Desde a influência do trabalho de Dan Olweus,1 o bullying surgiu como um grande problema da sociedade em todo o mundo e em todas as sociedades. A literatura internacional relata taxas de crianças e adolescentes envolvidas em bullying nos diferentes países de 7% a 43%, com relação às vítimas, e de 5% a 44%, com relação aos bullies.2 Ademais, os estudos são compatíveis no destaque para a forma como o bullying constitui um fator de risco à saúde e ao ajuste social e psicológico tanto do bully quanto do jovem intimidado. Crianças e adolescentes que sofrem vitimização por pares podem ser afetados por diversos problemas de saúde, incluindo sintomas de doenças físicas e psicológicas, simultânea e prospectivamente.3,4 Da mesma forma, há evidências de que os bullies também podem sofrer de depressão e outras doenças4 e que correm risco de apresentar comportamentos externalizantes e envolver‐se em atividades criminais no fim da adolescência e na vida adulta.5
Além dos bullies e das vítimas, outros colegas da escola e da classe também participam do bullying, desempenham papéis diferentes no fenômeno. Eles podem ajudar ou reforçar o comportamento dos bullies; uma minoria defende os pares intimidados; e muitos alunos são espectadores passivos, que abstêm‐se das situações de bullying ao não tomar partido dos bullies nem das vítimas e reforçam, assim, indiretamente, o comportamento dos bullies.6 O envolvimento no bullying como espectador ativo ou passivo também pode afetar a adaptação psicológica do jovem, pois tem sido demonstrado que testemunhar o bullying aumenta os níveis de sofrimento do espectador.7 Esse quadro e os custos elevados originados do bullying para a sociedade fazem com que a investigação do fenômeno e o desenvolvimento de programas de intervenção, capazes de combater o bullying de maneira efetiva no contexto específico, sejam uma prioridade em qualquer país no qual o bullying é detectado.
Várias propostas para as intervenções contra o bullying foram desenvolvidas com diferentes abordagens teóricas e diferentes níveis de eficácia.8 Entretanto, todas elas recomendam partir de um exame preciso do fenômeno no contexto de intervenção futura. De fato, uma das principais suposições da intervenção contra o bullying é que o bullying, em comparação com outras formas de comportamentos agressivos e antissociais, tem uma complexidade maior que precisa ser investigada no contexto específico para ser combatido efetivamente.
Nessa estrutura, a originalidade e o valor do papel de Oliveira et al.9 é evidente, principalmente no que diz respeito à escassez de estudos sobre bullying na escola no Brasil10 e, de uma perspectiva mais ampla, na América do Sul. Este estudo fornece dados relevantes sobre a prevalência de bullies em uma amostra de população de 109.104 alunos de oito séries do ensino fundamental; 20,8% da amostra relataram comportamento de bullying na escola. Esses dados indicam uma elevada taxa de bullying em escolas brasileiras, em comparação com outros países, e isso vem de avaliações de autorrelato pelos participantes. Isso é importante porque, como os próprios autores consideram, autorrelatos podem ter aumentado o risco de subavaliação da prevalência do bullying. O uso de autorrelatos para primeiros exames de bullying, contudo, está em linha com o procedimento habitual adotado em estudos internacionais. Assim, ainda que não tenha sido possível administrar a medida padrão para avaliar o bullying em comparações transnacionais (ou seja, o Questionário Bully/Vítima de Olweus)1,5,11 nesse estudo, a pesquisa de Oliveira et al. fornece dados sobre bullying comparáveis com a literatura internacional. Ademais, o grande tamanho da amostra também garante uma avaliação confiável das situações de bullying nas escolas de ensino fundamental do Brasil. Assim, a alta taxa de bullies constatada por Oliveira et al. sugere que abordar o bullying é uma possível prioridade na pesquisa e na futura intervenção no Brasil.
Para desenvolver programas brasileiros para impedir e combater o bullying nas escolas de maneira efetiva é necessária uma análise precisa das correlações relacionadas a um risco maior de comportamento intimidador em alunos brasileiros. Essa é a segunda contribuição relevante fornecida pelo trabalho de Oliveira et al. à pesquisa sobre o bullying. Sem dúvidas, esse estudo examina alguns índices de transtornos de adaptação social e psicológica dos bullies e algumas dimensões familiares possivelmente relacionadas a uma probabilidade maior de intimidar pares na escola. Isso permite a elaboração de um perfil preliminar dos bullies específico da sociedade brasileira. O perfil resultante do estudo indica que ser um menino mais velho do que outros alunos da escola está associado à probabilidade cada vez maior de praticar o bullying. Esses achados, bem como aqueles sobre a supervisão familiar escassa pela família de bullies e experiências de violência doméstica vividas por bullies, são semelhantes aos resultados obtidos em outras literaturas internacionais. Contudo, os resultados da etnia dos bullies, juntamente com os dados obtidos a partir da comparação entre escolas públicas e particulares, destacam alguns elementos específicos da cultura brasileira que precisam de investigação adicional. Os autores descobriram que principalmente os jovens negros e asiáticos e os alunos de escolas particulares são mais propensos a ser bullies. Em vista da literatura sobre o bullying, esses achados não podem ser adequadamente interpretados sem um ponto de vista mais amplo, que examine ao mesmo tempo e de maneira mais profunda os contextos em que o bullying ocorre. Sem dúvidas, o bullying não é apenas uma forma específica de agressão proativa,12,13 intencional e destinada a adquirir uma posição de poder entre os pares,14 mas também é um tipo de comportamento antissocial amplamente influenciado pelo contexto dos pares. A literatura sobre esse fenômeno mostrou de maneira consistente que o status dentro do grupo de pares15,16 e os fatores no nível do grupo de pares, como normas e atitudes informais compartilhadas entre colegas de escola e sala,17 desempenham um papel relevante na explicação desse comportamento. Assim, as características do contexto dos pares nos quais o bullying entre alunos brasileiros ocorre precisam ser consideradas com cuidado. Após essa linha de raciocínio, o achado que relatou que pertencer a uma etnia específica aumenta o risco de ser um bully não pode ser interpretado como um índice “absoluto”, porém exige investigação das proporções de maioria/minoria de grupos étnicos nas escolas em que os dados foram coletados e, sob um ponto de vista mais amplo, no contexto do Brasil. Esses dados podem, de fato, refletir a presença de formas de bullying discriminatório,18 efeitos internos e externos ao grupo ou normas17 informais do grupo de pares, que podem ser estabelecidas em grupos de pares com a mesma etnia. Também não sabemos o suficiente sobre quem eram as vítimas das ações de bullying: se os pares intimidados pertenciam ao mesmo grupo étnico dos bullies ou a um grupo diferente. Dessa forma, se, no Brasil, os alunos de escolas particulares têm maior risco de apresentar comportamentos de bullying, é preciso examinar ainda mais as características do contexto dessas escolas particulares, o que pode favorecer a prática de bullying no Brasil. É possível que o bullying seja na verdade favorecido por características específicas dos alunos que frequentam essas escolas e de suas famílias? Ou pode depender de características da organização e das normas disciplinares, típicas do ambiente de escolas particulares no Brasil? Além disso, constatamos que o clima da escola e as atitudes dos professores contribuem para promover ou impedir a ocorrência de bullying entre os alunos.19 Portanto, o estudo de Oliveira et al. sustenta que é necessária maior pesquisa com foco nas dimensões contextuais de pares e escolas que podem estar relacionadas ao comportamento de bullying na realidade brasileira e que podem ser abordadas pela intervenção contra o bullying.
Uma terceira contribuição inovadora do estudo de Oliveira et al. consiste na análise dos comportamentos de risco à saúde relacionados ao fato de ser um bully entre os alunos brasileiros. O perfil dos bullies resultante da investigação de Oliveira et al. confirma que o bullying é um indicador de disfunções psicológicas e de ajuste social multidimensionais na juventude. Aparentemente, há chances maiores de bullies brasileiros apresentarem comportamentos arriscados em comparação com seus pares. Os comportamentos arriscados relatados variaram de consumo de tabaco, álcool e drogas ilícitas a faltas na escola e relações sexuais precoces. Esse quadro não é totalmente inédito na literatura internacional sobre bullying.20 Contudo, infelizmente, a natureza transversal dos dados do estudo de Oliveira et al. não permite entender se o bullying é uma variável preditora de outros comportamentos de risco entre crianças brasileiras ou se – mais provavelmente – reflete um perfil complexo de desajuste social e psicológico de crianças brasileiras que intimidam seus pares. Isso também pode estar relacionado a distorções no desenvolvimento moral, como sugere a literatura recente sobre bullying.21 Contudo, esse achado do estudo de Oliveira et al. indubitavelmente destaca como os custos sociais associados ao bullying também são altos no Brasil e que ser um bully no ensino fundamental no Brasil pode ser um indicador precoce de uma doença multifacetada, que precisa de formas multidimensionais de intervenção que abranjam a família e, novamente, os pares. Na verdade, a influência dos pares mostrou‐se relevante para aumentar a probabilidade de bullying e adotar comportamentos arriscados.19
O fato de que o bullying pode ser um possível indicador de dificuldades multidimensionais de jovens encontra mais uma confirmação em suas associações com desajuste psicológico e social e sintomas de problemas de saúde, incluindo insônia, sentimentos de solidão e falta de amigos, como sugere o estudo de Oliveira et al. Os sentimentos relatados de solidão e isolamento pelos colegas, em especial, indicam que o comportamento de bullying está atrelado à doença emocional e social de bullies. Interpretar esses sentimentos como representações de possíveis problemas de saúde de bullies que solicitam intervenção na saúde é uma realidade muito legítima. Porém, uma interpretação mais complexa deles pode levar a ressaltar algumas competências de bullies que servem de possíveis recursos para ajudar essas crianças. De fato, a literatura internacional sobre a competência social de bullies mostra que os colegas atribuem a bullies um elevado status social, como crianças visíveis e influentes dentro do grupo, mas também relatam que, na verdade, não gostam de bullies.15 Assim, os sentimentos de solidão e isolamento pelos colegas de bullies podem refletir o isolamento real causado pelo comportamento de bullies e mostrar que bullies têm competências adequadas na compreensão de interações entre colegas. Essas habilidades podem ser consideradas ao planejar intervenção na saúde. Por fim, também há a possibilidade de que sentimentos de solidão sofridos por bullies também motivem e promovam o comportamento de bullying. Infelizmente, como os dados fornecidos por Oliveira et al. são transversais, não podemos explorar mais essa hipótese. Porém, novamente, esse estudo definitivamente promove futuras pesquisas sobre bullying e seus correlatos e motivos entre os alunos brasileiros.
Em resumo, independentemente de algumas possíveis limitações – corretamente identificadas pelos autores – o estudo de Oliveira et al. constitui uma interessante contribuição para a literatura sobre bullying e fornece algumas claras indicações de futura pesquisa sobre esse assunto no Brasil. Essas indicações também são úteis para desenvolver programas de intervenção com eficácia maximizada no contexto brasileiro.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.