A amamentação fornece uma abundância de moléculas para desenvolver de forma aprimorada os tecidos e órgãos do neonato. O leite humano contém várias moléculas bioativas que modulam o sistema imunológico, bem como moléculas com atividades antimicrobianas diretas e indiretas que evitam o supercrescimento de micro‐organismos possivelmente patogênicos. A combinação de fatores imunomoduladores e antimicrobianos ajuda a criança a evitar o desenvolvimento de doenças inflamatórias e infecção infantil. Dessa forma, a alimentação de neonatos com fórmulas e outros substitutos está claramente relacionada a uma frequência cada vez maior de doenças inflamatórias, como alergias, colite, diabetes juvenil e câncer infantil, bem como uma frequência cada vez maior de infecções. Apesar de alguns dos mecanismos e moléculas envolvidos na proteção do leite materno contra infecções terem sido bem estudados, o quadro completo da biologia da proteção antimicrobiana do leite materno ainda não está claro.
Em um estudo publicado nesta edição do Jornal de Pediatria,1 um grupo do Instituto Venezuelano de Investigações Científicas (IVIC) em Caracas, Venezuela, conduzido pela Dra. Luz Thomas, apresenta evidências do papel potencial do peptídeo beta‐defensina‐2 (hBD‐2) do leite materno na proteção antimicrobiana contra infecções entéricas e também potencialmente contra outras infecções. Os autores mediram a concentração de hBD‐2 em 100 amostras de leite materno, 61 das quais eram de colostro e as restantes de leite maduro. Semelhantemente ao observado em um estudo anterior,2 as amostras de colostro continham concentrações significativamente maiores de hBD‐2 do que as amostras de leite maduro; contudo, as concentrações observadas aqui foram consideravelmente maiores em relação ao que havia sido previamente descrito, o que sugere uma possível contribuição de defensinas derivadas do leite à defesa antimicrobiana do leite in vivo. Depois, os autores produziram hBD‐2 recombinante e o testaram contra uma ampla gama de organismos entéricos possivelmente patogênicos, incluindo cepas de Salmonella spp. e Escherichia coli, bem como cepas de Serratia marcescens, Pseudomonas aeruginosa e Acinetobacter baumanii, e mostraram uma sensibilidade desses organismos ao hBD‐2 que fazem com que as concentrações encontradas no leite materno tenham probabilidade de apresentar um efeito sobre esses organismos in vivo. Os resultados representam o primeiro relatório de níveis de defensina no leite de mulheres da América Latina e sugerem uma função para o hBD‐2 na defesa contra infecções entéricas em neonatos. Essas informações estimularão estudos futuros sobre peptídeos antimicrobianos (AMPs) do leite desse e de outros grupos que aumentarão a compreensão da função dos AMPs tanto na modulação imunológica como na atividade antimicrobiana.
Para colocar esse trabalho em perspectiva, há fortes dados epidemiológicos que sugerem uma associação prejudicial entre a alimentação com fórmula e a infecção em neonatos.3‐5 Ao comparar neonatos alimentados com fórmula e amamentados com leite materno, os neonatos amamentados apresentam menores incidências de infecções gastrointestinais, respiratórias, do trato urinário e outras e a taxa de mortalidade infantil é menor.6 As principais moléculas associadas a essa proteção são fatores antimicrobianos do leite materno que atuam indiretamente no bloqueio da aderência de bactérias às superfícies mucosas ou na neutralização de bactérias, como oligossacarídeos, glicoconjugados e imunoglobulinas, ou atuam diretamente matando micróbios, como a lactoferrina, a lisozima, peroxidases, ácidos graxos e outras moléculas.7 A proteção é melhorada ainda pelo fornecimento de fatores que modulam o sistema imunológico,5,8,9 como as citocinas e fatores de crescimento. Além disso, estudos recentes têm mostrado que o leite materno contém o seu próprio microbioma, que, quando fornecido ao neonato, ajuda a criar uma microflora saudável em seu intestino e outros tecidos, o que também ajuda a aprimorar o desenvolvimento do sistema imunológico do neonato e proteger contra o crescimento excessivo de bactérias patogênicas.10,11
O papel do leite como uma fonte de AMPs e na proteção contra infecção não tem sido muito investigado. Estudos iniciais que investigam a expressão de defensinas no epitélio mamário encontraram expressão de hBD‐1, mas não de hBD‐2.12 De fato, o maior peptídeo beta‐defensina produzido no leite parece ser o hBD‐1.2,13 No entanto, Armogida et al. identificaram a expressão do gene hbd‐2 em 15% das células epiteliais mamárias investigadas14 e Wang et al. foram, recentemente, o primeiro grupo a mostrar secreção do hBD‐2 no leite.2
Os AMPs são moléculas multifuncionais de defesa.15 Além de sua atividade antimicrobiana, modulam o sistema imunológico ao ativar células imunes contra organismos patogênicos. Sua importância na defesa contra infecções de revestimentos mucosos, como pele, trato respiratório e intestino, tem sido claramente demonstrada com modelos de animais em que os genes para as defensinas ou catelicidinas do rato foram eliminados ou tiveram sua expressão reduzida. Esses estudos têm mostrado a importância dos AMPs contra várias infecções, incluindo as causadas por E. coli O157:H7, Streptococcus pyogenes e Streptococcus pneumoniae,16‐18 e defensinas e moléculas semelhantes são conhecidas por sua contribuição para a limpeza bacteriana no intestino e pulmão.19 Para concluir, as informações fornecidas por Baricelli et al.1 na atual edição deste jornal devem atuar como intensificadoras de estudos futuros no campo, por várias razões. Primeiro, mais estudos aumentarão nossa compreensão da complexa biologia do leite materno e de seu papel antimicrobiano no intestino e em outros tecidos mucosos e, segundo, o estudo de AMPs, incluindo defensinas, está se tornando cada vez mais interessante porque são potenciais antibióticos em uma era de resistência antibiótica.20
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflitos de interesse.