O estudo de Mello et al. do grupo do Dr. Mauro Batista de Morais fornece informações adicionais sobre o impacto de viver em uma favela sobre o supercrescimento bacteriano do intestino delgado (SBID), alguns parâmetros nutricionais e antropométricos e acrescenta novos dados sobre a composição da microbiota fecal.1 Com a aplicação de uma técnica de reação em cadeia da polimerase (PCR) em tempo real, os autores compararam a composição da microbiota fecal de crianças com ou sem supercrescimento bacteriano no intestino delgado (SBID) e presença de baixa estatura e o nível de hemoglobina e anemia. Foram estudadas 100 crianças, entre cinco e 11 anos, que moravam em uma favela na periferia de São Paulo, Brasil. O SBID foi diagnosticado por meio de teste respiratório (TR) de hidrogênio (H2) e metano (CH4) após a ingestão de 10 gramas de lactulose. Os resultados mostraram que 61% das crianças estudadas apresentaram TR compatível com SBID e menor escore média de estatura/idade ([‐0,48 ± 0,90] em comparação com [‐0,11 ± 0,97]; p = 0,027), bem como hemoglobina capilar ([12,61 ± 1,03g/dL] em comparação com [13,44 ± 1,19g/dL]; p < 0,001).
As crianças com SBID apresentaram maior frequência de Salmonella spp., em comparação com as sem SBID (37,7% em comparação com 10,3%; p = 0,002). Contagens mais elevadas de Eubactérias (p = 0,014) e Firmicutes (p = 0,038) totais foram observadas em crianças sem SBID, ao passo que foi encontrada contagem maior de Salmonella (p = 0,002) nas crianças com SBID.
Primeiramente, os autores precisam ser elogiados em seus esforços, pois envolver os participantes e suas famílias na coleta de amostras respiratórias e amostras de fezes não deve ter sido uma tarefa fácil. Sua experiência com estudos anteriores fez com que eles solicitassem a ajuda de um líder comunitário para garantir a conclusão bem‐sucedida com um maior número de indivíduos.
SBID é definido como um aumento no número de bactérias simbióticas endógenas no intestino delgado e pode ser uma doença assintomática ou apresentar desde sintomas intestinais leves e não específicos a síndrome de má absorção grave.2 Como consequência do SBID, as crianças podem sofrer de deficiências nutricionais, perda de peso e baixa estatura. O desenvolvimento de TRs não invasivos e amplamente disponíveis e um interesse renovado na investigação do SBID têm observado que essa doença é mais prevalente do que observado anteriormente e que isso pode ser uma causa subestimada de morbidez pediátrica. Estudos mostram que o SBID não é limitado a crianças com anomalias estruturais intestinais ou distúrbios gastrointestinais funcionais e de motilidade, porém a doença também afeta aquelas que moram em condições insalubres ou tratadas com inibidores da bomba de prótons.3–6
As bactérias responsáveis pelo SBID são, na maioria das vezes, Gram‐negativas e têm lipopolissacarídeo (LPS) em suas membranas celulares. Os LPS causam o processo inflamatório local, levam a lesões na mucosa que resultam em aumento da permeabilidade intestinal de macromoléculas e síndrome de má absorção consequente e alta fermentação de nutrientes consequentes no cólon e isso pode resultar em maior produção de H2, conforme observado no estudo de Mello et al.1
Apesar de os TRs serem importantes para o diagnóstico das síndromes da má digestão de carboidratos e SBID, falta padronização com relação a indicações de teste, à metodologia de teste e à interpretação dos resultados. Recentemente, foram publicados resultados de uma reunião de consenso por especialistas para desenvolver diretrizes para médicos e pesquisa de teste em adultos.7 Para diagnóstico de SBID, lactulose ou glicose foram usadas e as doses de consenso foram 10 e 75g, respectivamente. Além disso, os TRs são úteis no diagnóstico de constipação associada a CH4 e na avaliação de inchaço/gases, porém não na avaliação de trânsito orocecal. Foi concordado que um aumento de ≥ 20 p.p.m. no H2 aos 90 minutos durante um TR com glicose ou lactulose para SBID é considerado positivo, ao passo que os níveis de CH4 ≥ 10 p.p.m. foram considerados positivos. O diagnóstico de SBID tem como base o surgimento de um pico de H2 na respiração antes do pico colônico. O motivo pelo qual os TRs não são úteis na medicação do tempo de trânsito orocecal é a maior variabilidade inter e intraindividual. Um estudo em adultos mostrou que a média e o desvio‐padrão do tempo de trânsito da boca ao ceco foi de 68 + 24 minutos em não produtores de CH4 e significativamente maior em produtores de CH4 (111 + 52 minutos [p < 0005]).8 A partir da Figura 2 deste artigo, pode‐se calcular que o tempo de trânsito da boca ao ceco foi tão baixo quanto aproximadamente 45 minutos em dois indivíduos e abaixo de 75 minutos em 20 dos 65 indivíduos estudados, independentemente de seu status de produção de CH4. Nesses indivíduos, um pico de H2 aos 60 minutos seria erroneamente interpretado como compatível com SBID. Para complicar ainda mais a interpretação dos resultados dos TRs, não há consenso para crianças. O comprimento do intestino delgado varia entre 90 e 100cm entre três e sete anos e 120 a 160cm naqueles com oito anos ao início da adolescência.9 Não se sabe se o tempo de trânsito orocecal será compatível em crianças com extremos de comprimento intestinal (90 e 160cm). Portanto, ao usar 60 minutos como ponto de corte de elevação de H2 no diagnóstico de SBID, como fizeram Mello et al., há o risco potencial de sobrediagnóstico de SBID naqueles com tempo de trânsito orocecal rápido. Além disso, estudos de validação precoce em adultos feitos com doses de lactulose entre 5‐40g demonstraram que os tempos de trânsito orocecal são menores com aumento nas doses de lactulose.9–11 Um criança de cinco anos pode pesar 14kg (menos se de baixa estatura) e usar a dose de lactulose recebida de 0,7g/kg. Como no estudo,1 a mesma dose foi usada em todos os indivíduos, uma criança com 11 anos, cujo peso seria 35kg, receberia 0,3g/kg de lactulose. O impacto das doses sobre o tempo de trânsito é desconhecido em crianças, porém pode‐se admitir a hipótese de que, em crianças mais novas, uma maior dose por quilograma de peso corporal levaria a um rápido tempo de trânsito e, novamente, sobrediagnóstico de SBID. Em adultos, estudos para comparação de TRs de H2 com lactulose e cintilografia feitos simultaneamente mostraram forte correlação (r = 0,945, p < 0,01).12 Apesar de não haver motivo para suspeitar que essa correlação não existiria em crianças, esses estudos não foram feitos por motivos éticos, na maior parte dos casos.
Independentemente dos problemas descritos acima, os autores observaram baixa estatura e menores níveis de hemoglobina no grupo em quem o SBID foi diagnosticado, corroboraram seus critérios de diagnóstico. Não se pode identificar, a partir deste estudo, se esses achados foram a consequência de má absorção do SBID, baixa ingestão de nutrientes, perdas e desperdícios a partir de doenças recidivas e/ou diarreia ou uma combinação dos dispostos acima.
Os outros gases medidos no estudo foram CH4. As arqueas metanogênicas estão entre os micro‐organismos anaeróbicos presentes na microbiota humana e produzem CH4 ao metabolizar H2 e CO2.13 A arquea metanogênica mais prevalente em humanos é a Methanobrevibacter smithii, que pode constituir até 10% dos anaeróbios da microbiota intestinal. Estudos associaram a excreção de CH4 na respiração com diverticulose, síndrome do intestino irritável, câncer colorretal e constipação crônica com incontinência fecal retentiva. Descobrimos que a prevalência de SBID foi significativamente maior em crianças que receberam três meses de inibidores da bomba de prótons (IBP) em comparação com controles (C), conforme determinado pela excreção de H2 e CH4.5 Apesar de não termos observado diferenças significativas na excreção de CH4 entre os grupos, 19,4% dos IBP e 12,9% dos C apresentariam um resultado falso‐negativo caso o CH4 não tivesse sido considerado.
Por fim, foi observado que as crianças com SBID apresentaram maior frequência de Salmonella spp., em comparação com as sem SBID, ao passo que maiores contagens de Eubaterias e Firmicutes totais foram vistas em crianças sem SBID. Esses achados são diferentes do estudo anterior dos autores que compararam a microbiota de crianças de diferentes níveis socioeconômicos que moram na mesma área urbana.14 Nesse estudo, maiores contagens dos organismos dos filos Eubacteria, Firmicutes e Bacteroidetes totais, Escherichia coli, Lactobacillus spp. e Methanobrevibacter smithii foram encontrados em crianças que moram em áreas pobres, ao passo que maiores contagens de Salmonella spp., C. difficile e C. perfrigens foram observados nas crianças que moram em condições de moradia satisfatórias (p < 0,05). Obviamente muitos fatores influenciam a composição da microbiota, mas não todos ao mesmo tempo.
Há uma diversidade considerável interindivíduos na composição atual da microbiota e ocorrem mudanças na composição microbiana com a idade, com um alto nível de variabilidade nos dois extremos da vida, infância e velhice.15 Por exemplo, um dos fatores ambientais controláveis que influenciam a composição do microbioma hospedeiro é a dieta, na qual uma dieta ocidental com alto nível de gordura, rica em açúcar contribui para um microbioma no qual predomina Bacteroides, ao passo que com alta ingestão de fibras para um microbioma dominado por Firmicutes, com forte correlação entre uma dieta de longo prazo e enterotipos.16 Em termos de sucessão ecológica, a microbiota dominada por Bifidobacterium das crianças muda com o passar do tempo para microbiota dominada por Bacteroidetes e Firmicutes do adulto,17 continua razoavelmente estável até a vida adulta, na ausência de perturbações como mudanças alimentares de longo prazo ou intervenção antibiótica repetida.
Este estudo acrescenta outro importante tijolo na “construção da parede” do entendimento da complexidade da microbiota intestinal normal e anormal, pois ela é afetada por condições ambientais e, por sua vez, como ela afeta a saúde humana.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.