A asfixia perinatal que resulta em encefalopatia hipóxico‐isquêmica (EHI) ocorre em 1‐2/1000 nascidos vivos em países de alta renda e 10‐20/1000 em países de baixa e média renda (PRBM).1 Em todo o mundo, a EHI afeta 2,7 milhões de recém‐nascidos, dos quais 690.000 morrem.2 Mais da metade dos sobreviventes continua a desenvolver paralisia cerebral, epilepsia e outras formas de deficiência neurológica ao longo da vida. A adoção de hipotermia terapêutica (HT) em países de renda alta tem sido um dos avanços mais significativos em cuidado neonatal nos últimos 20 anos e segue pesquisa científica e clínica básica rigorosa.3 A metanálise dos ensaios clínicos mostrou uma consistência impressionante com relação ao benefício da HT nas taxas de mortalidade e neurodeficiência.4 Contudo, talvez seja surpreendente, devido à carga global da EHI e à simplicidade relativa do tratamento, que a HT não tenha sido universalmente adotada fora de países de renda alta. Os motivos para isso são complexos e multifatoriais.
A ideia de resfriamento de um neonato após asfixia perinatal não é nova. Uma rápida pesquisa da literatura mostrará o trabalho de James Miller de Nova Orleans e Bjorn Westin de Estocolmo, que, em 1950, descreveram o uso da hipotermia em neonatos com “asfixia neonatal”.5 Seu estudo original em 10 neonatos que não haviam respondido à ressuscitação convencional e, posteriormente, foram colocados em uma banheira de água gelada e resfriados a 23°C‐30°C mostrou resultados impressionantes: no acompanhamento aos 10 anos, nove neonatos haviam sobrevivido com neurologia normal.6 Contudo, a importância de manter todos os neonatos aquecidos ofuscou o desenvolvimento nessa área, até o trabalho de Reynolds et al. nos anos 1980, que, com a técnica recém‐desenvolvida de espectroscopia de ressonância magnética (MRS), mostrou uma latência na morte celular após asfixia perinatal, que pode ser melhorada por hipotermia leve.7,8 As pesquisas nessa área ganharam tração e passaram dos modelos experimentais para grandes ensaios clínicos randomizados.
Um dos motivos pelos quais o resfriamento pode ser tão efetivo em recém‐nascidos, que parece não ter eficácia em crianças mais velhas e adultos após parada cardíaca, pode ser o fato de a hipotermia ser uma resposta fisiológica no recém‐nascido, que evoluiu exatamente para impedir possível lesão cerebral após hipóxia‐isquêmica no nascimento. Pelado, molhado e sem pelos, com uma cabeça grande, o recém‐nascido perderá calor rapidamente sem intervenção. Aproximadamente no mesmo período em que Miller e Westin publicaram seu trabalho sobre resfriamento de neonatos, Burnard & Cross publicaram um estudo que mostra que os neonatos com asfixia sentem mais frios e demoram mais a estabelecer normotermia.9 Naturalmente, o fato de que os bebês sentem frio após o nascimento formam a base do “controle térmico da OMS”, pois fora do ambiente controlado da unidade de terapia intensiva neonatal as taxas de morbidez e a mortalidade associadas a hipotermia são significativas e evitáveis.10 É difícil provar se a hipotermia natural após asfixia perinatal é um fenômeno fisiológico ou patofisiológico; contudo, na era da HT, ela destaca a importância do controle termal correto dos neonatos com EHI, principalmente durante a transferência.
A maior parte dos neonatos que sofrem asfixia perinatal nasce fora de unidades terciárias que têm os equipamentos e a experiência necessários não apenas para resfriar os neonatais por 72 horas, mas também fornecer serviços neurofisiológicos, radiológicos e outros necessários para fins de diagnóstico e prognóstico. Contudo, a comprovação experimental e clínica sugere que quanto antes o resfriamento for iniciado, mais eficaz será a terapia.11,12 A prática padrão atual na maior parte das configurações de parto é iniciar o resfriamento o mais rapidamente possível após o nascimento e mantê‐lo até a chegada a um centro de resfriamento. Vários estudos foram publicados, inclusive o mais recente de Carreras et al., que descreve o resfriamento durante a transferência.13 A maior parte das publicações descreve o resfriamento passivo. Nesse estudo de Carreras et al., é interessante observar que a maioria dos neonatos foi transferida sem a necessidade de fontes de aquecimento externo; contudo, 22% dos neonatos não estavam na temperature‐alvo na chegada ao centro de resfriamento e 16% estavam abaixo da temperatura‐alvo. Curiosamente, o risco de superresfriamento foi associado à gravidade da EHI e acidose no nascimento, confirmou os achados de Burnard & Cross há quase 60 anos.
Apenas dois estudos publicados compararam o resfriamento ativo e passivo no transporte. Um, por Chaudhary et al. para o Serviço de Transferência Neonatal Aguda, localizado no leste da Inglaterra, foi um estudo observacional retrospectivo que comparou 64 neonatos resfriados passivamente e 70 neonatos resfriados com um colchão de resfriamento automático.14 No grupo de resfriamento passivo, 27% dos neonatos não atingiram a temperatura alvo e 34% dos neonatos foram superresfriados (mais do dobro do estudo de Carreras et al.). No grupo de resfriamento ativo, todos os neonatos estavam na temperature‐ alvo na chegada ao centro de resfriamento; talvez, de forma mais significativa, o tempo de estabilização apresentou redução significativa, refletiu a necessidade reduzida de manejo termal pelas equipes de transferência, facilitou o processo de transferência. O segundo estudo, de Akula et al., de um consórcio na Califórnia, foi um estudo controlado randomizado do modo de resfriamento na transferência; 49 neonatos foram transferidos com resfriamento passivo e 51 neonatos foram resfriados ativamente com um sistema automático.15 O grupo controlado ativamente atingiu melhor controle térmico do que o grupo passivo, apesar de o tempo de estabilização nesse estudo não ter apresentado melhoria. A comprovação limitada disponível sugeriria, portanto, que há vantagens no resfriamento ativo na transferência; contudo, no estudo de Akula et al., houve erros operacionais em nove neonatos que receberam resfriamento ativo e os centros com maior participação apresentaram menos erros de uso do dispositivo, o que destaca que, com qualquer equipamento, há necessidade de uma curva de aprendizado e atividade de uso fundamental. Talvez a mensagem mais importante de todos os estudos publicados até hoje seja a importância do monitoramento da temperatura central (retal), principalmente para evitar superresfriamento.
A decisão de quem resfriar é, à primeira vista, relativamente simples. Todos os ensaios clínicos usaram uma combinação de A) comprovação do comprometimento fetal (pH reduzido, lactato alto, baixo índice de Apgar, ressuscitação prolongada etc.) e B) comprovação de encefalopatia e/ou convulsões contínuas; e alguns ensaios incluem exame de eletroencefalograma de amplitude integrada (aEEG) anormal e todos os neonatos terem sido inscritos antes das seis horas de idade. Na prática clínica, com o desejo de iniciar o resfriamento o mais rapidamente possível, os critérios A podem ser identificados de forma relativamente fácil; contudo, os critérios B são uma imagem em evolução, que podem ser mais difíceis de avaliar objetivamente na primeira hora de vida. Da mesma forma, a aplicação do aEEG durante a fase de estabilização inicial pode não ser adequada; além disso, o acesso aos equipamentos e a especialistas para interpretar o aEEG pode não estar disponível, principalmente em configurações de parto mais remotas. A prática descrita por Carreras et al. é transferir todos os neonatos com encefalopatia e, então, avaliá‐los formalmente no centro de resfriamento, antes de iniciar o resfriamento ativo. Isso garante que haja consistência na avaliação dos neonatos e que seja evitado atraso na apresentação de neonatos com EHI moderada‐grave, inicialmente consideradas leves. Essa abordagem não pode ser aplicável em todas as configurações, pois exige muitos recursos da equipe de transferência e dos centros de resfriamento e, além disso, tira os bebês de suas mães – às vezes distâncias consideráveis – quando nem sempre é necessário. A importância da avaliação neurológica precoce e regular nesses neonatos não pode ser subestimada. Horn et al. mostraram que os sinais clínicos precoces em neonatos com EHI podem mostrar aEEG anormal ao tempo de seis horas.16 Com instalações de telemedicina aprimoradas, também é possível conectar os exames de aEEG a centros regionais de avaliação. A forma como tratar os neonatos que atendem aos critérios A, porém têm critérios B incertos ou em evolução continua controversa e pode ser que orientações específicas tenham de ser preparadas, a depender dos recursos locais disponíveis.
Não há dúvida de que a HT teve um grande impacto sobre a sobrevida e o resultado neurológico de muitos neonatos em países de renda alta. O impacto sobre os países de renda baixa e média, onde a maior parte dos neonatos nasce, é menos claro. Vários estudos pequenos foram feitos em PRBM; nenhum deles teve poder adequado para examinar resultados clinicamente importantes.17 Uma metanálise recente da hipotermia terapêutica em PRBM mostrou uma redução na mortalidade neonatal de sete ensaios clínicos controlados randomizados com a participação de 567 neonatos, apesar de a redução não ter sido estatisticamente significativa.18 Contudo, é difícil interpretar os dados, devido aos critérios de inclusão e exclusão incompatíveis e ao fraco acompanhamento. Os estudos têm forte viés na Índia, com apenas um ensaio clínico controlado randomizado e nenhum nas Américas Central e do Sul. Há a necessidade urgente de desenvolvimento de uma melhor base de comprovação para diferentes configurações de recursos em todo o mundo, não somente na eficácia do resfriamento em populações específicas, mas também sobre a melhor forma de estabilizar e transferir esses neonatos para centros especializados. O que está claro é que o estabelecimento da HT de forma precoce é importante e sua manutenção durante a transferência é viável, porém é essencial monitorar cuidadosamente a temperatura central para prevenir superresfriamento, principalmente em neonatos com EHI, como descrito em 1958.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflitos de interesse.