Nos últimos 15 anos, o conhecimento sobre a epidemiologia da injúria renal aguda (IRA), fatores de risco e resultados aumentou dramaticamente. Em grande parte, essa explosão na pesquisa da IRA foi viabilizada pelo desenvolvimento de definições padronizadas de IRA, inclusive os escores Risk, Injury, Failure, End Stage Kidney Disease (RIFLE), Acute Kidney Injury Network (AKIN) e, mais recentemente, a definição Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO, um grupo internacional que desenvolve diretrizes sobre todos os aspectos da doença renal).1 Nos adultos, poucos anos após o desenvolvimento da primeira definição (RIFLE), fortes evidências demonstraram que a IRA, mesmo a IRA leve, estava fortemente associada à mortalidade em curto e longo prazo. Alguns anos depois, muitos estudos em adultos mostraram a associação de IRA hospitalar com eventos cardiovasculares em longo prazo e doença renal crônica (DRC) incidente/agravada, hipertensão, doença renal terminal (DRT) e outros desfechos clínicos.1 Em adultos, essa pesquisa mudou o cenário do manejo da IRA. De fato, as diretrizes mais recentes do KDIGO sobre IRA recomendam que os adultos com IRA sejam acompanhados por 3 meses após a alta hospitalar para monitorar a resolução da IRA e/ou nova/pioria da DRC.1 Estudos e iniciativas multinacionais foram criados para aliviar esse problema crescente da IRA, um potente fator de risco para desfechos ruins.2–4
Como comunidade, estamos um pouco atrasados na elucidação da epidemiologia da IRA em crianças. Uma razão para isso é que as crianças hospitalizadas que sofrem um episódio de IRA geralmente não são acompanhadas após a alta com exames de sangue ou urina, ou em alguns casos nem mesmo com um médico da atenção primária à saúde (APS). Assim, ao contrário dos adultos, dados sobre resultados e DRC simplesmente não existem; estudos prospectivos são necessários para entender os resultados tardios da IRA em crianças. Apesar desse desafio, nos últimos 10 a 15 anos, muitos estudos mostraram que a IRA pediátrica está associado ao aumento da permanência na unidade de terapia intensiva (UTI) e da mortalidade hospitalar e com medidas de morbidade hospitalar, inclusive dados de um grande estudo multinacional (AWARE).5–12 O que fica claro nesses estudos é a importância de avaliar fatores de risco para IRA em diferentes países e contextos de cuidados de saúde, pois diferentes cenários podem estar associados a padrões e causas epidemiológicos específicos da IRA. Os resultados em longo prazo da IRA pediátrica ainda nos escapam, mas os dados começaram a surgir.
Por exemplo, no Canadá, em crianças internadas na unidade de terapia intensiva (UTI), a IRA mostrou estar independentemente associada ao aumento do uso dos cuidados de saúde, mortalidade e diagnóstico de DRC em 5 anos após a alta.10,11 Em crianças submetidas a cirurgia cardíaca, o risco de DRC em 5 a 7 anos pós‐alta ou hipertensão foi muito alto, mas a associação com IRA permanece controversa.13–15 Em crianças tratadas fora da UTI com medicação nefrotóxica, a prevalência de DRC em 6 meses pós‐alta foi maior em crianças com IRA associada a nefrotoxinas durante a internação.15
Entre todas essas pesquisas, ainda há algumas incertezas sobre a melhor forma de definir IRA. Por exemplo, todas as três definições de IRA mencionadas acima foram avaliadas em crianças, além de uma versão específica para pediatria dos critérios RIFLE (a definição de pRIFLE). Todas as versões dessas definições mostraram associações com desfechos hospitalares em estudos feitos em crianças americanas. Se o componente produção de urina (oligúria) dessas definições deve ou não ser usado em crianças também é um tanto controverso; embora um grande estudo recente sobre IRA pediátrica tenha mostrado que os critérios de diminuição da produção de urina estão fortemente associados aos desfechos do paciente.12 Por fim, um aspecto sempre desafiador da definição de IRA é como definir a função renal “basal” da criança, quando a maioria das crianças que chega ao hospital nunca fez um exame de sangue antes. Portanto, ainda há muito a ser entendido sobre IRA pediátrica; a epidemiologia em diferentes contextos de saúde, bem como a compreensão do impacto em longo prazo da IRA na saúde renal e geral da criança.
Nessa edição do Jornal de Pediatria, Ferreira & Lima16 estudaram retrospectivamente 434 crianças internadas em sua UTI pediátrica de centro único (cirurgia não cardíaca; sem histórico de DRC), entre 2004 e 2008. Esse estudo abordou várias das lacunas de conhecimento descritas acima, no contexto dos cuidados de saúde terciária brasileira. Em crianças sem medida de creatinina sérica antes da internação na UTI, eles usaram o valor esperado para a idade, o que era totalmente razoável. Essa abordagem é especialmente razoável se valores de creatinina normais para a idade, específicos do país e da população de pacientes estiverem disponíveis. Eles excluíram pacientes que não tinham valores suficientes de creatinina disponíveis durante a internação na UTIP. Embora entendamos a lógica para fazer isso (sem creatinina, como podemos determinar a IRA?), em outros estudos foi feita uma suposição para esses pacientes: se eles não tinham uma medida de creatinina, provavelmente não estavam doentes o suficiente para precisar ter a creatinina medida e, portanto, provavelmente não apresentavam IRA. Dito isso, os resultados da exclusão desses pacientes provavelmente “menos doentes” teriam o efeito de diminuir a associação entre a IRA e os desfechos dos pacientes; portanto, é provável que qualquer associação entre IRA e resultados encontrados pelos autores seja realmente ainda mais forte do que eles relataram. Como eles se concentraram em uma coorte relativamente mais gravemente doente, não é de surpreender que 64% dos pacientes tenham desenvolvido IRA (cerca de dois terços estão na categoria grave/estágio 2 de IRA). De uma perspectiva local, achamos que essa taxa de IRA é bastante preocupante e, esperançosamente, isso estimulará iniciativas e pesquisas de melhoria da qualidade para avaliar se a IRA pode ser evitada ou atenuada (por exemplo, um exame do uso de medicamentos nefrotóxicos; manejo precoce da sobrecarga de fluidos).
Os fatores de risco para IRA identificados pelos autores foram semelhantes a outros estudos, principalmente relacionados à gravidade da doença (por exemplo, suporte ventilatório, inotrópico) e nefrotoxinas (especificamente anfotericina). O fato de outros medicamentos nefrotóxicos não aparecerem como fatores de risco não deve induzir os leitores a pensar que não desempenham um papel nefrotóxico; é possível que não houvesse pacientes suficientes recebendo outras nefrotoxinas ou que o uso de anfotericina pudesse estar associado a outras drogas nefrotóxicas usadas simultaneamente em pacientes doentes (por exemplo, aminoglicosídeos). O uso de diuréticos e diurese reduzida (oligúria) também foi independentemente associado à IRA na análise multivariável. No entanto, advertimos a respeito da interpretação desse resultado; é possível que essas duas variáveis estejam altamente correlacionadas e, portanto, dentro do mesmo modelo, podem não estar nos dizendo coisas diferentes. Advertimos aos leitores que não interpretem isso como significando que os diuréticos causam IRA. É possível que pacientes com oligúria tenham recebido diuréticos adequadamente prescritos. Esse é um exemplo do que pode valer a pena examinar a nível local, para entender a prática do uso de diuréticos. Embora esses resultados sobre os fatores de risco não fossem novos da perspectiva de pesquisa geral da IRA, eles foram importantes. Localmente, esses fatores de risco podem servir como ponto de partida para clínicos, formuladores de políticas e os responsáveis pela qualidade examinarem as práticas de UTI e pré‐UTI relacionadas ao risco de IRA. Além disso, como os fatores de risco são semelhantes aos conhecidos em estudos não brasileiros, os futuros modelos de previsão de risco de IRA desenvolvidos em UTIs não brasileiras podem ser testados e/ou aplicados e/ou vice‐versa. Outro achado descrito em outros estudos, mas essencial para entender a prevenção da IRA, foi que a maioria das crianças apresentava IRA na admissão na UTI. Isso enfatiza a necessidade de avaliar o risco de IRA antes da internação na UTI. Se os pacientes pudessem ser identificados logo após a admissão no hospital ou na sala de emergência devido ao alto risco de IRA, as implicações nos resultados clínicos poderiam ser substanciais.
Os autores descobriram que a IRA estava associada à mortalidade hospitalar e maior tempo de permanência no hospital, como em outros estudos descritos acima. Nas análises multivariáveis, os marcadores de gravidade da doença (por exemplo, drogas vasoativas, ventilação) também foram associados à mortalidade. No entanto, eles relataram que uma pior (maior) sobrecarga hídrica e menor peso também estavam independentemente associados à mortalidade. Foi demonstrado em muitos estudos que a sobrecarga de fluidos estava associada a desfechos ruins em crianças, descritos em uma revisão sistemática.17–19 Como a sobrecarga de fluidos está relacionada à produção de urina, que está relacionada à IRA, arranjar uma contribuição para o desfecho ruim entre a sobrecarga de fluido e a IRA é um desafio. Entretanto, com base nesses resultados, vale a pena considerar futuras pesquisas que avaliem o impacto de evitar ou reduzir a sobrecarga de fluidos em pacientes internados em UTI. Em termos da associação entre a diminuição de peso e a mortalidade, isso é um pouco mais difícil de interpretar e pode estar fortemente relacionado à idade do paciente; além disso, o peso é inerente ao cálculo da sobrecarga de fluidos, é uma fonte de preocupação sobre a colinearidade entre essas duas variáveis. Propomos que, em futuros modelos de previsão, o peso não seja usado, mas apenas a sobrecarga de fluidos e a idade. Há uma análise à qual os autores não deram muita importância, mas que consideramos uma avaliação nova e importante em crianças. A taxa de readmissão na UTI em pacientes com IRA foi quase quatro vezes maior do que em pacientes sem IRA. A partir da perspectiva dos recursos hospitalares e da morbidade do pacientes, isso tem implicações importantes; acreditamos que mais pesquisas devem ser feitas para avaliar o papel da IRA nesse resultado clínico e se o manejo pós‐UTI de pacientes com IRA pode ser aprimorado para evitar a readmissão. Estamos curiosos para saber quais foram os motivos da readmissão na UTI.
Um dos aspectos mais importantes deste estudo, da perspectiva geral da pesquisa em IRA pediátrica, foi a avaliação da mortalidade pós‐alta. Mais pesquisas sobre associações de IRA com resultados pós‐alta são extremamente necessárias. Ficamos bastante impressionados com o fato de haver dados disponíveis em 70% dos sobreviventes. Dos que morreram (61,3%) tinham IRA na UTIP; daqueles com IRA, a mortalidade em longo prazo foi de 18%. Considerando a mortalidade geral da população infantil, essa é uma taxa de mortalidade muito alta e muito preocupante. Na análise multivariável, eles descobriram que marcadores de gravidade da doença e diurese reduzida eram preditores independentes da mortalidade pós‐alta hospitalar, mas a IRA não era. Isso difere de dois grandes estudos recentes em pediatria (um no Canadá e outro nos EUA).10,12 No entanto, alertamos contra a conclusão de que a IRA não estava associada à mortalidade, isto é, porque acreditamos que a baixa diurese pode estar fortemente relacionada à presença de IRA. De fato, nos dois estudos mencionados anteriormente, os critérios de produção de urina (oligúria) do KDIGO foram usados para definir a IRA. Portanto, podemos concluir que a diurese reduzida era evidência de disfunção renal aguda e estava independentemente associada à mortalidade pós‐alta. Como reconhecido pelos autores, o que estava faltava nesse estudo eram os dados sobre os resultados renais pós‐alta que comparassem o sobreviventes com IRA versus não IRA. Também reconhecemos que a obtenção de tais dados prospectivamente não é apenas proibitiva em termos de custos, mas logisticamente extremamente desafiadora.
Uma importante questão que permanece é o que fazer com essa informação. A partir deste estudo e em outros estudos recentes, sabemos que o risco de mortalidade pós‐alta é maior em crianças que desenvolvem disfunção renal aguda e/ou oligúria. Elas provavelmente também apresentam risco de resultados renais crônicos, mas são necessárias mais pesquisas para elucidar a magnitude dessa associação. Claramente, é necessário prestar uma atenção especial às crianças com IRA durante a hospitalização após a alta; mas de que maneira? Quem deve acompanhá‐los? O médico da família, o pediatra ou o nefrologista? Em muitos contextos de saúde, muitas crianças não têm acesso a um médico da APS e o acesso aos cuidados de um especialista é limitado. Acreditamos que o primeiro passo é começar a entender em detalhes o que realmente está acontecendo com esses pacientes quando eles saem do hospital: que médico, se houver um, os acompanha; geograficamente, onde eles estão localizados; que outros problemas de saúde eles têm; quais recursos locais estão realmente disponíveis; se eles continuam ou não a correr risco de IRA (por exemplo, receber medicação nefrotóxica na próxima internação); e outros dados relacionados ao processo de cuidados de saúde e risco.
Ao conhecer esses fatores em detalhes, podemos começar a entender onde a intervenção e/ou prevenção é realmente viável. Idealmente, todas as crianças que desenvolvem IRA e que apresentam risco aumentado de mortalidade tardia ou outros desfechos serão identificadas antes da alta hospitalar e receberão um plano de cuidados direcionado especificamente ao paciente. Ainda é preciso aguardar para ver como essa visão se tornará realidade e provavelmente será bastante diferente, depende do contexto da assistência de saúde.
Conflitos de interesseO Dr. Zappitelli é presidente do Data Safety Monitoring Board (não remunerado/voluntário) em um ensaio clínico multicêntrico do dispositivo citoferético seletivo (empresa: CytoPheryxInc). Ele também é copresidente do Comitê de Revisão de Segurança em um estudo sobre fármacos em crianças com cistinose (empresa ELOXX), pelo qual recebe reembolso. Nenhum desses conflitos afeta o editorial de forma alguma. O Dr. Noone declara não haver conflitos de interesse.