Compartilhar
Informação da revista
Vol. 96. Núm. 2.
Páginas 210-216 (março - abril 2020)
Compartilhar
Compartilhar
Baixar PDF
Mais opções do artigo
Visitas
3757
Vol. 96. Núm. 2.
Páginas 210-216 (março - abril 2020)
Artigo Original
Open Access
Refractory functional constipation: clinical management or appendicostomy?
Constipação intestinal funcional refratária: manejo clínico ou apendicostomia?
Visitas
3757
Vanesca P.A. de Arrudaa, Maria A. Bellomo‐Brandãob, Joaquim M. Bustorff‐Silvac, Elizete Aparecida Lomazib,
Autor para correspondência
elizete.apl@gmail.com

Autor para correspondência.
a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Faculdade de Ciências Médicas, Campinas, SP, Brasil
b Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Faculdade de Ciências Médicas, Departamento de Pediatria, Campinas, SP, Brasil
c Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Faculdade de Ciências Médicas, Departamento de Cirurgia, Campinas, SP, Brasil
Este item recebeu

Under a Creative Commons license
Informação do artigo
Resume
Texto Completo
Bibliografia
Baixar PDF
Estatísticas
Figuras (1)
Tabelas (3)
Tabela 1. Tempo de duração e de tratamento da constipação de 28 pacientes com constipação intestinal funcional refratária, classificados de acordo com o tipo de tratamento, apendicostomia ou tratamento clínico
Tabela 2. Sintomas clínicos avaliados no seguimento de 28 pacientes com constipação intestinal funcional refratária, distribuídos quanto ao tipo de tratamento: apendicostomia ou tratamento clínico
Tabela 3. Desfechos segundo padrão de trânsito colônico em pacientes com constipação intestinal funcional refratária e conduzidos com apendicostomia ou tratamento clínico
Mostrar maisMostrar menos
Abstract
Objective

To compare the clinical evolution in patients with refractory functional constipation undergoing different therapeutic regimens: oral laxatives and antegrade enemas via appendicostomy or clinical treatment with oral laxatives and rectal enemas.

Methods

Analysis of a series of 28 patients with a mean age of 7.9 years (2.4–11), followed‐up in a tertiary outpatient clinic. Refractory functional constipation was defined as continuous retentive fecal incontinence after at least a 12‐month period of consensus therapy. After the diagnosis of refractory condition, appendicostomy was proposed and performed in 17 patients. Outcomes: (1) persistence of retentive fecal incontinence despite the use of enemas, (2) control of retentive fecal incontinence with enemas, and (3) control of retentive fecal incontinence, spontaneous evacuations, with no need for enemas.

Results

Six and 12 months after the therapeutic option, control of retentive fecal incontinence was observed only in patients who underwent surgery, 11/17 and 14/17, p=0.001 and p=0.001, respectively. At 24 months, control of retentive fecal incontinence was also more frequent in operated patients: 13/17 versus 3/11 with clinical treatment, p=0.005. In the final evaluation, the median follow‐up times were 2.6 and 3 years (operated vs. clinical treatment, p=0.40); one patient in each group was lost to follow‐up and 9/16 operated patients had spontaneous bowel movements vs. 3/10 in the clinical treatment group, p=0.043. Surgical complications, totaling 42 episodes, were observed 14/17 patients.

Conclusion

Appendicostomy, although associated with a high frequency of complications, controlled retentive fecal incontinence earlier and more frequently than clinical treatment. The choice of one of the methods should be made by the family, after adequate information about the risks and benefits of each alternative.

Keywords:
Functional constipation
Enema
Child
Adolescent
Fecal incontinence
Resumo
Objetivo

Comparar a evolução clínica em crianças com constipação intestinal funcional refratária sob diferentes regimes terapêuticos: laxativos orais e enemas anterógrados via apendicostomia ou tratamento clínico com laxativos orais e enemas via retal.

Métodos

Análise de uma série de 28 pacientes, 7,9 anos (2,4‐11), acompanhados em ambulatório terciário. Constipação intestinal funcional refratária foi definida como manutenção da incontinência fecal retentiva, em terapia consensual, por pelo menos 12 meses. Após diagnóstico de refratariedade, era proposta apendicostomia. Dezessete pacientes realizaram o procedimento cirúrgico. Desfechos: 1. Manutenção de incontinência fecal retentiva em uso de enemas; 2. Controle da incontinência fecal retentiva em uso de enemas; e 3. Controle da incontinência fecal retentiva, evacuações espontâneas, sem necessidade de enemas.

Resultados

Seis e 12 meses após opção terapêutica, controle da incontinência fecal retentiva foi observado apenas nos pacientes operados, 11/17 e 14/17, p=0,001 e p=0,001. Aos 24 meses, controle da incontinência fecal retentiva também mais frequente nos operados 13/17 versus 3/11 tratamento clínico, p=0,005. Na avaliação final, medianas de tempo de seguimento: 2,6 e 3 anos (operados versus tratamento clínico, p=0,40), um paciente em cada grupo abandonou o seguimento e 9/16 operados apresentavam evacuações espontâneas versus 3/10 no tratamento clínico, p=0,043. Complicações cirúrgicas, 42 episódios, acometeram 14/17 pacientes.

Conclusão

A apendicostomia, embora associada a elevada frequência de complicações, controlou a incontinência fecal retentiva de maneira mais precoce e frequente do que o tratamento clínico. A escolha de um dos métodos deverá caber à família, após adequada informação sobre riscos e benefícios de cada alternativa.

Palavras‐chave:
Constipação intestinal
Enema
Criança
Adolescente
Incontinência fecal
Texto Completo
Introdução

A prevalência da constipação intestinal funcional (CIF) em crianças é elevada nas sociedades ocidentais.1 No Brasil, a importância da condição no perfil demográfico das doenças pediátricas revela‐se nos percentuais de ocorrência entre 17% e 36% observados, respectivamente, entre escolares e em ambulatórios especializados.1,2

Metade das crianças seguidas por seis a 12 meses recupera‐se da CIF, alcança hábito intestinal regular sem necessidade de laxativos,3 mas, em aproximadamente 25% dos pacientes atendidos em ambulatórios terciários, as queixas de evacuações infrequentes e incontinência fecal retentiva (IFR) continuarão por longos períodos, podem atingir a vida adulta.3–5 Quando a resposta terapêutica é insatisfatória com doses máximas de laxativos associados ao uso de enemas e não há sinais de alarme para investigação de uma causa orgânica que justifique os sintomas, a condição é denominada de constipação intestinal refratária ou intratável.4

Essa condição inclui um grupo complexo e heterogêneo de pacientes, no qual as variáveis desencadeantes dos sintomas não estão plenamente estabelecidas. A IFR interfere negativamente no convívio social e a qualidade de vida desses pacientes foi avaliada como inferior à de portadores de doença inflamatória intestinal e de doença do refluxo gastroesofágico.6 A necessidade de contornar os sintomas culmina, algumas vezes, na consideração de um procedimento cirúrgico com o objetivo de eliminar a IFR e manter o cólon esquerdo e o reto vazios.7 O uso de enemas anterógrados foi introduzido por Malone em 1990 com objetivo de esvaziar o cólon esquerdo e atingir o controle da incontinência fecal.8 O maior benefício desse procedimento em longo prazo é a possibilidade de recuperação da motilidade colônica.9

Há escassez de literatura publicada quanto a taxas de pacientes com constipação intestinal funcional refratária (CIFR) tratados com apendicostomia que se tornaram independentes da estomia.10 O objetivo deste estudo foi comparar a evolução clínica, em longo prazo, do uso da apendicostomia para feitura de enemas anterógrados associados a laxativos ao tratamento clínico, com laxativos orais e enemas retais, em pacientes com CIFR.

Métodos

Análise de uma série de 28 casos que incluiu pacientes com CIF, acompanhados em ambulatório de serviço terciário de gastroenterologia pediátrica e nos quais os sintomas preenchiam os critérios diagnósticos do Roma III11,12 e não apresentavam sinais de alarme que justificassem a investigação de causas orgânicas. Todos os pacientes fizeram manometria anorretal com registro da presença de reflexo esfincteriano retoanal, certificou‐se a integridade funcional do plexo mioentérico.

Os pacientes estavam incluídos num estudo para avaliação cintilográfica do trânsito colônico e continuaram a ser seguidos sistematicamente nas mesmas bases.13 A avaliação nos retornos foi sistematizada e o comparecimento aos retornos controlado, a obtenção da medicação pela família foi questionada, recursos próprios ou doação, inquerida sobre eventuais efeitos colaterais da medicação e orientada quanto à não modificação nas doses das medicações sem consulta médica. A presença de impactação fecal foi confirmada por relato de incontinência fecal retentiva na anamnese, presença de massa fecal na palpação do abdome e toque retal. Na impossibilidade de toque retal, por não consentimento do paciente, radiografia simples de abdome em AP foi solicitada. Confirmada a impactação fecal, o paciente era admitido ao hospital universitário para feitura de enemas retais com solução glicerinada a 12%, 20mL/kg, três vezes ao dia por três a cinco dias, a depender da avaliação clínica do débito dos enemas, uma avaliação radiológica era feita antes da alta hospitalar.

O diagnóstico de CIFR foi definido se IFR persistisse após, pelo menos, 12 meses de seguimento na especialidade, na vigência de tratamento com doses máximas toleráveis de laxativos osmóticos (lactulose 2mL/kg/dia ou polietilenoglicol 3350, 1,5‐2g/kg/dia) associadas a enemas retais (solução glicerinada a 12% ou solução salina, 20mL/kg/dia, até 500mL), os enemas eram recomendados para serem feitos se evacuação espontânea não ocorresse após dois dias, conforme diretrizes internacionais.10–12 Quando preenchido o diagnóstico de CIFR, foi feito estudo do tempo de trânsito colônico por cintilografia e a confecção da apendicostomia era oferecida a todos pacientes, foi aceita por 17 deles. Após a feitura do estudo de trânsito colônico e após a decisão por qualquer uma das medidas terapêuticas, a evolução desses pacientes continuou a ser sistematicamente registrada em seus prontuários, nas mesmas bases descritas acima.

Para análise da evolução dos sintomas da constipação intestinal durante o seguimento, três desfechos foram considerados: 1. Manutenção da IFR com uso de enemas; 2. Controle da IFR com enemas; e 3. Controle da IFR e evacuações espontâneas, sem enemas.

Estudo do trânsito colônico – O estudo nuclear do trânsito colônico foi feito de acordo com protocolo do serviço.13 Dois tipos de padrões motores foram encontrados, trânsito colônico lento (TCL), quando as imagens de 48 horas mostravam grande parte do marcador no cólon proximal e transverso, e retenção distal (RD), se o radioisótopo havia passado o cólon transverso em 30 horas após a refeição teste, porém persistiu retido na região do retossigmoide por, no mínimo, 48 horas de observação.13,14

Técnica operatória – A apendicostomia foi feita por meio de laparotomia ou laparoscopia, sob regime de internação, por cerca de dois dias. Após duas semanas, a cateterização intermitente era iniciada.15

Soluções para enemas via apendicostomia/retal – Os enemas eram feitos quando evacuações espontâneas não ocorressem após 48 horas com solução salina 0,9% ou solução glicerinada 12%, 10 a 20mL/kg. Nos operados essa solução era infundida com o paciente sentado no vaso sanitário. Quando apresentassem evacuações espontâneas e não usassem a estomia, os pacientes eram orientados a cateterizar o orifício ao menos uma vez ao dia, com o objetivo de evitar estenose.

Análise estatística

Os dados foram analisados com programa IBM Statistc SPSS 20,0. Foram aplicados os testes de Mann‐Whitney e exato de Fisher, respectivamente, para variáveis contínuas e categóricas. Valores de p <0,05 foram considerados significativos.

O estudo foi aprovado e autorizado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da instituição, em 28 de julho de 2015, #: 163.392. CAAE 47138715.9.0000.5404.

Resultados

Em cinco anos, 28 pacientes com CIFR foram diagnosticados. Os dados clínicos referentes ao tempo de duração e tratamento da constipação estão apresentados na tabela 1. A mediana de início da constipação foi de um ano, variou de três meses a sete anos de idade no grupo que optou pela apendicostomia e variou de três meses a três anos de idade no grupo que optou por tratamento clínico, p=0,68, Mann‐Whitney. A mediana da idade dos pacientes no início do acompanhamento no serviço terciário foi 8,3 anos (2,5‐10,8) e 6,7 anos (2,4‐11), respectivamente, para os grupos apendicostomia e tratamento clínico, p=0,70, Mann‐Whitney.

Tabela 1.

Tempo de duração e de tratamento da constipação de 28 pacientes com constipação intestinal funcional refratária, classificados de acordo com o tipo de tratamento, apendicostomia ou tratamento clínico

Mediana (min‐max)  Total  Tipo tratamentopa 
    Apendicostomia  Clínico   
  n=28  n=17  n=11   
    13 meninos  9 meninos   
Duração da constipação até encaminhamento ao serviço terciário (anos)  5(1,3‐0,6)  5,4(1,3‐9,7)  5(2‐10,6)  0,62 
Tempo total de CIF (História pregressa+serviço terciário) (anos)  11,4(4,4‐18,3)  12(6,4‐18,3)  10,8(4,4‐16)  0,20 
Tempo de seguimento na especialidade até a avaliação final (anos)  5,7(1,7‐12)  6,4(2,4‐12)  4(1,7‐7)  0,008 
Tempo de seguimento após a opção terapêutica (anos)  3,3(0,7‐6)  2,6(1,4‐5)  3(0,7‐6)  0,40 

CIF, constipação intestinal funcional.

a

Mann‐Whitney.

A análise comparativa dos desfechos entre os grupos apendicostomia e tratamento clínico está apresentada na figura 1 e na tabela 2. Na avaliação final, um paciente em cada grupo havia abandonado o seguimento. Entre os pacientes que fizeram a apendicostomia, 2/16 suspenderam a irrigação por estenose da estomia após períodos de quatro meses e 2,4 anos, respectivamente, voltaram a usar enemas retais, persistiram com IFR. Para fins de análise dos desfechos, esses pacientes foram mantidos no grupo cirúrgico.

Figura 1.

Porcentagem de pacientes com incontinência fecal retentiva nas avaliações feitas aos seis, 12, 24 meses e na avaliação final, após escolha do tratamento: apendicostomia ou tratamento clínico.

(0.07MB).
Tabela 2.

Sintomas clínicos avaliados no seguimento de 28 pacientes com constipação intestinal funcional refratária, distribuídos quanto ao tipo de tratamento: apendicostomia ou tratamento clínico

Avaliações  Tipo de tratamentopd 
  Apendicostomia  Clínico   
  (n=17)  (n=11)   
Seis meses
IFR em uso de enemas  6 (35,3%)  11 (100%)  0,001 
Controle da IFR em uso de enemas  11 (64,7)  0 (0,0%)   
Evacuações regulares espontâneas  0 (0,0%)  0 (0,0%)   
12 meses
IFR em uso de enemas  3 (17,6%)  11 (100%)  0,001 
Controle da IFR em uso de enemas  14 (82,4%)  0 (0,0%)   
Evacuações regulares espontâneas  0 (0,0%)  0 (0,0%)   
24 meses
IFR em uso de enemas  2 (11,8%)  8 (72,7%)  0,005 
Controle da IFR em uso de enemas  13 (76,4%)  3 (27,3%)   
Evacuações regulares espontâneas  2 (11,8%)  0 (0,0%)   
Avaliação finalc  (n=16)a  (n=10)b   
IFR em uso de enemas  2 (12,5%)  6 (54,6%)  0,043 
Controle da IFR em uso de enemas  5 (32,3%)  1 (9,0%)   
Evacuações regulares espontâneas  9 (56,2%)  3 (27,4%)   
a

Um paciente abandonou seguimento 3,6 anos após a apendicostomia.

b

Um paciente abandonou o seguimento após 2,1 anos de seguimento.

c

Tempo de seguimento após opção terapêutica:

Apendicostomia: 2,5 anos (1,4‐5) Tratamento clínico: três anos (0,8‐6).

IFR, incontinência fecal retentiva.

d

Teste exato de Fisher.

Ocorreram 42 complicações em 17 pacientes, alguns tiveram mais de uma complicação, essas complicações resultaram em necessidade de 22 reintervenções cirúrgicas e abandono da estomia por três pacientes. O uso da apendicostomia foi descontinuado em três situações: um paciente com obesidade mórbida que contraindicou reabordagem cirúrgica, um outro que desistiu da reabordagem após estenose da estomia e um último que abandonou o tratamento após sete complicações. Dois pacientes necessitaram de reconstrução da estomia do lado esquerdo. Na presença de vazamento pelo estoma era feita a construção de uma válvula antirrefluxo com reconfecção da estomia. Assim, 14/17 pacientes (88,2%) mantiveram a adesão às irrigações anterógradas mesmo após a ocorrência de complicações.

Os padrões de trânsito colônico e associação com o desfecho no fim do estudo estão apresentados na tabela 3.

Tabela 3.

Desfechos segundo padrão de trânsito colônico em pacientes com constipação intestinal funcional refratária e conduzidos com apendicostomia ou tratamento clínico

Tipo de tratamento  Total  Trânsito colônicopc 
    RD  TCL   
Apendicostomia  n=16a  n=n= 
IFR em uso de enemas  3 (17,7%)  1 (14,3%)  2 (20,0%)  1,00 
Controle da IFR, em uso de enemas  5 (29,4%)  2 (28,5%)  3 (30,0%)   
Hábito regular  8 (47,0%)  4 (57,2%)  4(40,0%   
Tratamento clínico  n=10b  n=n= 
IFR em uso de enemas  6 (54,5%)  4 (57,1%)  2 (50,0%)  0,87 
Controle da IFR, em uso de enemas  1 (9,0%)  1 (14,3%)  0 (0,0%)   
Hábito regular  3 (27,2%)  1 (14,3%)  2 (50,0%)   

RD, retenção distal; TCL, trânsito colônico lento.

a

Um paciente abandonou o seguimento 3,6 anos após a apendicostomia.

b

Um paciente abandonou o seguimento após 2,1 anos de seguimento.

c

Teste exato de Fisher.

Discussão

Registramos o controle da incontinência fecal retentiva aos seis e 12 meses após opção por apendicostomia ou tratamento clínico apenas em pacientes que fizeram apendicostomia. Aos 24 meses, a frequência de controle da IFR manteve‐se superior nos operados, contudo esses pacientes apresentaram muitas complicações cirúrgicas.

As condições associadas à refratariedade terapêutica da CIF não estão esclarecidas, não há definição se essa condição seria decorrente de impactação fecal de longa duração ou se é uma alteração primária na motilidade colônica.14 O atraso no tratamento, definido como o tempo entre a idade de início da constipação intestinal e a admissão num serviço especializado, apresenta relação inversa ao tempo de recuperação da condição.5

Nesse estudo, um período mínimo de 12 meses com retornos mensais, sob terapêutica protocolar, inquérito de anamnese sistematizado e controle dos agendamentos foi um instrumento para comprovar, até onde é possível, a adesão à terapia e definir refratariedade. O conjunto dos estudos tem considerado, para definição de não resposta terapêutica, períodos variáveis de seis meses a dois ou três anos de seguimento clínico.16,17 Em 2014, a duração dos sintomas para definir a condição de refratariedade foi firmada em um período de pelo menos três meses, sob tratamento adequado, em consenso das sociedades Europeia e Americana de Gastroenterologia Pediátrica.4 No Brasil, a não adesão à terapêutica é um fator que, comprovadamente, compromete a evolução de crianças com constipação intestinal funcional.18 Seguimento ambulatorial sistemático nos permitiu avaliar mais concretamente a magnitude dos riscos e das vantagens encontrados na comparação das opções terapêuticas.

A apendicostomia é uma opção para uma minoria de pacientes com constipação intestinal funcional, acompanhados em serviços terciários e que não respondem à terapia consensual. Na literatura, sucesso do procedimento foi relatado entre 57 a 100% dos casos, tais taxas foram obtidas com base em diferentes desfechos: remissão completa da IFR, melhoria da dor abdominal ou da qualidade de vida, presença de evacuação após irrigação via apendicostomia e recuperação de hábito intestinal regular.7,19,20 Dolejs et al.21 observaram que, aos três meses após a cirurgia, 89/93 (96%) dos pacientes apresentaram controle da IFR. Na presente série, seis meses após apendicostomia 82% pacientes já não apresentavam IFR e, ainda, observamos que a ocorrência precoce de complicações próximas à feitura do procedimento pode ter contribuído para atraso na remissão da IFR. Dolejs et al.21 observaram também que 24% dos pacientes recuperaram a capacidade de evacuar espontânea e regularmente, com reversão da apendicostomia após uma mediana de 40 meses (22/93 crianças). No conjunto de 25 artigos revisados sistematicamente por Siminas et al.10 esse desfecho foi verificado em 9,5% dos pacientes. Recuperação dos movimentos evacuatórios espontâneos é um desfecho alcançado, em média, em menos da metade dos pacientes com constipação refratária que fizeram apendicostomia, mesmo com seguimentos em longo prazo.9,22,23 Estudos de manometria colônica mostraram que a presença de ondas peristálticas colônicas de alta amplitude (HAPCs) e a resposta peristáltica ao bisacodil podem predizer o sucesso com o uso da irrigação anterógrada.23 Rodriguez et al. observaram que a recuperação de indicadores manométricos de funcionalidade do peristaltismo colônico está associada à possibilidade de descontinuar o uso da apendicostomia, desfecho observado em 11/40 pacientes estudados.9

Outros autores aventaram que aqueles pacientes que não alcançam essa resposta possivelmente sejam aqueles com distúrbios primários da motilidade colônica.20 Avaliação da apendicostomia por períodos de seguimento mais longos, em média 10 anos, demonstrou perda de eficácia ao longo do tempo, cerca de 60% dos pacientes mantêm o uso das irrigações anterógradas após esse período. Esses pacientes, mesmo assim, relatam altas taxas de satisfação e vários relataram que a transição para ambulatórios de adultos foi associada a uma perda do suporte profissional que tinham quando crianças e ao abandono da técnica.24

Resultados insatisfatórios da apendicostomia foram associados a três fatores: idade de feitura do procedimento,25 crianças abaixo dos seis anos teriam mais dificuldade de aceitar o procedimento, o uso incorreto dos enemas, que parecem ser mais efetivos se feitos no período pós‐prandial e em infusões com duração de 30 e 60 minutos, e aos efeitos indesejáveis da irrigação como dor durante a cateterização ou a infusão.7,26 Não há estudos controlados para avaliar a melhor solução de irrigação e diferentes serviços têm empregado as mais variáveis orientações de composição e volumes das soluções de irrigação, assim como a adição ou não de agentes osmoticamente ativos. Siddiqui et al.20 verificaram que a solução salina apresenta menor risco de resultar em desequilíbrio eletrolítico e que a adição de agentes osmóticos (polietilenoglicol) aumenta as taxas de sucesso da irrigação.

Altas taxas de complicações cirúrgicas são registradas na totalidade das casuísticas avaliadas.7,20,23,27 As complicações mais prevalentes e que em geral exigem reabordagens cirúrgicas, são a estenose e o vazamento no estoma. Na tentativa de minimizar essas complicações, foram propostas várias modificações na técnica cirúrgica inicial: confecções de aba de pele com outras formas de sutura na pele, implantação de dispositivos em cecostomias, button, broviacs, stoppers e left Malone.28 Os dispositivos diminuem estenoses ou vazamentos, mas são associados a outras complicações, como deslocamentos, infecções e formação de tecido de granulação com necessidade de reabordagem cirúrgica em 29% dos casos, além de serem identificáveis visualmente.29,30 Em nosso serviço, optamos pela confecção da apendicostomia com apêndice in situ e sem uso de dispositivos técnica de escolha na literatura.10

Em metanálise recentemente publicada, Li et al. comparam a apendicostomia à cecostomia, concluíram que as duas técnicas apresentam percentuais similares de controle da incontinência. A apendicostomia para irrigação anterógrada, contudo, associa‐se mais frequentemente a complicações que requerem reabordagem cirúrgica.31

A importância do estudo do trânsito colônico no manejo e prognóstico da constipação intestinal funcional refratária é incompletamente definida. Associações do padrão de trânsito ao tipo de manifestação clínica da CIFR foram identificadas.13,16 Pesquisadores pioneiros nesse instrumento de investigação verificaram que pacientes com padrão de trânsito colônico lento não respondem a enemas retrógrados e podem apresentar deficiências de neurotransmissores.16 Os dados na população pediátrica ainda não são suficientes para definir indicações cirúrgicas com base nesse tipo de investigação. Na presente série, o padrão de trânsito não se mostrou um instrumento suficiente para a seleção de pacientes quanto ao método terapêutico.

Apesar da alta frequência de complicações e da ausência de avaliação validada da qualidade de vida, o procedimento parece ter sido aceito pelos parentes e pacientes da presente série, já que a maioria persistiu no uso da via após abordagem bem‐sucedida das complicações. Benefícios da apendicostomia na qualidade de vida de crianças com constipação intestinal refratária foram descritos como significativos.32

A apendicostomia, embora apresente um número elevado de complicações, parece controlar o escape fecal resultante da constipação intestinal de maneira mais frequente e precoce do que o manejo clínico isolado. A recuperação da condição de evacuações espontâneas também ocorreu num número maior de pacientes quando comparada com o manejo clínico isolado. Contudo, o pequeno número de participantes e as conclusões baseadas em estimativa de risco nos compelem a sugerir que estudos com amostras maiores e maior tempo de seguimento devam ser feitos para permitir uma avaliação mais definitiva quanto a esse desfecho. Por ora, parece possível sugerir que a informação da possibilidade cirúrgica deva ser fornecida a casos selecionados por avaliação sistemática e que a decisão final sobre a escolha de qualquer um dos métodos deverá caber à família, depois de adequadamente informada sobre os riscos e benefícios de cada opção.

Financiamento

Fundo de Apoio ao Ensino, à Pesquisa e à Extensão da Unicamp (Faepex), Projeto Número 149/09.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

Referências
[1]
I.J. Cook, N.J. Talley, M.A. Benninga, S.S. Rao, S.M. Scott.
Chronic constipation: overview and challenges.
Neurogastroenterol Motil, 21 (2009), pp. S1-S8
[2]
M.B. de Morais, H.V. Maffei.
Constipação intestinal.
J Pediatr (Rio J), 76 (2000), pp. 147-156
[3]
M. Pijpers, M. Bongers, M. Benninga, M. Berger.
Functional constipation in children: a systematic review on prognosis and predictive factors.
J Pediatr Gastroenterol Nutr, 50 (2010), pp. 256-268
[4]
M.M. Tabbers, C. DiLorenzo, M.Y. Berger, C. Faure, M.W. Langendam, S. Nurko, et al.
Evaluation and treatment of functional constipation in infants and children: evidence‐based recommendations from ESPGHAN and NASPGHAN.
J Pediatr Gastroenterol Nutr, 58 (2014), pp. 258-274
[5]
M.E.J. Bongers, M.P. van Wijk, J.B. Reitsma, M.A. Benninga.
Long‐term prognosis for childhood constipation: clinical outcomes in adulthood.
Pediatrics, 126 (2010), pp. e156
[6]
N.N. Youssef, A.L. Langseder, B.J. Verga, R.L. Mones, J.R. Rosh.
Chronic childhood constipation is associated with impaired quality of life: a case‐controlled study.
J Pediatr Gastroenterol Nutr, 41 (2005), pp. 56-60
[7]
S.K. King, J.R. Sutcliffe, B.R. Southwell, P.G. Chait, J.M. Hutson.
The antegrade continence enema successfully treats idiopathic slow‐transit constipation.
J Pediatr Surg, 40 (2005), pp. 1935-1940
[8]
P.S. Malone, P.G. Ransley, E.M. Kiely.
Preliminary report: the antegrade continence enema.
Lancet, 336 (1990), pp. 1217-1218
[9]
L. Rodriguez, S. Nurko, A. Flores.
Factors associated with successful decrease and discontinuation of antegrade continence enemas (ACE) in children with defecation disorders: a study evaluating the effect of ACE on colon motility.
Neurogastroenterol Motil, 25 (2013), pp. 140-181
[10]
S. Siminas, P.D. Losty.
Current surgical management of pediatric idiopathic constipation: a systematic review of published studies.
Ann Surg, 262 (2015), pp. 925-933
[11]
P.E. Hyman, P.J. Milla, M.A. Benninga, G.P. Davidson, D.F. Fleisher, J. Taminiau.
Childhood functional gastrointestinal disorders: neonate/toddler.
Gastroenterology, 130 (2006), pp. 1519-1526
[12]
A. Rasquin, C. Di Lorenzo, D. Forbes, E. Guiraldes, J.S. Hyams, A. Staiano, et al.
Childhood functional gastrointestinal disorders: child/adolescent.
Gastroenterology, 130 (2006), pp. 1527-1537
[13]
R.L. Carmo, R.P. Oliveira, A.E. Ribeiro, M.C. Lima, B.J. Amorim, A.F. Ribeiro, et al.
Colonic transit in children and adolescents with chronic constipation.
J Pediatr (Rio J), 91 (2015), pp. 386-389
[14]
Y.I. Yik, B.R. Southwell, J.M. Hutson.
Targeting the causes of intractable chronic constipation in children: the Nuclear Transit Study (NTS).
Neurogastroenterol Motil, 22 (2010), pp. 71
[15]
C.D.A. Herndon, R.C. Rink, M.P. Cain, M. Lerner, M. Kaefer, E. Yerkes, et al.
In situ Malone antegrade continence enema in 127 patients: a 6‐year experience.
[16]
J.M. Hutson, J.W. Chase, M.C. Clarke, S.K. King, J. Sutcliffe, S. Gibb, et al.
Slow‐transit constipation in children: our experience.
Pediatr Surg Int, 25 (2009), pp. 403-406
[17]
B.R. Southwell, S.K. King, J.M. Hutson.
Chronic constipation in children: organic disorders are a major cause.
J Paediatr Child Health, 41 (2005), pp. 1-15
[18]
A.S. Steiner, R.F. Torres, J.F. Penna, F.B. Gazzinelli, G.A. Corradi, S.A. Costa, et al.
Chronic functional constipation in children: adherence and factors associated with drug treatment.
J Pediatr Gastroenterol Nutr, 58 (2014), pp. 598-602
[19]
S. Basson, A. Zani, S. McDowell, E. Athanasakos, S. Cleeve, S. Phelps, et al.
Antegrade continence enema (ACE): predictors of outcome in 111 patients.
Pediatr Surg Int, 30 (2014), pp. 1135-1144
[20]
A.A. Siddiqui, S.J. Fishman, S.B. Bauer, S. Nurko.
Long‐term follow‐up of patients after antegrade continence enema procedure.
J Pediatr Gastroenterol Nutr, 52 (2011), pp. 574-580
[21]
S.C. Dolejs, J.K. Smith, J. Sheplock, J.M. Croffie, F.J. Rescorla.
Contemporary short‐ and long‐term outcomes in patients with unremitting constipation and fecal incontinence treated with an antegrade continence enema.
J Pediatr Surg, 52 (2017), pp. 79-83
[22]
S.M. Mugie, R.S. Machado, H.M. Mousa, J.B. Punati, M. Hogan, M.A. Benninga, et al.
Ten‐year experience using antegrade enemas in children.
J Pediatr, 161 (2012), pp. 700-704
[23]
M.M. van den Berg, M. Hogan, D.A. Caniano, C. Di Lorenzo, M.A. Benninga, H.M. Mousa.
Colonic manometry as predictor of cecostomy success in children with defecation disorders.
J Pediatr Surg, 41 (2006), pp. 730-736
[24]
I.E. Yardley, S.L. Pauniaho, C.T. Baillie, R.R. Turnock, P. Coldicutt, G.L. Lamont, et al.
After the honeymoon comes divorce: long‐term use of the antegrade continence enema procedure.
J Pediatr Surg, 44 (2009), pp. 1274-1276
[25]
J.I. Curry, A. Osborne, P.S.J. Malone.
How to achieve a successful Malone antegrade continence enema.
J Pediatr Surg, 33 (1998), pp. 138-141
[26]
S. Cascio, M.E. Flett, M. De la Hunt, A.M. Barrett, B. Jaffray.
MACE or caecostomy button for idiopathic constipation in children: a comparison of complications and outcomes.
Pediatr Surg Int, 20 (2004), pp. 484-487
[27]
D.B. Shaul, E.A. Harrison, S.K. Muenchow.
Avoidance of leakage and strictures when creating an invisible conduit for antegrade colonic enemas.
J Pediatr Surg, 37 (2002), pp. 1768-1771
[28]
A.H. Bani-Hani, M.P. Cain, M. Kaefer, K.K. Meldrum, S. King, C.S. Johnson, et al.
The Malone antegrade continence enema: single institutional review.
J Urol, 180 (2008), pp. 1106-1110
[29]
E.W. Fonkalsrud, J.C. Dunn, A.I. Kawaguchi.
Simplified technique for antegrade continence enemas for fecal retention and incontinence.
J Am Coll Surg, 187 (1998), pp. 457-460
[30]
P.G. Chait, B. Shandling, H.M. Richards, B.L. Connolly.
Fecal incontinence in children: treatment with percutaneous cecostomy tube placement – a prospective study.
Radiology, 203 (1997), pp. 621-624
[31]
C. Li, S. Shanahan, M.H. Livingston, J.M. Walton.
Malone appendicostomy versus cecostomy tube insertion for children with intractable constipation: a systematic review and meta‐analysis.
J Pediatr Surg, 53 (2018), pp. 885-891
[32]
A.F. Har, F.J. Rescorla, J.M. Croffie.
Quality of life in pediatric patients with unremitting constipation pre and post Malone Antegrade Continence Enema (MACE) procedure.
J Pediatr Surg, 48 (2013), pp. 1733-1737

Como citar este artigo: Arruda VP, Bellomo‐Brandão MA, Bustorff‐Silva JM, Lomazi EA. Refractory functional constipation: clinical management or appendicostomy? J Pediatr (Rio J). 2020;96:210–6.

Trabalho vinculado à Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil.

Baixar PDF
Idiomas
Jornal de Pediatria
Opções de artigo
Ferramentas
en pt
Taxa de publicaçao Publication fee
Os artigos submetidos a partir de 1º de setembro de 2018, que forem aceitos para publicação no Jornal de Pediatria, estarão sujeitos a uma taxa para que tenham sua publicação garantida. O artigo aceito somente será publicado após a comprovação do pagamento da taxa de publicação. Ao submeterem o manuscrito a este jornal, os autores concordam com esses termos. A submissão dos manuscritos continua gratuita. Para mais informações, contate assessoria@jped.com.br. Articles submitted as of September 1, 2018, which are accepted for publication in the Jornal de Pediatria, will be subject to a fee to have their publication guaranteed. The accepted article will only be published after proof of the publication fee payment. By submitting the manuscript to this journal, the authors agree to these terms. Manuscript submission remains free of charge. For more information, contact assessoria@jped.com.br.
Cookies policy Política de cookies
To improve our services and products, we use "cookies" (own or third parties authorized) to show advertising related to client preferences through the analyses of navigation customer behavior. Continuing navigation will be considered as acceptance of this use. You can change the settings or obtain more information by clicking here. Utilizamos cookies próprios e de terceiros para melhorar nossos serviços e mostrar publicidade relacionada às suas preferências, analisando seus hábitos de navegação. Se continuar a navegar, consideramos que aceita o seu uso. Você pode alterar a configuração ou obter mais informações aqui.