Esta edição apresenta um trabalho de Géa‐Horta et al.1 que narra a associação entre fatores socioeconômicos maternos (emprego e nível de escolaridade) e a ocorrência de alguns indicadores nutricionais (baixa estatura e excesso de peso) dos filhos com menos de 5 anos numa amostra representativa da população brasileira. A amostra final englobou 4.356 mulheres, com média de 27 anos, e respectivos filhos, com média de 2 anos, 52% dos quais do sexo masculino. A taxa de emprego das mães foi de 40% e elas que tinham, em média, 8 anos de escolaridade. As crianças apresentaram uma média de altura/idade inferior aos padrões internacionais, enquanto a relação IMC/idade era superior.2
Um dos principais resultados deste estudo foi a probabilidade 4 vezes superior de mães com baixa escolaridade materna terem crianças de baixa estatura (estatura/idade menor do que ‐2 desvio‐padrão). Essa associação pode ser explicada por um status socioeconômico mais desfavorecido, com reflexo na menor possibilidade de aquisição de alimentos saudáveis, ou pela menor consciência do papel da alimentação no desenvolvimento futuro do descendente. Provavelmente, a primeira razão poderá prevalecer, uma vez que não se verificou uma associação entre escolaridade materna e excesso de peso, a exemplo de outros trabalhos.
Este estudo indicou que as crianças cujas mães tinham emprego tinham 57% mais probabilidade de terem sobrepeso (IMC/idade > 2 desvio‐padrão) em comparação com aquelas com mães desempregadas ou que trabalhavam em casa. Todavia, a empregabilidade não teve impacto na estatura das crianças, como outros trabalhos indicavam. Assim, por um lado, o emprego materno beneficia o crescimento da criança, pelo maior acesso a alimentos e serviços de saúde que um maior rendimento possibilita. Por outro, retira tempo de dedicação ao filho, notadamente para a preparação de refeições saudáveis e a feitura de atividades de lazer, e pode ser uma barreira à amamentação.
A origem dos dados em análise – a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher de 2006‐7 – fortalece a sua validade externa dos resultados, por se tratar de uma amostra representativa daquela população, mas limita a sua qualidade, pois não foram controladas algumas variáveis confundidoras, como o nível de atividade e sedentarismo das crianças, o tempo de amamentação, o ganho materno de peso e o peso ao nascimento, entre outras.
Este estudo reforça o conceito de que ainda coexistem, em diversas zonas geográficas, como o Brasil, prevalências de obesidade e desnutrição inquietantes. Sugere, também, que a definição e a implantação de políticas de saúde pública que objetivem diminuí‐las devem considerar os fatores socioeconômicos. É notória a melhoria em alguns parâmetros, como as condições sanitárias, o acesso a cuidados médicos, o rendimento per capita, que permitiram melhorar alguns indicadores nutricionais. Mas a nova dinâmica das sociedades do trabalho, com o incremento do emprego materno em países com menor proteção social, levanta desafios consideráveis, notadamente para assegurar às famílias cuidados de saúde antes e depois do nascimento da criança, que se possam traduzir no melhor ambiente materno‐fetal, desde logo com reflexos no peso ao nascer e no cortejo de fatores que a ele se associam, como o capital humano adquirido, os fatores de risco de doenças e até os comportamentos alimentares problemáticos.
Num estudo de Oliveira et al.3 em 3 coortes europeias de nascimentos (Geração XXI de Portugal, ALSPAC do Reino Unido e EDEN de França), os relatos de dificuldades na alimentação das crianças, como comer pequenas quantidades ou precisar de estimulação para comer, foram significativamente mais frequentes nas que tinham nascido pequenas para a idade gestacional.
Em Portugal, os trabalhos na coorte de nascimentos Geração XXI tornam evidentes outros níveis de influência, nos quais é urgente intervir para bons resultados relativamente ao estado nutricional e ao consumo alimentar até aos 4 anos. No estudo de Durão et al.,4 numa subamostra de 3.422 mães e respetivos filhos, foi analisada a influência das características familiares, incluindo comportamentos e estilo de vida (atividade física, hábitos tabagísticos e práticas alimentares das mães e crianças), no padrão alimentar das crianças aos 4 anos, o que conceitualiza essa ação segundo um modelo sociodemográfico de quatro níveis (status socioeconômico da mãe aos 12 anos, estágio socioeconômico materno e características sociodemográficas ao nascimento da criança, características familiares aos 4 anos da criança e características maternas e comportamentos aos 4 anos da criança). Verificou‐se que o pior status socioeconômico materno aos 12 anos e a menor escolaridade materna se associaram a uma pior alimentação, traduzida pelo consumo de alimentos pobres em micronutrimentos e de elevada densidade energética (status socioeconômico aos 12 anos baixo versus alto, OR=1,76, IC 95%, 1,42‐2,18; escolaridade materna ≤ 9 anos versus > 12 anos, OR=2,19, IC 95%, 1,70‐2,81); as crianças cujas mães apresentavam uma pior qualidade dos alimentos ingeridos tinham uma probabilidade significativamente maior de apresentar um padrão alimentar não saudável, especialmente de alimentos pobres em micronutrimentos e de elevada densidade energética (1° quartil de qualidade alimentar materna mais baixa versus 4° quartil de referência de qualidade alimentar materna mais elevada, OR=9,94, IC 95%, 7,35‐13,44, p‐trend < 0,001, após ajuste para confundidores). Nessa mesma coorte, a análise das práticas de alimentação infantil por meio de um questionário validado para Portugal5 e que combina as escalas do Child Feeding Questionnaire de Birch et al.6 e de overt e covert control de Ogden et al.7 mostram que maiores níveis maternos de monitoração e restrição da ingestão se associam inversamente à ocorrência de padrões alimentares inadequados na criança, como o de ingestão de alimentos de elevada densidade energética (respetivamente, OR=0,84, IC 95%, 0,77‐0,91 e OR=0,85, IC95%, 0,78‐0,93). Ou seja, na constelação de fatores estudados, a alimentação materna aparece como o fator‐chave associado à alimentação da criança aos 4 anos, muito acima dos fatores socioeconômicos, demográficos, de escolaridade e comportamento alimentar, o que contribuindo com cerca de ⅓ do coeficiente de determinação (R2 de Nagelkerke) no modelo ajustado.
Conhecido o tracking de hábitos alimentares, do período de crescimento para a idade adulta, e a importância que podem ter os comportamentos alimentares das crianças durante os primeiros anos de vida para a sua ingestão alimentar futura, é fundamental produzir ferramentas e estudos com abordagens capazes de definir os comportamentos nas suas diferentes dimensões e o seu impacto no estado nutricional.8 Num estudo de comportamentos alimentares em três coortes europeias (Geração XXI de Portugal, ALSPAC do Reino Unido e EDEN de França), as crianças que exibiam maiores dificuldades de ingestão, recusa alimentar/neofobia e dificuldades de conseguir estabelecer uma rotina diária de ingestão aos 12‐15 meses, 24 e 48‐54 meses apresentavam menor ingestão de fruta e produtos hortícolas.9 A importância do comportamento alimentar na inadequação alimentar em crianças de 4 anos é evidenciada na coorte Geração XXI, verifica‐se que práticas maternas, como a pressão (em dose certa) e o controle que se exerce sobre o que se come, de forma mais visível (overt control), podem ser associados a consumo mais adequado de fruta, produtos hortícolas e laticínios.10 Deve‐se considerar a possibilidade de que entre as práticas de alimentação infantil e o índice de massa corporal (IMC) das crianças possam existir efeitos bidirecionais e o conhecimento desse fenômeno poderá melhorar o conhecimento sobre o papel parental no estado nutricional da criança e na obesidade infantil. Os resultados são ainda difíceis de interpretar. Verifica‐se, por exemplo, em ambiente experimental, que a restrição é apontada como um fator que pode causar a ingestão excessiva de alimentos,11 ainda que em estudos longitudinais a restrição possa apresentar,12 ou não, efeitos no comportamento alimentar13 ou IMC da criança.14 Por outro lado, a massa corporal pode também influenciar o comportamento alimentar, descrevem‐se em pais de crianças com maior IMC aos 2 anos uma tendência para maior restrição e menores níveis de pressão para comer aos 4 anos.14 No trabalho de Afonso et al.,15 na coorte Geração XXI, o estudo longitudinal das associações bidirecionais entre as práticas de alimentação infantil e o IMC aos 4 e 7 anos mostrou que as práticas dos pais respondem ao peso da criança, mas o peso das crianças também as influenciam. Assim, a pressão para comer e o controle mais aberto ou mais evidente (overt) da alimentação aos 4 anos associaram‐se significativamente a menor IMC aos 7 anos, enquanto um IMC maior aos 4 anos se associou a maiores níveis de restrição e de controle encoberto (covert) da alimentação.
Parece, assim, evidente privilegiar em idade pré‐escolar, a intervenção nos grupos que combinam as características de má‐alimentação materna e baixo status socioeconômico. A batalha contra a má‐nutrição infantil será longa, mas é improrrogável.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.