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Vol. 93. Núm. S1.
Páginas 46-52 (novembro - dezembro 2017)
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Vol. 93. Núm. S1.
Páginas 46-52 (novembro - dezembro 2017)
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Identification and initial management of intoxication by alcohol and other drugs in the pediatric emergency room
Identificação e manejo inicial de intoxicações por álcool e outras drogas na sala de emergência pediátrica
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Thiago Gatti Piancaa, Anne Orgle Sordib, Thiago Casarin Hartmannb,c, Lisia von Diemend,
Autor para correspondência
lisiavd@gmail.com

Autor para correspondência.
a Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência, Porto Alegre, RS, Brasil
b Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Serviço de Psiquiatria de Adição, Porto Alegre, RS, Brasil
c Centro de Saúde Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários, Serviço de Emergência Psiquiátrica, Porto Alegre, RS, Brasil
d Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Porto Alegre, RS, Brasil
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Tabela 1. Indicação de Intervenção Breve conforme escore do Audit
Abstract
Objective

To review the screening, diagnosis, evaluation, and treatment of intoxication by alcohol and other drugs in children and adolescents in the emergency scenario.

Data source

This was a narrative literature review.

Data summary

The detection of this problem in the emergency room can be a challenge, especially when its assessment is not standardized. The intentional and episodic use of large amounts of psychoactive substances by adolescents is a usual occurrence, and unintentional intoxication is more common in children younger than 12 years. The clinical picture in adolescents and children differs from that in adults and some particularities are important in the emergency scenario. After management of the acute condition, interventions targeting the adolescent at risk may be effective.

Conclusion

The diagnosis and treatment of intoxication by alcohol and other drugs in adolescents and children in the emergency scenario requires a systematic evaluation of the use of these drugs. There are few specific treatments for intoxication, and the management comprehends support measures and management of related clinical complications.

Keywords:
Binge drinking
Substance abuse
Substance‐related disorders
Pediatric emergency medicine
Resumo
Objetivo

Revisar o rastreamento, o diagnóstico, a abordagem e o tratamento das intoxicações por álcool e outras drogas de crianças e adolescentes no contexto de emergência.

Fontes dos dados

Foi feita uma revisão narrativa da literatura.

Sumário dos achados

A detecção desse problema na sala de emergência pode ser um desafio, especialmente quando sua avaliação não é padronizada. O uso intencional e em grandes quantidades episódicas de substâncias psicoativas é o padrão em adolescentes e a intoxicação não intencional é mais comum em crianças menores de 12 anos. O quadro clínico em adolescentes e em crianças difere dos adultos e algumas particularidades são importantes no contexto de emergência. Após o manejo do quadro agudo, intervenções com vistas ao adolescente de risco podem ser efetivas.

Conclusão

O diagnóstico e o tratamento das intoxicações por álcool e outras drogas em adolescentes e crianças em emergência requer uma avaliação sistemática do uso dessas drogas. Há poucos tratamentos específicos para intoxicação e o manejo é de apoio e das complicações clínicas relacionadas.

Palavras‐chave:
Consumo excessivo de álcool
Abuso de substâncias
Distúrbios relacionados a substâncias
Medicina de emergência pediátrica
Texto Completo
Introdução

O uso de substâncias psicoativas (SPA) entre adolescentes é um problema mundialmente prevalente. No Brasil, o beber episódico pesado ainda é maior entre os meninos (24%), mas aumentou entre as meninas (de 11% para 20%).1 O uso de drogas, exceto álcool e tabaco, foi reportado por 24% dos estudantes de ensino médio e fundamental, são os mais prevalentes energético com álcool (15%), maconha (6%), inalantes (9%), ansiolíticos (5%) e cocaína (2,5%).2 Nas emergências pediátricas é esperada uma proporção maior de adolescentes usuários de SPA devido a sintomas de intoxicação, complicações de doenças pré‐existentes e por lesões traumáticas.

O desafio no atendimento desses pacientes começa na detecção do problema. Quando não há um protocolo estabelecido para a investigação do uso de SPA na emergência, a frequência e a gravidade desse uso são geralmente subestimadas.3 O retardo ou o não diagnóstico de um transtorno por uso de SPA na emergência pode aumentar o tempo de internação, os custos e o risco de reinternações.4

O atendimento da intoxicação relacionada ao uso SPA entre adolescentes envolve inicialmente o diagnóstico e o tratamento sintomático e/ou abordagem das outras consequências do uso. Após o manejo do quadro agudo, a emergência é um local importante de encaminhamento para tratamento e para abordagens preventivas em relação aos transtornos relacionados ao uso de SPA. O objetivo desse artigo é descrever a avaliação, o diagnóstico, os sintomas e a abordagem inicial da intoxicação de SPA, bem como intervenções breves para adolescentes em risco.

DiagnósticoRastreamento do uso de substâncias

Um bom instrumento de rastreamento para ser usado em sala de emergência deve ser breve, de fácil implantação e com uma sensibilidade e especificidade adequadas, a fim de complementar a avaliação clínica do paciente e dar subsídios para a intervenção terapêutica. A literatura é bastante controversa na indicação de instrumentos de rastreamento para detecção do uso ou do diagnóstico dos problemas que envolvem SPA e não existe uma diretriz específica para essa avaliação no público jovem.5 Atualmente, o de que dispomos são alguns questionários validados, bem como alguns testes de análise bioquímica que avaliam a presença de SPA em matriz biológica.

Vários instrumentos já foram testados para esse público, mas o Craft (Care, Relax, Alone, Family, Friends, Trouble) e o Audit (Alcohol Use Disorder Identification Test) são os de melhor desempenho.6 A vantagem do Craft é que ele avalia também o consumo de múltiplas drogas, com uma sensibilidade e especificidade moderadas. Para problemas com álcool, o Audit foi o que demonstrou maior sensibilidade e especificidade (95% e 77%; respectivamente) e pode ser aplicado em cerca de dois minutos. O ponto de corte mais adequado para determinar problemas relacionados ao consumo de álcool é 3.7 É importante ressaltar também que a única pergunta, “Qual a frequência de vezes que você bebeu no mês anterior?” com uma resposta maior ou igual a três episódios, apresentou uma sensibilidade de 90% e especificidade de 84% para detecção desse problema.7

Os testes bioquímicos para detectar consumo de substâncias têm utilidade prática em várias situações clínicas. O teste do etilômetro e o teste rápido de urina se mostram como opções interessantes para uso na emergência, devido à rapidez do resultado e por identificarem o consumo recente de SPA.8 A testagem no ar expirado através do etilômetro tem custo baixo, é pouco invasiva e tem boa correlação com a alcoolemia, é muito útil para a avaliação de intoxicação recente por álcool. Os testes de urina são feitos a partir de uma fita‐teste que pode medir a presença de metabólitos das mais variadas classes de SPA de consumo recente. O tempo de detecção é variável para cada substância: maconha de um a 30 dias (depende de se o uso for agudo ou crônico), cocaína de um a três dias, anfetaminas de dois a quatro dias, benzodiazepínicos e barbitúricos até sete dias.9 Os testes de rastreamento de urina podem apresentar resultados falso‐negativos em função de pontos de coorte de detecção altos, mas o teste falso‐positivo é improvável, ainda mais em um ambiente de emergência em que a probabilidade pré‐teste já é alta, se o exame for feito em decorrência de suspeita clínica.8

Os testes de drogas entre adolescentes incluem sempre importantes aspectos éticos e de confidencialidade com os pais. Como regra geral, o adolescente deve sempre consentir com o exame. Em situações graves como vítimas de acidente, tentativa de suicídio, convulsões ou outras situações de risco em que não for possível obter o consentimento do paciente, justifica‐se a feitura sem o seu consentimento.8 Em relação à confidencialidade, o adolescente deve autorizar que os pais tenham acesso ao resultado, que só deve ser informado aos pais, contra a vontade do paciente, se for identificada alguma situação de risco agudo.8

Avaliação e manejo do uso de substâncias

Quando um adolescente em uso de SPA é identificado, torna‐se necessária uma avaliação mais detalhada do uso. Em um contexto de emergência, as informações sobre o uso concomitante de outras SPA, as quantidades e o tempo desde o último consumo são fundamentais no manejo. Como base nesses dados, deve‐se estimar se os sintomas de intoxicação irão aumentar ou diminuir nas próximas horas. Se for possível, é importante obter informações sobre a idade de início e de progressão para o uso de cada SPA, frequência e variabilidade do uso, além das consequências diretas e indiretas do uso em relação aos domínios: familiar, educacional, social, psicológico e médico. A aplicação dos critérios diagnósticos usados para adultos é bastante questionada nesse contexto, pois os critérios de abstinência e tolerância não se aplicam adequadamente para adolescentes.10 Assim, o foco é identificar o adolescente em risco para o desenvolvimento de problemas com SPA.

Intoxicação por álcool

A intoxicação por álcool é frequente entre adolescentes, cerca de 15% dos consumidores com 15 anos ou mais envolvem‐se em um beber episódico pesado. O principal mecanismo de ação farmacodinâmica do álcool é a facilitação da transmissão inibitória do sistema nervoso central (SNC). Os sintomas da intoxicação aguda por álcool são dose‐dependentes, relacionados ao nível sérico atingido, mas existe grande variabilidade individual na dose necessária para produzi‐los.11 Os sintomas mais comuns são: alteração do humor ou comportamento, fala arrastada, incoordenação, marcha instável, nistagmo, déficit na atenção ou memória e, em casos mais graves, estupor ou coma. É importante ressaltar que os efeitos sobre o nível de consciência seguem um continuum de acordo com a concentração sanguínea do álcool, vão da sedação leve ao coma.11 Além disso, o álcool pode causar diversos efeitos metabólicos potencialmente letais. A hipoglicemia é um efeito raro em adultos, mas crianças e adolescentes estão sob maior risco de desenvolvê‐lo.12 Outros efeitos metabólicos são acidose, hipocalemia, hipomagnesemia, hipoalbuminemia, hipocalcemia e hipofosfatemia. Efeitos cardiovasculares podem surgir também: taquicardia, vasodilatação periférica e depleção de volume, o que pode contribuir para a indução de hipotermia e hipotensão.11

Em jovens, a intoxicação por álcool tende a ser mais grave do que em adultos, pois eles normalmente não apresentam tolerância aos efeitos desenvolvida pelas exposições repetidas.13 Já adolescentes apresentam uma maior probabilidade de intoxicação proposital, sobretudo em padrão conhecido como beber episódico pesado (binge drinking), que consiste na ingesta de grandes quantidades em curto período. Existem fatores culturais que até estimulam essa e outras práticas, como o “esquenta” ou “aquecimento”, como é conhecido no Brasil, que consiste no consumo de álcool na preparação para saída para festas. O padrão de consumo em episódico pesado repetidas vezes está relacionado com distúrbios cerebrais que podem desenvolver alcoolismo na idade adulta.14

Manejo da intoxicação por álcool

Antes de iniciar o tratamento, é importante estimar a alcoolemia. Se o etilômetro estiver disponível é uma boa opção, pois o ar expirado tem uma boa correlação com a alcoolemia. Se a alcoolemia estiver aumentando, o adolescente deve ser atentamente monitorado para a depressão do SNC. Quando não houver essa medida objetiva, pode‐se tentar estimar através da quantidade consumida e há quanto tempo foi feito o último consumo. Para uma estimativa grosseira em adolescentes mais velhos, pode‐se calcular a metabolização de uma dose (14g de etanol) por hora. O manejo da intoxicação aguda para todos os indivíduos deve ser focado nas complicações clínicas apresentadas, como correção da hipoglicemia, hipomagnesemia ou manejo da agitação. Para a agitação grave, devem‐se preferir antipsicóticos típicos, como o haloperidol, por menor chance de interação com álcool. A prevenção da aspiração de conteúdo gástrico deve ser buscada com a administração de antieméticos, assim como a garantia da via aérea, depende do grau de sedação do paciente. Busca‐se acesso venoso, se necessário, para garantir a administração de fluidos. Em crianças e adolescentes, o tratamento segue as mesmas diretrizes, com especial atenção para a hipoglicemia e a hipotermia.12 Alguns estudos mostraram efeito benéfico da metadoxina para aceleração do metabolismo do álcool e diminuição do tempo de intoxicação na dose única de 900mg EV em adultos.15 Não há estudos de metadoxina para esse fim na população pediátrica.

Intoxicação por maconha

A maconha é a segunda droga mais usada por adolescentes. O quadro usual de intoxicação normalmente envolve os seguintes efeitos:16 euforia, sensações prazerosas, diminuição da ansiedade, da depressão e da atenção. Alguns usuários mais ansiosos, psicologicamente vulneráveis ou inexperientes com a droga podem apresentar aumento da ansiedade, disforia e crises de pânico. São comuns vasodilatação e vermelhidão das conjuntivas (um dos sinais mais característicos do uso), podem ocorrer também hipotensão postural e síncope. Em alguns casos há aumento da pressão arterial, boca seca, aumento do apetite, nistagmo e fala arrastada.16 Podem ocorrer mudanças na sensopercepção: as cores se tornam mais claras e a música mais vívida. A percepção de espaço, o tempo de reação, a atenção, a concentração, a memória e a avaliação de risco também são alterados. Esses últimos permanecem alterados por muito mais tempo do que a sensação de intoxicação subjetiva e tais efeitos podem permanecer por até 12 a 24 horas após o uso.

A maconha aumenta a frequência cardíaca para até 160 batimentos por minuto durante alguns minutos após o uso,16 efeito dose‐dependente e que provavelmente não é relevante em jovens, a menos que apresentem algum problema cardiovascular prévio. Todavia, já foram descritos casos de arritmias associadas ao uso de cannabis. Seu uso aumenta o risco relativo de infarto em 4,8 vezes no período de uma hora após o uso.17 Entre pacientes admitidos em hospitais gerais na França por uso de maconha, 29% apresentaram alguma complicação cardiovascular, desses 3,5% tiveram infarto do miocárdio e 2% apresentaram acidente vascular cerebral, sem que houvesse outra causa aparente a não ser o uso de maconha.18 Além disso, 31% dos pacientes apresentavam queixas respiratórias (dispneia ou hemoptise), dos quais 3,5% tiveram pneumotórax espontâneo.

Não é infrequente a ocorrência de surtos psicóticos associada ao uso de maconha quando usada em grandes quantidades, ou através do uso de preparados com maior concentração.16,19 Em até 9,5% dos usuários, podem ocorrer surtos psicóticos que duram mais do que a intoxicação.19

Manejo da intoxicação por maconha

O manejo da intoxicação por canabinoides é predominantemente de apoio. A maioria dos casos de intoxicações leves resolve‐se em poucas horas, podem ser mais bem confortados ao se acomodarem os pacientes em quartos com iluminação leve, poucos estímulos e, em casos de muita agitação, podem ser usados benzodiazepínicos, como diazepam na dose de 5mg por via oral. Nos casos nos quais há complicações cardíacas ou respiratórias, o manejo da complicação deve ser feito de acordo com a etiologia subjacente. Não é recomendado o uso de carvão ativado para os casos de ingestão de maconha.20 Os casos que apresentam psicose devem ser tratados com antipsicóticos, preferencialmente os atípicos, pela menor incidência de efeitos adversos.

Intoxicação por ecstasy

A 3,4‐metilenodioximetanfetamina (MDMA), popularmente conhecida como ecstasy, é uma substância consumida usualmente por frequentadores de festas de música eletrônica (raves). Há uma tendência de aumento considerável na prevalência e seu uso está associado com complicações potencialmente fatais. Os efeitos agudos da intoxicação por MDMA são um misto da classe dos alucinógenos e dos estimulantes. Seus efeitos fisiológicos mais comuns são hipertermia, hipertensão, taquicardia, sudorese, hiponatremia (por secreção inadequada de hormônio antidiurético), tensão muscular, bruxismo e insônia. Os sintomas psicológicos são euforia, mudanças na sensopercepção (aumento do estímulo tátil, alucinações, aumento na percepção das cores e sons); podem ocorrer ataques de pânico e psicoses tóxicas. O pico de ação acontece em torno de duas horas após o consumo, com meia‐vida em torno de oito horas. Importante notar que a farmacocinética do MDMA é não linear, isto é, aumentos pequenos na dose oral podem aumentar muito a concentração sérica.

Manejo da intoxicação por ecstasy

O manejo da intoxicação aguda é principalmente de apoio, direcionado aos sintomas apresentados pelos pacientes. O sintoma mais preocupante é a hipertermia, potencializada pelo contexto no qual a droga é usada, de ambiente quente e com atividade física intensa.21 Agitação e convulsões devem ser controladas com benzodiazepínicos, efeitos cardiovasculares com beta‐bloqueadores e a temperatura com medidas externas de resfriamento. Deve‐se atentar para os quadros de desequilíbrio hidroeletrolítico devido ao intenso consumo de água, comum a esses usuários. Antipsicóticos devem ser evitados, pela diminuição do limiar convulsivante.22

Intoxicação por cocaína

A via de administração da cocaína irá influenciar o início de ação, a intensidade e a duração dos efeitos. As vias fumadas (crack) e a injetável terão efeitos mais intensos, de curta duração, mas com um pós‐efeito de fissura e disforia. Já na via inalada, os efeitos são menos intensos, mas com maior duração. A busca pelo atendimento na emergência em geral é pelos efeitos psíquicos ou cardíacos. Os efeitos comuns são de excitação, euforia e autoestima elevada, mas doses elevadas levam a ansiedade, agitação, irritabilidade, sintomas paranoides e fissura intensa. Em relação aos efeitos cardíacos, a cocaína produz um efeito dose‐dependente de aumento na frequência cardíaca, pressão arterial e vasoconstrição. Há um aumento da demanda cardíaca, podem ocorrer isquemia e arritmia ventricular e supraventricular (por efeito direto ou pela isquemia). O uso da droga provoca aumento da temperatura, diminuição da transpiração e da circulação periférica, pode produzir um quadro de hipertermia grave.23 As complicações que ocorrem no SNC são convulsões, isquemia ou hemorragia cerebral, cefaleia e sintomas neurológicos focais. As convulsões podem ocorrer após uso de grande quantidade, mesmo sem foco epilético prévio. Do ponto de vista pulmonar, podem ocorrer pneumotórax, pneumomediastino ou pneumopericárdio em consequência da prática de valsalva para evitar a exalação da droga. A vasoconstrição e o aumento da coagulação podem levar à isquemia e infarto de vários órgãos além do coração e cérebro, como pulmões, rins, baço e intestino. A intoxicação concomitante com álcool aumenta a chance e a gravidade das complicações. Outro fator importante são os adulterantes presentes na cocaína em pó, o levamisole é o mais importante. Esse pode ocasionar agranulocitose e vasculite cutânea com necrose da pele.24

Manejo da intoxicação por cocaína

O diagnóstico é clínico e pode ser auxiliado por exame de urina ou exames para avaliar as complicações, como eletrocardiograma, enzimas cardíacas, tomografia de crânio etc. O manejo inicial é de apoio e devem ser priorizados o tratamento da agitação, hipertensão e hipertermia ou as complicações presentes. O uso de benzodiazepínicos, como diazepam, é o tratamento de escolha para a agitação e para aliviar os sintomas cardiovasculares. Pacientes com hipertermia devem ser resfriados rapidamente, idealmente em até 30 minutos. Para o tratamento das complicações, o tratamento é o de rotina, mas alguns cuidados devem ser tomados. Beta‐bloqueadores não devem ser usados, pois podem agravar a vasoconstrição e hipertensão.

Intoxicação acidental em crianças

Recentemente, tem se tornado mais comum o consumo acidental de SPA por crianças. Quando a ingestão não foi presenciada por um adulto, é preciso um alto grau de suspeição para fazer o diagnóstico. A apresentação de sintomas psiquiátricos e neurológicos em crianças sem uma patologia identificável deve levar a pensar em intoxicação acidental por alguma SPA. Crianças tendem a se apresentar com intoxicação por etanol quando ocorre algum consumo acidental de algum produto que o contenha em sua composição, como enxaguantes bucais, cosméticos, produtos de limpeza ou bebidas deixadas pelos pais em casa. Tornar tais substâncias inacessíveis às crianças reduz significativamente a probabilidade de acidentes.25

Em especial, há relatos de aumentos na frequência de casos de envenenamento por maconha em crianças nos Estados Unidos, concentrado nos estados em que houve a descriminação.26 A legalização do uso de maconha possibilitou a venda de várias apresentações comestíveis, inclusive sob a forma de balas e doces, que podem inadvertidamente ser consumidas por crianças.27 Entre os principais sintomas apresentados na sala de emergência por crianças menores de três anos que consumiram maconha estão: taquicardia sinusal (58,6%), midríase (48,3%), diminuição do nível de consciência (34%, Escala de Glasgow < 12), sonolência (24%, Escala de Glasgow 12‐14), hipoventilação (20,6%), agitação (10,3%) e convulsões (23,53%).27 Em crianças maiores, também são mais comuns os sintomas neurológicos, especialmente a sedação, mas também podem se apresentar com ataxia, agitação, irritabilidade ou ainda com sintomas gastrointestinais. Os sintomas cardiorrespiratórios são mais raros.26

A exposição acidental a maconha não costuma levar a consequências graves, mas pode resultar em morbidade importante pela necessidade de atendimento e cuidados de emergência, como exames e procedimentos.28 Já as exposições não intencionais a cocaína são raras em crianças (6%), porém resultam em um quadro mais grave do que exposições a outras substâncias.29 Um estudo retrospectivo com crianças menores de três anos admitidas a emergência com exposição confirmada a cocaína29 mostrou que os sintomas mais comuns são taquicardia (50%) e convulsões (33%), seguidos de agitação (25%), diminuição do nível de consciência (22%), sintomas gastrointestinais (17%), febre (14%), hipertensão (14%), depressão respiratória (11%), cianose (8%), midríase (8%) e ataxia (8%). Cerca de 40% podem precisar de cuidados intensivos e em 27% ocorreram eventos mais graves, como múltiplas convulsões, necessidade de intubação, falência renal e rabdomiólise.23 Podem ocorrer também sintomas respiratórios (especialmente quando a exposição se dá pelo crack) e febre.30 O manejo é predominantemente de apoio: pacientes com manifestações cardíacas devem ser monitorados por ECG e enzimas cardíacas por 8‐12 horas na ausência de complicações, que devem ser tratadas de acordo com os protocolos vigentes. Pode ser necessário o uso de carvão ativado para desintoxicação, na dose de 0,5 a 1mg/kg peso corporal.31 Em crianças, a intoxicação acidental por MDMA é um importante diagnóstico diferencial de convulsões com hipertermia e os pais normalmente negam o uso da substância.32

Intervenção breve

A admissão em uma sala de emergência após uma intoxicação por SPA, bem como o atendimento por uma complicação dessa, é uma janela de oportunidade para intervir no jovem e nos seus responsáveis, com vistas a desenvolver uma crítica ao uso dessas substâncias. As intervenções breves (IB) são baseadas em técnicas de Entrevista Motivacional (EM) e dessa forma compreendem uma abordagem empática, não julgadora, não confrontativa, com vistas ao aconselhamento e ao desenvolvimento de motivação para a mudança de comportamento.33

Um dos manuais mais consagrados sobre IB para usuários de álcool sugere avaliar a zona de risco de uso de álcool antes de aplicar a intervenção, conforme escore do Audit. A partir disso, deve‐se aplicar a conduta mais indicada, conforme a tabela 1. A conduta de educação configura‐se em fornecer informações sobre os riscos associados ao uso de álcool e, sempre que possível, fornecer alguma brochura. O conselho significa fornecer feedback sobre o resultado do Audit, educá‐lo sobre os riscos e orientar a como mudar esse comportamento. O aconselhamento breve, além de educar sobre os riscos e fornecer feedback, também sustenta a ideia engajar o jovem na mudança de comportamento a partir do estabelecimento de objetivos relativos a essas mudanças. Nessa situação, é importante orientar também a família a monitorar esses objetivos e fornecer informação de onde buscar ajuda, caso seja necessário. Os indivíduos que apresentam escores do Audit acima de 20 são aqueles que já apresentam um padrão de dependência do uso de álcool e, portanto, devem ser referidos a um especialista para tratamento da patologia.33

Tabela 1.

Indicação de Intervenção Breve conforme escore do Audit

Nível de risco  Intervenção  Escore do Audit 
Zona I  Educação  0‐7 
Zona II  Conselho  8‐15 
Zona III  Aconselhamento breve e monitoramento contínuo  16‐19 
Zona IV  Encaminhamento a um especialista  20‐40 

Audit, Alcohol Use Disorder Identification Test.

A grande maioria dos ensaios clínicos randomizados que envolvem IB em sala de emergência para jovens com intoxicação alcoólica aguda (IAA) é proveniente dos Estados Unidos e da Europa, apenas um estudo foi desenvolvido no Brasil.34 O maior estudo que tem sido desenvolvido acontece na Alemanha. O HaLT (Stop – close to the limit) é um projeto de prevenção baseado em uma IB em jovens com IAA na sala de emergência e que já foi implantado em mais de 170 localidades.35 A grande maioria dos estudos procurou avaliar como desfecho primário a redução do consumo de álcool após a aplicação de uma IB. Todavia, muitos não encontraram diferença significativa em relação aos grupos controle. Esse resultado é explicado, na maioria das vezes, pelo fato de que o próprio grupo controle também diminuiu o consumo de bebidas alcóolicas após a admissão na emergência. De uma maneira geral, os estudos usaram IB baseadas em técnicas de EM, com duração de cerca de 45 minutos, alguns estudos também usaram abordagens com os pais.33,36 Apesar de os achados serem inconclusivos em relação à quantidade total de bebidas alcoólicas ingeridas após IB em emergências, foi verificado que os jovens que sofreram IB apresentaram uma redução significativa em desfechos secundários, como número de doses ingeridas e número de drinks por semana, dias em que foram ingeridas bebidas alcoólicas, bem como número de episódios de beber pesado em um seguimento de até 12 meses.37,38 Outro achado interessante foi diminuição de acidentes de carro relacionados ao consumo de álcool em quem sofreu IB.38

O único estudo desenvolvido no Brasil mostrou uma população predominantemente masculina (90,3%) e com uma porcentagem alta no que se refere à prevalência de dependência de álcool (37,9% no grupo que recebeu IB; 35,2% nos controles), identificou‐se que em nosso país intervenções direcionadas a tratamento talvez sejam tão importantes quanto intervenções focadas apenas na prevenção. Neste estudo, não houve diferença significativa entre os grupos, mas houve uma redução geral no consumo de álcool nos três meses de seguimento.34

A IB é bem estabelecida para adultos após episódios de intoxicação que procuram atendimento emergencial, mas carece de aperfeiçoamento para adolescentes, tendo em vista que a abordagem integrada com a família se torna muito mais importante nesses casos.

Conclusão

Os quadros de intoxicação por uso de SPA, seja ela acidental ou intencional, são comuns e devem ser de alto nível de suspeição. É importante que o clínico esteja atento aos sinais de intoxicação apresentados, pois o quadro pode facilmente se confundir com outros problemas. O tratamento na emergência é predominantemente de apoio, mas cabe lembrar que a maioria dos casos necessitará atendimento para as causas subjacentes a intoxicação apresentada. Além disso, a entrada na emergência por um quadro de intoxicação por SPA é uma janela de oportunidade para a implantação de medidas de prevenção.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

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Como citar este artigo: Pianca TG, Sordi AO, Hartmann TC, von Diemen L. Identification and initial management of intoxication by alcohol and other drugs in the pediatric emergency room. J Pediatr (Rio J). 2017;93:46–52.

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