É um equívoco comum acreditar que o infarto do miocárdio e o acidente vascular cerebral são eventos agudos que atacam de forma repentina e inesperada adultos de meia‐idade e idosos. No entanto, os estudos Bogalusa, Muscatine, Young Finns e PDAY demonstram claramente que a aterosclerose é uma doença crônica e progressiva que começa na infância.1 A identificação de crianças em alto risco e a implantação de medidas preventivas desde a mais tenra idade são, portanto, criticamente importantes.
Os determinantes cruciais da aterosclerose na adolescência e na idade adulta incluem obesidade, hiperlipidemia, hipertensão, intolerância à glicose, tabagismo, sedentarismo, além de histórico familiar de doença cardiovascular e acidente vascular cerebral precoces. As primeiras lesões estruturais da aterosclerose, estrias gordurosas, podem ser detectadas mesmo em crianças pequenas. O acúmulo de macrófagos carregados de lipídios, monócitos e células T é seguido por agregação plaquetária, proliferação de células musculares lisas vasculares e a formação de uma lesão envolta por músculo liso e colágeno, conhecida como placa fibrosa. Mas, antes do surgimento de estrias gordurosas e placas, há alterações na função endotelial que se manifestam como maior permeabilidade às lipoproteínas, up‐regulação das moléculas de adesão de leucócitos e translocação de leucócitos para a parede arterial.2 Essas estão associados a alterações funcionais na complacência e reatividade micro e macrovascular, as quais estão associadas, ao menos em adultos, à mortalidade por doença cardiovascular.3
Conforme avaliado através de reduções na dilatação mediada por fluxo da artéria braquial e hiperemia mediada por fluxo de vasos periféricos, a disfunção endotelial tem sido demonstrada em crianças e adolescentes com obesidade e resistência à insulina.4 No entanto, os papéis da dieta e da atividade física no controle da função vascular em jovens obesos e magros são mal compreendidos.
O estudo de Penha et al.5 avaliou a relação entre a atividade física em crianças pré‐púberes e a função vascular medida pela pletismografia de oclusão venosa. Esse método avalia alterações no volume do membro após a oclusão venosa. Um aumento agudo no volume do membro durante a obstrução do fluxo venoso reflete o influxo sanguíneo arterial, que depende da capacidade dos vasos arteriais maiores de superar a resistência de pequenas arteríolas; um aumento inadequado do volume do membro durante a oclusão venosa reflete maior resistência, ou menor capacidade vasodilatadora, de vasos de baixa resistência. Assim, a técnica é uma medida indireta da vasorreatividade da microcirculação.
Os autores encontraram uma resposta hiperêmica reduzida à oclusão venosa em crianças com sobrepeso e obesidade, associada a medidas de adiposidade (% de gordura corporal e hiperleptinemia). Curiosamente, não houve relação entre a reatividade vascular arterial e a aptidão física ou atividade física habitual, avaliada por questionário e por um teste de corrida. O desempenho da corrida correlacionou‐se negativamente com a gordura corporal e a circunferência da cintura; ainda não está claro se a diminuição na aptidão física é uma causa ou consequência (ou ambos) da adiposidade.1
Os autores não exploraram os mecanismos pelos quais a obesidade reduz a reatividade microvascular em crianças pré‐púberes. Um defeito no relaxamento vascular pode significar um déficit de geração de óxido nítrico (NO) pelas células endoteliais vasculares ou uma resposta prejudicada das células musculares lisas vasculares ao NO ou a outras substâncias vasodilatadoras endógenas.6,7 A síntese endotelial do NO é controlada em parte pela insulina e por vários outros hormônios e citocinas. Em indivíduos magros, a insulina promove vasodilatação, aumenta a expressão da óxido nítrico‐sintase endotelial (eNOS); essa ação é mediada pela fosforilação da tirosina dos substratos 1 e 2 do receptor de insulina e pela ativação da fosfoinositídeo 3‐quinase (PI‐3 quinase) e Akt. Na obesidade e em outros estados associados à resistência à insulina, a fosforilação da serina dos substratos do receptor de insulina inibe a ativação da PI‐3 quinase e Akt e impede a geração de NO; nessas condições, a insulina promove vasoconstrição através da indução de endotelina‐1 mediada pela proteína quinase ativada por mitógeno (MAPK).6,7 Os indivíduos com sobrepeso neste estudo eram resistentes à insulina, conforme determinado pela hipoadiponectinemia e aumentos no HOMA‐IR e na razão triglicerídeos/HDL‐C. No entanto, a resposta hiperêmica não se correlacionou com medidas de sensibilidade à insulina.
Em paralelo aos seus efeitos sobre a sensibilidade à insulina, a obesidade pode prejudicar a função endotelial através do acúmulo de gordura visceral e perivascular e inflamação vascular: a hipertrofia induzida pela obesidade de adipócitos brancos viscerais e perivasculares é acompanhada pela acidemia gordurosa livre, infiltração de macrófagos e geração de citocinas inflamatórias e espécies reativas de oxigênio. Em conjunto, essas promovem inflamação tecidual, reduzem a disponibilidade de NO vascular e inibem a resposta vasodilatadora de células musculares lisas ao NO.6–8 Outros fatores que contribuem para a perda da complacência vascular na obesidade incluem a ativação do sistema nervoso simpático pela hiperleptinemia,6–8 indução da atividade renina‐angiotensina‐aldosterona via aumento da produção de angiotensinogênio de adipócito branco6–9 e perda de perfusão capilar associada à hipoadiponectinemia.6–10
Qual a significância da disfunção endotelial em crianças com sobrepeso e obesidade? A perda da vasodilatação endotelial provavelmente contribui para a hipertensão, uma comorbidade comum em indivíduos obesos, e para o desenvolvimento de glomeruloesclerose relacionada à obesidade.7 Igualmente ou ainda mais preocupante, evidências experimentais sugerem que a disfunção endotelial pode limitar o fluxo sanguíneo cerebral e predispor a disfunções cognitivas.7
A relação entre disfunção endotelial em crianças pré‐púberes e doença cardiovascular em adultos é menos clara. Nenhum estudo até o momento demonstrou claramente que a disfunção endotelial pré‐puberal predispõe a infarto do miocárdio ou acidente vascular cerebral. Por outro lado, a obesidade durante a infância e adolescência aumenta os riscos de doença arterial coronariana se o excesso de deposição de gordura persistir na vida adulta. Um grande estudo longitudinal (n=2,3 milhões) de adolescentes israelenses11 descobriu que a obesidade na idade média de 17,3 anos estava associada a um aumento de 4,9 vezes no risco de doença arterial coronariana e a um aumento de 4,1 vezes na morte por doença cardiovascular nas idades de 47 a 57 anos. Riscos menores (mas estatisticamente significativos) de eventos coronarianos agudos futuros (aumento de 10% para cada aumento de uma unidade no z‐IMC) foram observados em um estudo de crianças dinamarquesas de sete a 13 anos.12 Por fim, uma metanálise13 mostrou que um DP de aumento no IMC na infância e adolescência (7‐18 anos) prediz um aumento de 14 a 30% no risco de doença cardíaca coronária em adultos.
No entanto, a associação do espessamento intimal carotídeo com obesidade infantil foi eliminada após o ajuste para obesidade em adultos nos estudos Bogalusa, Muscatine e Young Finns.1 Além disso, a mortalidade cardiovascular não aumentou em indivíduos suecos adultos que eram obesos na infância, mas não durante a adolescência ou na vida adulta.14 Dessa forma, a disfunção endotelial em crianças e os riscos relacionados à obesidade para a morbidade e a mortalidade cardiovasculares são potencialmente reversíveis.
Quais medidas podem ser tomadas para reverter a disfunção endotelial em crianças obesas? Sabe‐se que a perda de peso promove a geração de NO e uma combinação de dieta e treinamento aeróbico melhora a função endotelial macrovascular em crianças obesas em seis a oito semanas;15,16 uma intervenção mais prolongada pode ser necessária para melhorar a função endotelial microvascular.17 Acredita‐se que o aumento do fluxo sanguíneo nos membros durante episódios de atividade física pode facilitar o aumento da produção e/ou atividade do NO endotelial. Tanto o treinamento aeróbico quanto o de resistência são eficazes;18 no entanto, os benefícios do exercício físico na função vascular parecem se perder caso o treinamento cesse.15
O aconselhamento dietético e de exercícios físicos pode não ser suficiente para indivíduos com disfunção metabólica mais grave; nesses casos, a adição de um agente farmacológico pode ser útil. Por exemplo, uma literatura emergente sugere que a metformina pode melhorar a função endotelial em adultos com resistência grave à insulina, diabetes mellitus tipo 2 e síndrome dos ovários policísticos.19 O fármaco pode, portanto, proporcionar benefícios cardiovasculares e glicêmicos em adolescentes com pré‐diabetes ou intolerância à glicose evidente. Inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA) e bloqueadores do receptor da angiotensina II (BRAs) melhoram a vasodilatação dependente do endotélio em adultos com doença renal9,20 e podem ser úteis em crianças e adolescentes obesos com hipertensão e/ou microalbuminúria.
Ainda existem lacunas importantes em nosso entendimento sobre o desenvolvimento e a patogênese da disfunção vascular e aterogênese em crianças. Estudos de longo prazo de intervenções dietéticas e de exercícios em indivíduos com sobrepeso e obesos aumentarão nossa capacidade de prevenir complicações vasculares em longo prazo e melhorar a qualidade de vida.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflitos de interesse.