As desigualdades socioeconômicas na saúde perinatal foram observadas consistentemente em muitos países de rendas alta, média e baixa1. Quantificar e monitorar as desigualdades socioeconômicas na saúde é um importante primeiro passo com relação à redução da desigualdade em saúde e à melhoria na saúde populacional.
O Brasil está entre os países com as maiores desigualdades na posição socioeconômica e em saúde.2,3 Nesta edição do Jornal de Pediatria, de Sadovsky et al.4 relataram desigualdades de renda no nascimento prematuro (NP,<37 semanas completas de gestação) na cidade de Pelotas por 30 anos. Os autores estimaram o índice angular de desigualdade (IAD) e o índice relativo de desigualdade (IRD) da renda nas taxas de NP entre quase todos os nascimentos em Pelotas em 1982, 1993, 2004 e 2011.
As diferenças relativas e absolutas em saúde entre os grupos fornecem informações diferentes e complementares, que podem levar a diferentes conclusões, principalmente quando o foco é monitorar as mudanças na desigualdade durante um período prolongado.5 As proporções de uma população em qualquer grupo socioeconômico – por exemplo, pessoas com formação universitária – inevitavelmente mudam com o passar do tempo e podem diferir por região geográfica. O IAD e o IRD incorporaram essas mudanças no tamanho de cada grupo e geram estimativas de desigualdade comparáveis em tempo e lugar. O IAD e o IRD têm como base uma associação linear entre a posição socioeconômica e saúde.6 Contudo, e portanto, pressupõem que cada aumento no quintil de renda resulta em uma mudança equivalente na taxa de NP. De acordo com a Tabela 2, a tendência linear parece manter‐se para a coorte de 2004, porém os padrões de outras coortes sugerem mais um efeito de limite. Isso pode ajudar a explicar a ausência de desigualdades socioeconômicas significativas nessas outras coortes.
A síntese de Sadovski et al. faz uma contribuição útil para entender as mudanças temporais nas desigualdades de renda no NP em Pelotas. Ainda assim, há questões importantes. Uma importante observação é que as taxas gerais de NP aumentaram substancialmente ao longo do tempo, independentemente da renda, ao passo que desigualdades de renda no NP foram observadas apenas entre os nascimentos em 2004 após se ajustarem os possíveis fatores de confusão. De fato, as mudanças temporais nas taxas de NP em todas as coortes eram muitos maiores do que as diferenças por quintis de renda nas coortes (o fato de que a taxa de NP caiu ligeiramente em 2011 pode refletir os critérios de inclusão do Consórcio Internacional de Crescimento Fetal e Neonatal para o século 21, Intergrowth‐21st, que restringiu o recrutamento a mulheres de baixo risco).7 O aumento temporal provavelmente reflete grandes mudanças nas práticas obstétricas, ou seja, indução do parto e/ou cesárea antes do trabalho de parto, que afetaram todos os quintis de renda. Além de examinar as mudanças nas coortes, explorar os fatores que contribuem para as fortes tendências temporais em todas as coortes seria muito informativo. A epidemia de obesidade e os claros padrões socioeconômicos de sobrepeso/obesidade no Brasil8 também podem ajudar a explicar o aumento observado no NP com o passar do tempo e, talvez ainda, a associação negativa entre a renda e o NP observada nas coortes.
Os autores observam em sua Discussão que a taxa de NP foi substancialmente menor na Região Nordeste (10,2% em 1998), a área mais pobre do Brasil, em comparação com Pelotas (10,9% em 1993 e>13% em 2004 e 2011), na Região Sudeste, uma das áreas mais ricas do país. Esse padrão socioeconômico oposto no Brasil reforça nosso ponto acima sobre as práticas de saúde. As mulheres que vivem em áreas urbanas na Região Sul (principalmente aquelas com maior renda) são mais propensas a ter acesso à saúde privada e, assim, indução do parto e cesárea antes do trabalho de parto, inclusive os procedimentos feitos antes das 37 semanas completas. Isso também pode ajudar a explicar o fato de que as taxas de NP em Pelotas são maiores do que a média do país.
Por fim, subdividir o total de NP por idade gestacional ajuda a entender suas consequências de saúde neonatal (que diferem substancialmente por idade gestacional). Contudo, subdividir por peso ao nascer pode fornecer dados enganosos. O peso ao nascer, obviamente, depende muito da idade gestacional, porém o corte de baixo peso ao nascer (BPN) de<2.500g não leva em consideração o fato de que os neonatos prematuros têm menores pesos médios ao nascer em cada idade gestacional prematura do que os fetos que permanecem no útero na mesma idade gestacional. Seria mais útil, em nossa opinião, subdividir o NP em espontâneo (devido ao trabalho de parto espontâneo ou à ruptura prematura pré‐parto das membranas) em comparação com iatrogênico (indução do parto ou cesárea pré‐parto pré‐termo por indicações maternas ou fetais ou motivos não médicos). A frequência do NP iatrogênico aumentou nos países de renda alta e média, inclusive no Brasil,9 e NP iatrogênico por motivos não médicos representa uma grande proporção do total de NPs iatrogênicos.10 Considerando a tendência temporal de NP iatrogênico no Brasil, avaliar as desigualdades de renda no NP espontâneo em comparação com iatrogênico ajudaria a informar a prática clínica e a política de saúde pública no país.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.