As doenças relacionadas ao metabolismo lipídico e lipoproteico são comumente observadas em obesos e indivíduos com resistência à insulina e normalmente são denominadas “dislipidemia diabética”. A dislipidemia diabética é caracterizada por altos níveis de triglicérides no plasma, redução no colesterol de lipoproteína de alta densidade e aumento nos níveis de pequenas partículas de lipoproteína de baixa densidade (LDL), que, em conjunto, aumentam o risco de aterosclerose prematura e doença cardiovascular. Essas anomalias lipídicas resultam da superprodução de lipoproteínas hepáticas e intestinais ricas em triglicérides, que são rapidamente metabolizadas para gerar partículas de lipoproteínas remanescentes altamente aterogênicas. Apesar de as complicações cardiovasculares serem comumente observadas somente mais tarde na vida adulta, a gênese da aterosclerose começa na infância e os fatores de riscos cardiovasculares no início da vida são associados ao aumento da espessura íntima‐média carotídea (EIMC), uma medida não invasiva de aterosclerose subclínica,1 bem como ao aumento da gravidade da aterosclerose medida por autópsia.2,3 Adicionalmente, os fatores de risco cardiovascular, como dislipidemia diabética, presentes na infância, geralmente continuam na vida adulta e aumentam o risco de morbidez e mortalidade.4,5 Para adultos, foram estabelecidas diretrizes de avaliação de doenças cardiovasculares, inclusive os limites de tomada de decisão com relação aos parâmetros lipídicos, com base em estudos de coorte prospectivos.6 Contudo, os limites de tomada de decisão com relação aos parâmetros lipídicos na população pediátrica geralmente são obtidos dos limites de tomada de decisão para adultos ou ao se calcular um percentil de nível lipídico especificado de uma população saudável de referência, pois as medidas do resultado cardiovascular são difíceis de estabelecer durante a infância.1,7,8
Os limites pediátricos precisos de tomada de decisão com relação aos parâmetros lipídicos são ainda mais limitados em muitos países, como o Brasil, no qual os valores de corte recomendados em suas diretrizes nacionais9‐11 são determinados com base na população pediátrica americana. A prevalência da obesidade pediátrica no Brasil é de 14,1%, de acordo com uma metanálise de estudos brasileiros de 2008 a 2014,12 corrobora a necessidade urgente de estabelecer limites precisos de tomada de decisão com relação aos lipídeos para a população pediátrica brasileira para avaliar o risco precoce de aterosclerose e doença cardiovascular. Para abordar essa lacuna crítica, um estudo recente publicado por Slhessarenko et al.13 no Jornal de Pediatria estabeleceu limites pediátricos de tomada de decisão com relação aos triglicerídeos, colesterol total, LDL‐C, HDL‐C e colesterol não HDL (ou seja, uma medida do teor de colesterol em lipoproteínas aterogênicas) específicos para a população brasileira. Esse estudo usou um procedimento de amostragem por conglomerados para selecionar 20 escolas e 25 creches em todas as quatro grandes regiões de Cuiabá, Brasil. Apesar de a população da qual os participantes de referência foram amostrados ser regional, ela é amplamente representativa da população brasileira, devido às grandes migrações de outras regiões do Brasil. O tamanho da amostra pretendido teve como base a diretriz EP28‐A3c do Instituto de Padronização Clínica e Laboratorial (CLSI): Definição, Estabelecimento e Verificação dos Intervalos de Referência nas Diretrizes Clínicas e Laboratoriais,14 que recomenda um mínimo de 120 indivíduos de referência por idade. O estudo aumentou o número de indivíduos recrutados em 40% para compensar uma possível perda de participantes. Somente foram incluídos os participantes sem condição de saúde conhecida, sem sintomas clínicos e sem tomar medicamentos, resultou em uma amostra final de 1.866 crianças entre um e 13 anos. Todos os participantes preencheram um questionário, foram pesados e medidos e foi coletada uma amostra de sangue em jejum. As crianças não foram excluídas com base em seu índice de massa corporal (IMC), desde que não apresentassem comprovação de comorbidade. Os triglicerídeos, colesterol total e HDL‐C foram analisados com o analisador cobas 6000da Roche e foram calculados o LDL‐C e o colesterol não HDL. Para triglicerídeos, colesterol total, LDL‐C e colesterol não HDL, os valores desejáveis foram definidos como percentil < 75, os valores limítrofes foram definidos como percentil entre 75 e 95 e os valores elevados foram definidos como percentil de 95. Para HDL‐C, os valores baixos foram definidos como percentil < 10 e os níveis desejáveis foram definidos como percentil > 50. Os percentis escolhidos são semelhantes aos das diretrizes pediátricas do Instituto Nacional do Coração, Pulmão e Sangue (NHLBI).1
Para determinar as faixas etárias para cada parâmetro lipídico, Slhessarenko et al. usaram a análise de variância (Anova) e o teste de Kruskal‐Wallis. O HDL‐C precisou de quatro faixas etárias, triglicerídeos e colesterol total precisaram de três faixas etárias, LDL‐C precisou de duas faixas etárias e colesterol não HDL não precisou de faixa etária. Isso contrasta com as diretrizes do NHLBI, que recomendam o estabelecimento de uma faixa etária somente para triglicerídeos (ou seja, 0‐9 anos e 10‐19 anos).1 Apesar de relativamente semelhantes como um todo, os limites de tomada de decisão no estudo de Slhessarenko et al.13 diferem dos atualmente usados nas diretrizes brasileiras,9‐11 que tiveram como base as diretrizes pediátricas americanas.1,8 As maiores diferenças observadas foram os limites de tomada de decisão mais elevados com relação aos triglicerídeos obtidos da população pediátrica brasileira, em comparação com os usados atualmente nas diretrizes nacionais. As diferenças nos limites de tomada de decisão com relação aos triglicerídeos foram mais nítidas na faixa etária mais nova (ou seja, 1‐< 2 anos), o que pode resultar de uma redução no tempo de jejum recomendado (ou seja, jejum de 3 horas < 2 anos de idade, em comparação com jejum de seis horas para aqueles entre 2‐5 anos). Os limites de tomada de decisão com relação ao colesterol total foram mais elevados na população pediátrica brasileira de faixas etárias mais velhas (ou seja, 9‐<13 anos), em comparação com as diretrizes do NHLBI e brasileiras anteriores, ao passo que foram idênticas ou inferiores na população pediátrica brasileira de faixas etárias mais novas (ou seja, 3‐<9 anos e 1‐<3 anos, respectivamente). Uma tendência semelhante foi observada para HDL‐C, na qual os indivíduos mais velhos (ou seja, 4‐<13 anos) tinham um limite de tomada de decisão mais elevado em comparação com as publicações anteriores, ao passo que os limites foram menores na população pediátrica brasileira de faixas etárias mais novas (ou seja, 1‐<2 anos, 2‐<3 anos e 3‐<4 anos). Isso pode ser resultado de um menor tamanho da amostra de crianças mais velhas. O tamanho médio da amostra por idade/ano foi 190 para 1‐<9 anos; contudo, um tamanho da amostra muito menor foi obtido para crianças mais velhas (ou seja, n = 112 (nove anos), n = 114 (10 anos), n = 65 (11 anos) e n = 57 (12 anos). Isso pode ter levado a estimativas menos precisas de limites de tomada de decisão com relação às faixas etárias mais velhas, resultou em maior discrepância entre os pontos de corte anteriormente publicados e os estabelecidos recentemente por Slhessarenko et al. Por fim, os limites de tomada de decisão com relação ao LDL‐C foram menores do que os anteriormente publicados para toda a faixa etária pediátrica. Essas diferenças também podem destacar a necessidade de estabelecer limites de tomada de decisão com base em uma população representativa, de referência local em vez de adotar uma população diferente (por exemplo, América do Norte). Contudo, para finalmente concluir se os limites de tomada de decisão estabelecidos localmente são mais adequados, seria necessário um grande estudo prospectivo de base populacional com medidas do resultado final para determinar os limites de tomada de decisão mais adequados, que indiquem aumento ou redução do risco de desenvolver doença cardiovascular e, posteriormente, iniciar modificações no estilo de vida e/ou terapias.
O recente estudo de Slhessarenko et al. fornece os limites de tomada de decisão mais atualizados com relação aos parâmetros lipídicos específicos para a população pediátrica brasileira.13 Contudo, as limitações continuam no modelo do estudo e na análise estatística, garantem estudos futuros para continuar a melhorar a precisão dos limites pediátricos de tomada de decisão. Incluir os participantes com sobrepeso, obesos e gravemente obesos nesse estudo pode ter levado a limites de tomada de decisão mais elevados com relação a triglicerídeos e limites de tomada de decisão mais baixos com relação a HDL‐C. Para estabelecimento dos intervalos de referência, incluir todos os participantes sem sintomas clínicos, independentemente de seu IMC, pode ser adequado, pois os intervalos de referência definem a faixa de valores observada na população de referência. Contudo, como os limites de tomada de decisão são usados para fins de classificar um indivíduo como tendo uma doença ou de alto risco de desenvolver uma doença, a população de referência usada não deve apresentar fatores de risco clínico para a doença de interesse. Por exemplo, De Henauw et al. estabeleceram curvas de referência para lipídeos no sangue em crianças europeias e excluíram crianças obesas para garantir que seus valores tenham refletido a variação biológica em uma população saudável.7
As crianças e adolescentes passam por vários estágios de crescimento e desenvolvimento, que são acompanhados de mudanças fisiológicas intensas durante todo o período pediátrico. Portanto, determinar as faixas etárias para cada parâmetro lipídico com base em testes estatísticos, em vez de fornecer um limite de tomada de decisão em toda a faixa etária pediátrica, fornecerá valores de referência mais precisos para interpretação dos níveis lipídicos no sangue. Contudo, estabelecer curvas de percentil em vez de percentis discretos para definir os limites de tomada de decisão com relação aos parâmetros lipídicos fornece uma representação mais precisa dos valores de referência em todas as idades. De Henauw et al. desenvolveram curvas de referência para HDL‐C, LDL‐C, colesterol total, triglicerídeos e razão TC/HDL‐C como uma função da idade, estratificada por sexo, forneceram uma representação visual dos percentis de referência, bem como uma tabela dos percentis para cada intervalo de seis meses.7 É importante também examinar a diferença nos níveis lipídicos por sexo, que não foi analisada no estudo de Slhessarenko et al.13 Foi relatada uma concentração mais elevada de HDL‐C em meninos e concentração mais elevada de triglicerídeos, colesterol total, LDL‐C e TC/HDL‐C em meninas.7 Outro estudo europeu sobre os níveis pediátricos de lipídeos no sangue relatou similarmente concentrações mais elevadas de triglicerídeos, colesterol total e LDL‐C em meninas, em comparação com meninos, apesar de também ter relatado concentração mais elevada de HDL‐C em meninas.15
As diretrizes do CLSI sobre Definição, Estabelecimento e Verificação dos Intervalos de Referência nas Diretrizes Clínicas e Laboratoriais visam a estabelecer intervalos de referência, em vez de limites de tomada de decisão.14 As diretrizes declaram que os limites de tomada de decisão são diferentes dos intervalos de referência (e dos limites de referência) e são estabelecidos com base no consenso nacional ou internacional para categorizar as pessoas em aumento ou redução do risco de uma doença específica com base em grandes estudos populacionais ou para determinar a probabilidade de um paciente ter uma doença específica com base na sensibilidade e especificidade clínicas. Assim, pode não ser adequado usar essas diretrizes do CLSI para determinar o tamanho adequado da amostra e os modelos estatísticos para sua determinação. Com relação às faixas etárias, as considerações estatísticas e clínicas devem ser exploradas, bem como os testes estatísticos mais específicos, para fins dos limites de tomada de decisão. Por exemplo, Sinton et al. sugerem o uso de faixas etárias somente quando a média dos subgrupos for de no mínimo 25% tão grande quanto a largura do intervalo de referência.16 Adicionalmente, Harris e Boyd propuseram um método que foca na proporção de um subgrupo fora dos limites de referência ser maior do que os 2,5% desejados.17 Apesar de serem específicos para intervalos de referência, esses métodos podem ser modificados para ser mais específicos para os limites de tomada de decisão. Como resultado, esses métodos seriam clinicamente mais úteis do que aplicar a Anova e o teste de Kruskal‐Wallis, que podem fornecer um resultado significativo simplesmente a partir de um grande tamanho da amostra. Adicionalmente, Slhessarenko et al. removeram valores discrepantes maiores ou menores do que aos três desvios‐padrão da média, excluíram menos de 4% dos valores. As diretrizes do CLSI recomendaram aplicar os testes de Dixon e Reed18,19 ou Tukey20 para detecção de valores atípicos ao estabelecer ou verificar os intervalos de referências. Por outro lado, De Henauw et al. não removeram qualquer valor atípico ao estabelecer limites de tomada de decisão com relação aos lipídios. A detecção dos valores atípicos e a remoção devem ser feitas de forma coerente em todos os estudos para melhorar a comparabilidade.
De modo geral, o recente estudo de Slhessarenko et al. fornece limites de tomada de decisão atualizados com relação aos parâmetros lipídicos com base em uma população brasileira representativa.13 Esse estudo fornece uma base para que os futuros estudos continuem a melhorar a precisão da interpretação dos testes lipídicos no sangue no Brasil, inclusive expandir a referência para a população pediátrica acima de 13 anos, estratificar os limites de tomada de decisão com base em sexo, verificar o efeito do estado puberal sobre os limites de tomada de decisão com relação aos níveis lipídicos em adolescentes e estabelecer limites de tomada de decisão com relação aos níveis lipídicos sem jejum, que atualmente são considerados um fator de risco independente para doença cardiovascular.21,22 Nesse estudo, faixas etárias específicas também foram estabelecidas para os parâmetros lipídicos, que não foram contemplados nos estudos usados nas diretrizes nacionais. Por fim, esses limites devem ser usados para atualizar as tomadas de decisões atuais nas diretrizes brasileiras para uma interpretação mais precisa dos testes lipídicos na população pediátrica.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.