A maioria das grávidas em países desenvolvidos, se não todas, fará um exame de ultrassom para definir o tempo de gravidez e avaliar a saúde e o desenvolvimento do embrião ou feto. Ainda assim, surpreendentemente, poucos estudos de coorte usaram os dados de ultrassom de cuidados de rotina com a saúde ou de pesquisas para testar suas hipóteses. Exames de ultrassom repetidos durante a gravidez oferecem a oportunidade de examinar a relação entre exposições intrauterinas e crescimento fetal e a relação entre os padrões de crescimento fetal e os resultados na criança. A maioria dos estudos sobre programação fetal simplesmente se baseia em uma medida opcional de crescimento fetal: relato do peso ao nascer por parte da mãe ou da parteira. Os resultados no nascimento são apenas medidas brutas resumidas do crescimento fetal e não podem fornecer informações sobre crescimento em diferentes momentos da gravidez. Adicionalmente, os indivíduos podem chegar ao mesmo peso ao nascer ao passar por diferentes trajetórias de crescimento fetal. Pinto et al. devem ser elogiados pelo uso, por parte de um médico clínico, do ultrassom clínico padronizado para testar uma importante questão de saúde pública: os filhos de mães ansiosas ou deprimidas começam a vida de maneira pior antes mesmo de nascer?1
A depressão e a ansiedade durante a gravidez foram associadas a vários resultados ruins em crianças, porém diversas perguntas importantes persistem: que parte da associação observada entre problemas psiquiátricos maternos e o desenvolvimento da criança se deve à variável de confusão do estilo de vida ou a fatores inerentes como condição socioeconômica? Que parte se deve aos efeitos genéticos sobre a psicopatologia materna e o desenvolvimento da criança? O desenvolvimento pré‐natal é particularmente vulnerável à depressão ou à ansiedade em períodos específicos? E os efeitos da ansiedade ou da depressão podem ser diferenciados?
Nos últimos anos, testemunhamos diversas abordagens para tratar da causalidade das associações de exposições intrauterinas e algumas delas levantaram dúvidas sobre as hipóteses de programação fetal. Os projetos de irmãos sugerem que muitos possíveis efeitos colaterais do uso de medicamentos antidepressivos durante a gravidez provavelmente refletem os riscos inerentes.2 Testes comparativos das associações de exposição paterna e materna durante a gravidez sugerem que a associação entre depressão materna e transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) pode ser mais bem explicada pela variável de confusão e a depressão paterna foi associada da mesma forma a esse resultado.3 Às vezes, as variantes genéticas relacionadas a uma exposição podem ajudar a identificar se uma associação de exposição intrauterina e resultados na criança é causal. Entretanto, essa abordagem mendeliana de randomização é complicada, pois a gravidez constitui um curto período de exposição aos genes maternos. Ainda assim, essa abordagem fornece evidências iniciais de que até o consumo muito moderado de álcool durante a gravidez causa efeitos negativos sobre o desenvolvimento da criança.4 Outros usaram as medidas frequentemente repetidas de depressão para identificar um momento durante a gravidez no qual os filhos ficam especialmente vulneráveis – porém os resultados sugerem que a vulnerabilidade não varia.5 Pinto et al. abordam outra pergunta importante para nosso entendimento causal:1 as associações observadas de depressão e ansiedade são específicas? Seus resultados estão em linha com as observações do trabalho de nosso grupo e de outros grupos: a ansiedade durante a gravidez normalmente causa efeitos muito mais fortes sobre o desenvolvimento da criança que a depressão.6 Curiosamente, a ansiedade específica da gravidez é cada vez mais reconhecida como importante fator de risco de resultados no desenvolvimento neurológico. Em contrapartida, as associações observadas atribuídas a sintomas depressivos normalmente são mais bem explicadas por variáveis de confusão, sintomas de ansiedade coexistentes ou depressão pós‐parto. E, novamente, como corretamente enfatizado por Pinto et al., a forma como os sintomas são aferidos, como traços ou estados, com os mesmos instrumentos específicos, é importante.1
Por fim, gostaria de salientar que o tamanho do efeito da associação observada entre ansiedade durante a gravidez e o ganho de peso fetal nesse estudo é improvável. Um filho de uma mãe ansiosa nascido no Centro Hospitalar do Porto pesa mais de 800g a menos do que o filho de uma mãe não ansiosa.1 Mesmo considerando o intervalo de confiança, o tamanho desse efeito não é realista. Os autores discutem o viés de seleção – é possível, porém estou convencido de que o tamanho desse efeito provavelmente refletirá um achado ou uma variável de confusão ao acaso. Observe que Henrichs et al. observaram, em um estudo muito maior e muito bem controlado nos Países Baixos, com exames de ultrassom obstétrico repetidos, que fetos de mães com sintomas significativos de ansiedade durante a gravidez crescem 3,2g a menos por semana.7 Esse estudo do meu grupo foi incorporado ao Generation R (R de Roterdã), uma grande coorte longitudinal de base populacional que acompanha mais de 8.000 crianças desde a vida fetal. Houve vários pontos de coleta de dados nessa coorte e os dados aos 10 anos foram os concluídos mais recentemente. Contudo, os ultrassons fetais repetidos, combinados com os questionários detalhados sobre a gravidez, ofereceram aos pesquisadores do Generation R as oportunidades mais singulares. Ademais, para muitas mães, os exames de ultrassom foram os motivos da participação na coorte em primeiro lugar; no início dos anos 2000, o ultrassom obstétrico de rotina não fazia parte dos planos de saúde normais nem era reembolsado pelas seguradoras. Os pesquisadores do Generation R estudaram as trajetórias do crescimento da cabeça do feto para testar se as exposições maternas durante a gravidez afetam o desenvolvimento neurológico precoce. Não apenas a depressão e a ansiedade maternas, mas também o tabagismo durante a gravidez, o uso de inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS), a falta de suplementação de ácido fólico e a exposição à Cannabis afetam negativamente o crescimento da cabeça do feto.8
Adicionalmente, usamos esses dados para abordar a associação entre trajetórias de crescimento intrauterino e desenvolvimento da criança com técnicas estatísticas semelhantes às de Pinto et al. Encontramos evidências de uma relação do crescimento intrauterino da cabeça com o desenvolvimento motor, porém não com problemas comportamentais ou emocionais de neonatos e crianças em idade pré‐escolar.9 Contudo, precisamos de mais estudos que tentem abordar a importante questão de como e se a ansiedade e a depressão maternas durante a gravidez afetam os filhos. O estudo de Pinto et al. é um maravilhoso lembrete de que o ultrassom obstétrico é uma ferramenta subusada por pesquisadores para ajudar a responder essas perguntas.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflitos de interesse.