou que, do total de sódio consumido diariamente, 44% foram provenientes de pães, carnes processadas, pizzas, sopas, sanduíches, queijos e pratos mistos à base de massa ou carnes.26
No Brasil, as estimativas não diferem dos demais países. Os dados da POF apontam que o consumo de AUP (pizza, carnes processadas, salgadinhos, biscoitos recheados e refrigerantes) esteve relacionado com maior ingestão de sódio.8
Vitolo et al.27 sugerem que há uma associação positiva entre a ingestão de sódio e a pressão arterial alterada de pré‐escolares. As pesquisadoras destacam o fato de não terem avaliado o sal adicionado às preparações e, portanto, acreditam que a principal fonte desse nutriente foi proveniente dos AUP.
Os resultados acerca do consumo de fibras proveniente dos AUP reforçam o que vem sendo apresentado na literatura científica. Ou seja, os alimentos pertencentes a esse grupo são fontes extremamente pobres desse nutriente.5
Além disso, os AUP foram a principal fonte de gorduras trans, contida na alimentação das crianças. Esse tipo de gordura vem sendo usado em ampla escala pela indústria alimentícia com a finalidade de melhorar o aspecto físico e sensorial dos produtos. O consumo em excesso está associado a aumento do LDL‐colesterol, a risco de doença cardiovascular, a diabetes e à hipertensão.28
Apesar de os resultados não atingirem significância estatística pelo teste de tendência linear, entre excesso de peso e as variáveis idade da criança e escolaridade materna, o que pode ter ocorrido devido ao número pequeno de crianças em cada grupo, observa‐se (figura 1) que há um aumento crescente nas três primeiras categorias. De forma similar, os dados apresentados em estudos epidemiológicos indicam que há uma relação direta entre o excesso de peso em crianças e o nível de escolaridade da mãe.19
O maior consumo de macronutrientes derivados do G3 pelas crianças em idade escolar, quando comparadas com pré‐escolares, pode ser explicado pelo fato de que essas têm maior autonomia nas escolhas alimentares. Sendo assim, são mais susceptíveis a sofrer influências do meio em que estão inseridas, que lhes oferece opções de escolhas alimentares pouco saudáveis.29
Em nosso estudo, ao contrário do que indicam algumas referências,9,30 o maior nível de escolaridade materna mostrou‐se associado a uma maior contribuição de AUP na alimentação das crianças. No entanto, essa associação com a escolaridade materna foi de magnitude bastante fraca (r=0,23) e consideravelmente menor do que a associação observada entre o consumo de AUP e a idade da criança (r=0,40).
Além disso, diferentemente do que relatam algumas pesquisas,10 nosso estudo não encontrou uma associação de maior consumo de AUP com menor renda. Entretanto, esse achado pode ser explicado pelo fato de que uma amostra de usuários de uma UBS tem renda relativamente baixa no contexto econômico da sociedade. Assim, essa relativa homogeneidade leva a pouca variabilidade de renda no grupo, o que dificulta (ou distorce) a detecção de associações com esse fator e com outros que sejam colineares (p.e., escolaridade).
Segundo o estudo de Vitolo et al.,27 ao avaliar crianças de baixa renda em uma cidade da região metropolitana do Rio Grande do Sul, contatou‐se que os AUP contribuíram em grande parte na alimentação. Dentre os mais consumidos, destacam‐se pães (78,8%), bebidas açucaradas (75,6%), snacks doces (63,2%), biscoitos (52,5%), embutidos (42,9%), chips (17,7%) e macarrão instantâneo (11,0%). No entanto, é válido destacar que a maioria dos pães (p.e. pão francês) veicula ferro e ácido fólico em sua composição, nutrientes importantes na alimentação das crianças. Esse tipo de alimento, em quantidades adequadas, é parte de uma alimentação saudável.
No entanto, há indicativos de que o aumento do consumo ultraprocessados atinge tanto a população com menor renda quanto a com renda superior. E sugere‐se que a redução do consumo de alimentos do G1 é mais significativa entre a renda mais elevada.
Sobre as limitações do trabalho, tem‐se que os resultados não podem ser generalizados para outras populações, já que foi incluída uma população específica vinculada à UBS. Outro ponto a salientar é que este estudo tem um tamanho de amostra de 204 crianças e em algumas situações as diferenças observadas podem não ter atingido significância estatística devido à limitação do poder estatístico. Ainda, pontua‐se sobre o método usado para estimar a ingestão diária (R24h), que pode apresentar o viés de subestimar ou superestimar o real consumo, bem como não refletir necessariamente o hábito alimentar. Além disso, pode existir o viés de memória, visto que o entrevistado tem de relatar o consumo referente ao dia anterior.
Conclui‐se, com este trabalho, que a contribuição dos AUP na alimentação das crianças estudadas é expressiva, evidencia uma qualidade ruim da alimentação em termos da presença de alimentos e nutrientes protetores, e de risco à saúde. Ainda, observou‐se maior frequência de consumo dos AUP em crianças em idade escolar e filhas de mães com maior nível de escolaridade. Destaca‐se também a elevada frequência de excesso de peso encontrada na população em estudo.
Assim, reforça‐se a necessidade de ações de educação alimentar e nutricional voltadas para as crianças e os pais, pois a infância é um importante período para o incentivo e desenvolvimento de práticas alimentares saudáveis. E, também, que novos estudos sejam feitos para avaliar o impacto dos AUP na qualidade da alimentação e no estado nutricional das crianças.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
Karen Sparrenberger foi financiada pela bolsa de mestrado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Programa de Pós‐Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Como citar este artigo: Sparrenberger K, Friedrich RR, Schiffner MD, Schuch I, Wagner MB. Ultra‐processed food consumption in children from a Basic Health Unit. J Pediatr (Rio J). 2015;91:535–42.