Determine the prevalence of medication use in children and adolescents in 20 municipalities of Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais‐Brazil, showing the main groups and variables that may have influenced use.
MethodsDescriptive population‐based survey sample of 555 interviews, selected by simple random cluster sampling of 137 census tracts. Inclusion criteria were age ≤ 14 years, mandatory interview with the legal guardians, and regardless of having received medications. Regarding the usage pattern, participants were divided into two groups: consumption and non‐consumption of drugs. A descriptive analysis of the variables and tests of association were performed.
ResultsThe prevalence of drug consumption was 56.57%, and 42.43% showed no consumption. The use of medicinal plants was 72.9% for drug users and 74.3% for non‐users. The health conditions for consumption were cough, common cold, flu, nasal congestion or bronchospasm (49.7%), fever (5.4%), headache (5.4%), diarrhea, indigestion, and abdominal colic (6.7%). In cases of self‐medication, 30.57% of the drugs were given by the mother, and 69.42% were prescription drugs. Self‐medication was prevalent using paracetamol (30.2%), dipyrone (20.8%), and cold medicine (18.8%). There was increased use of analgesics/antipyretics, followed by respiratory medications, systemic antibiotics, histamine H1 antagonists, and vitamins/antianemics.
ConclusionsThe prevalence of drugs use in children was high, indicating the need for formulating educational programs aiming at the awareness of caregivers regarding rational use.
Determinar a prevalência do consumo de medicamento em crianças e adolescentes de 20 municípios do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais‐Brasil, mostrando os principais grupos e variáveis que possam ter influenciado o uso.
MétodosEstudo descritivo tipo inquérito populacional domiciliar, amostra constituída por 555 entrevistas selecionadas de maneira aleatória simples por meio de amostragem por conglomerado de 137 setores censitários. Os critérios de inclusão foram idade ≤14 anos, entrevista obrigatória com os responsáveis legais, independente de terem consumido medicamento. Quanto ao padrão de uso os participantes foram divididos em dois grupos consomem e não consomem medicamentos. Realizada análise descritiva das variáveis e aplicados testes de associação.
ResultadosA prevalência de consumo de medicamentos foi 56,57% e o não consumo 42,43%. O uso de plantas medicinais foi de 72,9% para o consumo de medicamento e 74,3% para o não consumo. As situações de saúde para o consumo foram tosse, resfriado comum, gripe, congestão nasal ou broncospasmo (49,7%); febre (5,4%); cefaléia (5,4%); diarréia, “má digestão” e cólica abdominal (6,7%). Na automedicação, 30,57% dos medicamentos foram indicados pela mãe, e 69,42% de prescrições médicas. Destaca‐se na automedicação o uso de paracetamol (30,2%), dipirona (20,8%) e antigripais (18,8%). E um maior uso de analgésicos/antipiréticos, seguido do aparelho respiratório, antibióticos sistêmicos, antagonistas H1da histamina e vitaminas/antianêmicos.
ConclusõesA prevalência do consumo de medicamentos na população infantil foi alta, indicando a necessidade de formulação de programas educativos visando principalmente à conscientização dos cuidadores sobre o uso racional.
Os principais usuários dos serviços de saúde nos países em desenvolvimento são as crianças, e o seu padrão de adoecimento se reflete no consumo de medicamentos.1 Tal consumo, por sua vez, pode ser excessivo por automedicação, uma prática muito difundida no Brasil, induzida pela mídia e realizada sem a indicação e a receita médica. No Brasil, cerca de 80 milhões de pessoas são adeptas da automedicação e o risco dessa prática está correlacionado com o grau de instrução e informação sobre os medicamentos, bem como com a acessibilidade dos mesmos ao sistema de saúde.2
Nesse sentido, alguns autores recomendam atenção especial aos medicamentos utilizados em crianças diante das incertezas quanto à eficácia e segurança, devido à escassez de ensaios clínicos por motivos éticos, legais e econômicos, limitando o conhecimento sobre os efeitos dos mesmos no organismo.3,4 No caso das crianças, a prática do uso de medicamento é baseada principalmente em estrapolações e adaptações do uso em adulto, nas informações obtidas de raros estudos observacionais e no consenso entre especialistas.5
Ainda que escassos em países em desenvolvimento, os estudos de base populacional são necessários para avaliar o uso de medicamentos em crianças.6,7 Estudo realizado no Brasil mostra uma prevalência de 56%, o que indica consumo elevado na população infantil, apontando para o uso expressivo daqueles com restrições de indicação e de faixa etária, principalmente para menores de dois anos.8 Diante do exposto, é recomendável a elaboração de uma lista específica de medicamentos essenciais segundo as necessidades das crianças, com o objetivo de promover o uso racional.9
Com o intuito de realizar contribuições nesta área, foi realizado um estudo epidemiológico de base populacional em crianças de zero a 14 anos residentes em áreas urbanas do Vale do Jequitinhonha, situada na região norte de Minas Gerais, no Brasil. O objetivo foi identificar a prevalência e o padrão de uso e consumo de medicamento com ou sem prescrição, mostrando os principais grupos e tipos de medicamentos empregados e algumas variáveis que possam ter influenciado esse uso.
MétodosFoi realizado um estudo descritivo e exploratório de corte transversal, tipo inquérito populacional domiciliar, de 10 de abril a 20 de julho de 2013. Os critérios de inclusão foram idade menor ou igual a 14 anos, entrevista obrigatória com os responsáveis legais independentemente de terem consumido medicamento. Foram excluídos do trabalho os participantes cujos responsáveis legais não se encontravam presentes no momento da entrevista ou se recusaram a concedê‐la, quando o domicílio sorteado era um estabelecimento comercial e aqueles nos quais que não havia moradores com idade menor ou igual a 14 anos.
A partir da estimativa de uma proporção populacional de 41,4% de automedicação em criança,10 estipulou‐se o número calculado para a constituição da amostra de 672 entrevistas domiciliares para as zonas urbanas de cada cidade (erro aceitável de 5% para uma amostra infinita). Para este cálculo foram utilizados números do censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),11 que mostra um total aproximado de 88.936 indivíduos com idade ≤ 14 anos em 20 municípios do Consórcio Intermunicipal de Saúde do Alto Jequitinhonha, Diamantina, Minas Gerais.
Em relação ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)18 dos municípios estudados, cinco possuem entre 0,558 a 0,582; 14 entre 0,616 a 0,682; e um 0,716, refletindo os indicadores de educação, habitação, saúde, trabalho, renda e vulnerabilidade.
Os domicílios foram selecionados de maneira aleatória simples por meio de amostragem por conglomerado, utilizando‐se como unidade de referência 137 setores censitários urbanos para uma amostra de 672 domicílios definidos pelo IBGE (2010).11 Todavia, optou‐se por sortear um maior número de setores, devido à possibilidade de não se encontrar o número mínimo de indivíduos estipulados, principalmente em setores centrais (casa comerciais) e de bairros antigos com moradores idosos. Para cada setor sorteado foi impresso um mapa do IBGE (2010),11 permitindo a entrevistadora encontrá‐lo no campo e locomover‐se nele, seguindo uma sistemática pré‐estabelecida para a seleção dos domicílios.
Os dados foram coletados por quatro entrevistadores treinados em estudo‐piloto para a validação da coleta empregando um questionário estruturado com perguntas abertas e fechadas. Nos domicílios com mais de uma criança, foi realizado apenas um questionário, sendo o indivíduo selecionado por sorteio, com o uso de uma tabela de números aleatórios.
A variável dependente foi consumo de medicamentos e os participantes foram divididos em dois grupos de estudo: consome medicamento e não consome medicamento; e também automedicação, quando o consumo de medicamento decorreu de orientação leiga; ou por prescrição médica, quando o consumo de medicamento decorreu de consulta e prescrição médica para a afecção que motivou o seu uso. Os medicamentos utilizados foram divididos em grupos e subgrupos de acordo com a última versão da Classificação Anatômica Terapêutica Química (ATC) da OMS.12 Foram considerados dois grupos de variáveis exploratórias: a sociodemográfica e a da utilização de serviço de saúde (público ou privado). Como indicadores socioeconômicos foram considerados: a situação de ocupação dos responsáveis (empregado ou desempregado/aposentado); a renda familiar em salário mínimo vigente à época; e os critérios da Associação Brasileira de Empresas e Pesquisas (ABEP), considerado uma medida de potencial e hábito de consumo.13
Para a análise dos dados, foi inicialmente realizada uma análise descritiva da variável dependente e das variáveis exploratórias, sendo posteriormente aplicados testes de associação (Qui‐quadrado de Pearson e o exato de Fisher). As análises foram processadas utilizando os programas estatísticos Epi‐Info versão 7.0 (CDC/WHO, Atlanta, GE, EUA); R versão 2.12.2.14
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFVJM (parecer 044/11). A população participante foi informada da finalidade do estudo, sendo assinado o termo de consentimento pelo responsável.
ResultadosO estudo incluiu 672 indivíduos, sendo que 117 (17,41%) foram perdas e recusas, resultando em 555 entrevistas. As entrevistas validadas seguiram um padrão similar de distribuição nos quatro meses de estudo, nos 20 municípios (138,5±34,6 entrevistas/semana). A idade média dos indivíduos que consumiram medicamento foi de dois a sete anos (de 38,9%) e sete a 14 anos (43,9%) naqueles que utilizaram medicamentos segundo a prescrição médica e automedicação (fig. 1).
Representação gráfica dos grupos de crianças e adolescentes que consumiram medicamento nos últimos 15 dias prévios à entrevista domiciliar, de acordo com a idade – Municípios do Vale do Jequitinhonha (MG), Brasil, 2014.
Os dados estão representados sem boxand whiskerplots; em cada retângulo (box plot), as linhas horizontais inferiores, intermediárias e superiores representam o 1° quartil (percentil 25), mediana (percentil 50) e 3° quartil (percentil 75), respectivamente. Os limites inferior e superior das linhas verticais representam o menor e maior valor observado, respectivamente. p=0,88 (prova U de Mann‐Whitney).
Considerando o uso de medicações nos últimos 15 dias, a prevalência de consumo foi de 56,57%, não havendo diferença estatística significativa comparando‐se as 20 cidades (teste do Qui‐quadrado; p=0,5). Quanto ao consumo de plantas medicinais, entre as crianças que consomem e não consomem medicamento foi de 72,9% e 74,3%, respectivamente (tabela 1).
Distribuição de variáveis sociodemográficas e de consumo e não consumo de medicamentos nos 15 dias prévios à entrevista domiciliar – Municípios do Vale do Jequitinhonha (MG), Brasil, 2014
Consumo | Não consumo | ||
---|---|---|---|
Características da população | N=314 | N=241 | Valor p |
Faixa etária | |||
< 2 | 17,2 | 14,9 | |
2‐7 | 38,9 | 41,1 | |
7‐14 | 43,9 | 44,0 | 0,74a |
Sexo | |||
Feminino | 48,1 | 46,5 | |
Masculino | 51,9 | 53,5 | 0,77a |
Renda familiar em salários míninos | |||
≤ 1 | 43,3 | 38,2 | |
1‐3 | 37,9 | 45,2 | |
3‐5 | 9,2 | 10,8 | |
≥ 5 | 9,6 | 5,8 | 0,14a |
Estado de ocupação do responsável | |||
Empregado | 79,6 | 81,3 | |
Não empregado/aposentado | 20,4 | 18,7 | 0,69a |
Critério Brasil de Classificação Econômica (ABEP) | |||
E | 1,9 | 0,8 | |
D | 16,2 | 15,8 | |
C2 | 30,9 | 33,2 | |
C1 | 29,9 | 27,4 | |
B2 | 17,2 | 16,2 | 0,68b |
B1 | 2,9 | 5,4 | |
A2 | 1,0 | 1,2 | |
Acesso a serviços de saúde | |||
Público | 79,9 | 81,7 | |
Privado | 19,7 | 17,4 | |
Não respondeu | 0,3 | 0,8 | 0,58a |
Uso de planta medicinal | |||
Sim | 72,9 | 74,3 | |
Não | 26,8 | 24,9 | |
Não respondeu | 0,3 | 0,8 | 0,72a |
ABEP, Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas.
A maior parte dos participantes residia em casas de alvenaria (97,5%) e possuía rede de esgoto (92,9%), rede pública de abastecimento de água (99,5%) e serviço público de coleta de lixo (99%). Constatou‐se que o uso de automedicação foi sem significância estatística (p<0,05) nas faixas etárias, sexo, renda familiar e acesso a serviços de saúde (tabela 2).
Distribuição das variáveis sociodemográficas e de acesso a serviço de saúde, considerando o uso do medicamento por automedicação e prescrição nos últimos 15 dias prévios à entrevista domiciliar – Municípios do Vale do Jequitinhonha (MG), Brasil, 2014
Automedicação | Prescrição médica | ||
---|---|---|---|
Características da população | N=96% | N=218% | Valor p |
Faixa etária | |||
< 2 | 16,7 | 17,4 | |
2‐7 | 43,7 | 36,7 | |
7‐14 | 39,6 | 45,9 | 0,48a |
Sexo | |||
Feminino | 44,8 | 49,5 | |
Masculino | 55,2 | 50,5 | 0,51a |
Renda familiar em salários míninos | |||
≤ 1 | 45,9 | 42,2 | |
1‐3 | 33,3 | 39,9 | |
3‐5 | 8,3 | 9,6 | |
≥ 5 | 12,5 | 8,3 | 0,50a |
Estado de ocupação do responsável | |||
Empregado | 80,2 | 79,4 | |
Não empregado/aposentado | 19,8 | 20,6 | 0,98a |
Critério Brasil de Classificação Econômica (ABEP) | |||
E | 1,0 | 2,3 | |
D | 22,9 | 13,3 | |
C2 | 30,2 | 31,2 | |
C1 | 28,1 | 30,7 | 0,03b |
B2 | 10,4 | 20,2 | |
B1 | 6,3 | 1,4 | |
A2 | 1,0 | 0,9 | |
Acesso a serviços de saúde | |||
Público | 76,8 | 81,7 | |
Privado | 23,2 | 18,3 | 0,41a |
ABEP, Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas.
As principais situações de saúde que motivaram o consumo foram: tosse, resfriado comum, gripe, congestão nasal ou broncoespasmo (49,7%); febre (5,4%); cefaleia (5,4%); diarreia, “má digestão” e cólica abdominal (6,7%). Na automedicação, 30,57% dos medicamentos foram indicados pela mãe, e 69,42% decorreram da utilização de prescrições médicas.
De acordo com a tabela 3, o número de medicamentos consumidos foi proporcionalmente maior na população que recebeu medicamentos seguindo a prescrição médica. Observou‐se, também, uma frequência do uso de analgésicos/antipiréticos, seguido de aparelho respiratório, antibióticos sistêmicos, antagonistas H1da histamina e, por fim, vitaminas/antianêmicos. O consumo de analgésico/antipirético foi mais elevado nos usuários de automedicação, enquanto que os demais foram por prescrição médica. Quanto aos princípios ativos, destacam‐se as altas frequências do uso de paracetamol (30,2%), dipirona (20,8%) e antigripais (18,8%) nos indivíduos automedicados, e naqueles seguindo a prescrição médica de antagonista H1da histamina (31,3%), amoxicilina (21,1%), sulfato ferroso (11,5%) e ibuprofeno (9,2%). (tabelas 1–3 e fig. 1).
Principais medicamentos encontrados nas farmácias domiciliares de acordo com os grupos e subgrupos da classificação Anatômica Terapêutica Química (ATC/OMS) e os padrões de uso nos 15 dias prévios à entrevista domiciliar – Municípios do Vale do Jequitinhonha (MG), Brasil, 2014
Automedicação | Prescrição médica | |||
---|---|---|---|---|
Medicamento | Código ATC | N=96% | N=218% | Valor pa |
Analgésicos/antitérmicos | N02 | 49,0 | 33,5 | |
Paracetamol | 30,2 | 25,2 | ||
Dipirona | 20,8 | 13,3 | ||
Ácido acetilsalicílico | 3,1 | 0,6 | ||
Anti‐inflamatórios não hormonais | M01A | 10,4 | 12,4 | 0,76a |
Ibuprofeno | 7,3 | 9,2 | ||
Nimesulida | 2,1 | 2,8 | ||
Diclofenaco | 1,0 | 0,9 | ||
Ação sobre o aparelho respiratório | R | 20,8 | 22,0 | 0,93a |
Antigripais | 18,8 | 12,4 | ||
Berotec | 1,0 | 6,0 | ||
B2‐agonista adrenérgico | 1,0 | 5,0 | ||
Antibiótico sistêmico | J01 | 11,5 | 30,9 | <0,001a |
Amoxicilina | 7,3 | 21,1 | ||
Bactrim | 2,1 | 2,8 | ||
Cefalexina | 1,0 | 5,5 | ||
Azitromicina | 1,0 | 2,3 | ||
Ação sobre o trato gastrintestinal | A | 3,1 | 2,3 | 0,70b |
Antiespasmódico | 2,1 | 1,8 | ||
Dimeticona | 1,0 | 0,5 | ||
Vitaminas/antianêmicos | A11/B03 | 3,1 | 11,5 | 0,03a |
Sulfato ferroso | 3,1 | 11,5 | ||
Antiparasitários/antielmínticos | P01/P02 | 3,1 | 5,5 | 0,57b |
Albendazol | 2,1 | 3,7 | ||
Mebendazol | 1,1 | 1,8 | ||
Antagonistas H1da histamina para uso sistêmico | R06 | 19,8 | 31,2 | 0,052a |
A prevalência do consumo de medicamentos em crianças de zero a 14 anos de idade, estimada no presente estudo, foi de 56,57%, com base em informação da mãe sobre um período recordatório de 15 dias, semelhante a outros estudos brasileiros nos quais variou de 48 a 56%.6,8 Os métodos utilizados em outros estudos devido à heterogeneidade dificultam a comparação dos dados, visto que a faixa etária investigada e o período recordatório têm grande variação nos diferentes trabalhos, bem como a origem do uso dos medicamentos.
Enquanto alguns estudos investigaram o uso de medicamentos por indicação médica,3 outros avaliaram o uso por automedicação.7,15 Algumas características da amostra deste estudo precisam ser levadas em conta na comparação com dados da literatura, uma vez que as condições socioeconômicas são determinantes conhecidos do consumo de medicamentos.16,17 Portanto, ao interpretar esses dados, deve‐se considerar que a população estudada é residente em uma grande área geográfica do norte de Minas Gerais, pouco heterogênea em termos econômicos, não incluindo estratos mais privilegiados da sociedade no que se refere à renda, educação e acesso a serviços de saúde.
No presente estudo, as variáveis relacionadas às características sociodemográficas e econômicas das crianças e seus responsáveis não apresentaram associação com o consumo de medicamento, estas provavelmente estão associadas à baixa renda familiar mensal, considerando como determinante de consumo de medicamento17 quando a renda era igual ou inferior a três salários mínimos, e que consumiam 1,3 vezes mais medicamentos do que aquelas com renda igual ou acima de três salários mínimos. Além disso, a amostra foi restrita à área urbana dos 20 municípios que apresentam um baixo IDH, com renda familiar acrescida do programa Bolsa Família do Governo Federal e atendidas pelo serviço público de saúde.18
Conforme informado pelas mães, 69,42% dos medicamentos consumidos haviam sido indicados por médicos, e 30,57% por decisão delas próprias. Conforme já constatado,19 observou‐se uma predominância na administração dos medicamentos não prescritos às crianças pelas mães. Tal atitude tem sido atribuída a papéis sociais tradicionalmente delegados às mães, dentre eles, o de prover a saúde da família.
Os dez medicamentos mais utilizados constituíram 77,16% do total, com a predominância de analgésicos/antitérmicos, descongestionantes, xaropes iodados, expectorantes e mucolíticos. A comercialização de fármacos na Suécia tem um rígido controle, no entanto, em um estudo realizado em crianças, os dez fármacos mais utilizados constituem 70% do total.20
Os analgésicos/antitérmicos são frequentemente utilizados em crianças, provavelmente devido ao fato de a febre ser uma manifestação comum, bem como à banalização do emprego dessa categoria de medicamentos pela venda livre. Embora medicamentos como paracetamol e dipirona sejam analgésicos e antipiréticos relativamente seguros para uso em crianças, respeitando as doses adequadas, o uso crônico e abusivo deve ser coibido.21
O paracetamol e o ibuprofeno estão na lista de medicamentos para infância da Organização Mundial de Saúde.22 A segurança da dipirona, analgésico/antitérmico de baixo custo e integrante da lista de medicamentos do Programa Farmácia Popular, tem sido questionada em várias partes do mundo. Resultados do Latinstudy, estudo de caso‐controle multicêntrico realizado em sete locais do Brasil, dois na Argentina e outro no México, apontam para baixa incidência de anemia aplástica (1,6 casos por 1 milhão de habitantes/ano) e ausência de associação com dipirona.23
Entre os medicamentos com ação no trato respiratório, os mais utilizados foram os anti‐histamínicos, fármacos para tosse e expectorantes e as preparações nasais. Diversas revisões sistemáticas têm revelado que não existem evidências suficientes de que estes medicamentos apresentam benefício superior ao placebo no tratamento de sintomas gerados por infecções respiratórias das vias áreas superiores, como congestão nasal e rinorreia associados a resfriado comum,24 etosse aguda.25
Embora alguns dos medicamentos para o trato respiratório, como dexclorfeniramina, e a associação bronfeniramina e fenilefrina sejam contraindicados para crianças menores de dois anos, verificamos que cerca de 17,18% das que usaram esses medicamentos estavam nesta faixa etária.8,26,27 Além dos efeitos adversos intrínsecos de cada substância ativa, existem outros fatores que podem torná‐los potencialmente perigosos para esse grupo etário, incluindo a interpretação incorreta da dose ou do intervalo entre doses, o uso de medidas inadequadas de dosificação, ou ainda a administração simultânea de vários medicamentos, com o intuito de obter maior alívio dos sintomas.8,22
Destacamos ainda o uso expressivo do nimesulida e diclofenaco em crianças com menos de um ano de idade, faixa etária para o qual o medicamento é contraindicado. A eficácia e a segurança deste fármaco para uso em pediatria não estão estabelecidas.8,27
Neste estudo, o uso de plantas medicinais chama a atenção pelo elevado (74,9%) percentual de utilização, correspondendo a 37,7% de chás e 37% de infusões. Mesmo que as evidências de segurança ou efetividade de terapias complementares sejam escassas, se comparadas à terapêutica convencional, tais produtos são geralmente considerados seguros e/ou naturais pelos pais, que os administram aos seus filhos com ou sem ciência do médico.28 Os resultados deste trabalho mostram a importância de um estudo para compreender os aspectos psicológicos e socioculturais que explicam os motivos pelos quais os pais sentem‐se estimulados a adotar esses recursos para amenizar o desconforto dos seus filhos.
Os antibióticos representam o segundo subgrupo mais utilizado pela amostra investigada. Em diversos estudos,1,4 os antibióticos aparecem na lista dos medicamentos mais utilizados por crianças, principalmente naqueles com medicamentos prescritos.8 Sabe‐se que as principais infecções de vias respiratórias são as responsáveis por grande parte de prescrições ambulatoriais de antimicrobianos, revelando o uso previsto de antibióticos.29 Dentre os antibióticos mais estudados, a amoxicilina foi o mais utilizado pelas crianças, resultado similar ao verificado por outros investigadores.8 A amoxicilina é citada em diretrizes internacionais como primeira escolha de tratamento para as infecções mais comuns da infância, como a otite média aguda, faringoamigdalite e sinusite.1
Todos os medicamentos utilizados para o tratamento de crianças devem ser submetidos ao processo de licenciamento para assegurar a qualidade, a segurança e a eficácia nessa faixa etária. Os quatro medicamentos mais usados na amostra analisada (paracetamol, amoxicilina, dipirona e ibuprofeno) possuem uma boa documentação para o uso pediátrico, embora a indicação não seja recomendada em algumas faixas etárias.8,26,27 Por outro lado, os medicamentos para o trato respiratório apresentam poucas evidências de eficácia, conforme discutido anteriormente. Um dos aspectos mais importantes a ser considerado na avaliação das evidências disponíveis em pediatria é como lidar com as questões éticas de proteção da criança na realização de ensaios clínicos controlados. Por definição, estes sempre envolvem algum grau de risco que, na pediatria, deve ser assumido pelos pais, frente a potenciais benefícios que não serão imediatamente usufruídos pelos seus próprios filhos.
Apesar dos benefícios que a indústria farmacêutica proporciona no desenvolvimento de medicamento para adultos, é importante enfatizar que a motivação econômica não se destaca para o de uso pediátrico. O reduzido mercado dos medicamentos em Pediatria, comparativamente a outros grupos etários, como os adultos e os idosos, além das dificuldades inerentes à realização de ensaios clínicos em crianças, torna o desenvolvimento destes pouco atrativo para a indústria farmacêutica.30 No entanto, como proposto por Coelho et al., a adoção de uma lista específica de medicamentos essenciais poderá fazer parte de uma política abrangente para estimular o desenvolvimento e produção de medicamentos para as crianças no país.9
Algumas limitações do presente estudo devem ser consideradas. O inquérito domiciliar está sujeito a vieses por parte dos entrevistadores e dos entrevistados, os quais nem sempre são passíveis de controle. O período em que foi realizada a coleta de dados, abril a julho de 2013, coincidiu com a estação inverno na região, quando aumentou a incidência de viroses e infecções respiratórias, podendo ter contribuído para o consumo mais elevado de algumas classes terapêuticas como, por exemplo, analgésicos, antitérmicos, antibióticos, antitussígenos, expectorantes, mucolíticos e antiasmáticos.26
Na presente pesquisa, para padronização da coleta de dados, foram adotados alguns procedimentos para minimizar o viés de memória, incluindo o período recordatório de 15 dias para avaliar a utilização de medicamentos nas crianças e solicitação da apresentação da embalagem e/ou receita dos medicamentos consumidos.
A prevalência encontrada no presente estudo corrobora os resultados da literatura, que indicam consumo elevado de medicamentos na população infantil. É importante também compreender que o consumo de medicamento parece estar condicionado à baixa renda, com acesso garantido pelo poder público.
Além disso, as crianças de zero a 14 anos de idade, de modo geral, estão em uma fase da vida em que os problemas de saúde que justifiquem o emprego de medicamentos devem considerar as restrições de indicação e faixa etária. O uso de medicamentos, além de ser um indicador de problemas de saúde, reflete também as desigualdades sociais, deficiências e qualidades do sistema de saúde, a regulação de medicamentos do país, a educação médica, hábitos culturais, composição do mercado farmacêutico, entre outros fatores.
A realidade epidemiológica do consumo de medicamentos deve ser considerada pelos profissionais e gestores de saúde para a formulação de programas educativos. Neste sentido, o processo de trabalho da enfermagem inicia com a prescrição de medicamentos na atenção primária, podendo envolver estudos de farmacoepidemiologia e farmacovigilância para conhecer o perfil de consumo, produzindo conhecimentos que possibilitam intervenções que visam à promoção do uso racional de medicamentos.
FinanciamentoFundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMG‐Processo n° CDS‐APQ‐02522‐11).
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
Aos entrevistadores (Alex, Lays e Guilherme), às famílias entrevistadas e à Profa. Dra. Delba.
Como citar este artigo: Cruz MJ, Dourado LF, Bodevan EC, Andrade RA, Santos DF. Medication use among children 0‐14 years old: population baseline study. J Pediatr (Rio J). 2014;90:608–15.