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Vol. 96. Núm. 3.
Páginas 364-370 (maio - junho 2020)
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Vol. 96. Núm. 3.
Páginas 364-370 (maio - junho 2020)
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Association between exposure to urban waste and emotional and behavioral difficulties in schoolchildren
Associação entre exposição a resíduos urbanos e dificuldades emocionais e comportamentais de escolares
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Tiago Sacchet Dumckea, Alais Benedettib,c, Luciano da Silva Selistrea, Ana Maria Paim Camardelob,c, Emerson Rodrigues da Silvaa,
Autor para correspondência
ersilva9@ucs.br

Autor para correspondência.
a Universidade de Caxias do Sul (UCS), Programa de Pós‐Graduação em Ciências da Saúde, Caxias do Sul, RS, Brasil
b Universidade de Caxias do Sul (UCS), Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas e Sociais (NEPPPS), Caxias do Sul, RS, Brasil
c Universidade de Caxias do Sul (UCS) e Programa de Pós Graduação em Direito (PPGDir), Caxias do Sul, RS, Brasil
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Estatísticas
Tabelas (4)
Tabela 1. Características das crianças dos grupos de expostos (habitação a menos de 100 metros da reciclagem) e do grupo controle (mais de 150 metros)
Tabela 2. Características de risco pós‐natal ao neurodesenvolvimento entre expostos e não expostos
Tabela 3. Resultados totais do QCD e das subáreas avaliadas de comportamento e saúde emocional
Tabela 4. Análise simples e ajustada para as covariáveis potencialmente prejudiciais ao neurodesenvolvimento
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Figuras (2)
Abstract
Objective

To evaluate the association between living near waste recycling sites and emotional or behavioral difficulties in schoolchildren.

Methodology

A cross‐sectional study with schoolchildren aged 6–13 years old from disadvantaged communities in a Brazilian city, divided between those who live less than 100m away from the central point of the recycling site and those that live more than 150m away from the site, as a control group and classified through georeferencing. The emotional and behavioral difficulties were investigated using the Strengths and Difficulties Questionnaire tool. Other variables were analyzed through logistic regression to determine their contribution to the outcomes.

Results

Children living near waste recycling sites had a higher prevalence of emotional and behavioral problems than children living farther away. In the logistic regression model, no other covariates had a significant impact on the results, except for attending preschool. As expected, the families of the exposed group had lower income and lower levels of schooling, thus being characterized as a highly vulnerable population.

Conclusion

The association between living near waste recycling sites and lower test performance raises concerns about the impact of inappropriate waste management in urban centers on children's health.

Keywords:
Waste management
Neurodevelopmental disorders
Neuropsychological tests
Resumo
Objetivo

Avaliar a associação entre habitar próximo a sítios de reciclagem e dificuldades emocionais ou comportamentais em escolares.

Metodologia

Estudo transversal com escolares de 6 a 13 anos de comunidades desfavorecidas em uma cidade do Brasil, divididas entre aquelas que tem sua residência situada a menos de 100 metros de distância do ponto central do sítio de reciclagem e aquelas que habitam a mais de 150 metros, como grupo controle e classificadas através de georeferenciamento. As dificuldades emocionais e comportamentais foram investigadas através do instrumento Questionário de Capacidades e Dificuldades. Outras variáveis foram analisadas através de regressão logística para determinar sua contribuição para os desfechos.

Resultados

Crianças que vivem próximas a locais de reciclagem de resíduos tiveram maior prevalência de problemas emocionais e comportamentais do que as crianças que vivem mais afastadas. No modelo de regressão logística, nenhuma outra covariável apresentou impacto significativo sobre os resultados, à exceção de haver frequentado pré‐escola. Como esperado, as famílias do grupo exposto apresentaram menor renda e menores níveis de escolaridade, caracterizando‐se como uma população altamente vulnerável.

Conclusão

A associação entre a habitação próxima a locais de reciclagem e um menor desempenho nos testes levanta preocupações sobre o impacto do manejo inadequado de resíduos nos centros urbanos sobre a saúde das crianças.

Palavras‐chave:
Resíduos
Transtornos do neurodesenvolvimento
Testes neuropsicológicos
Texto Completo
Introdução

Estima‐se que quase um quinto das crianças em idade escolar sofra de alguma dificuldade emocional ou comportamental.1–3 Essas dificuldades estão frequentemente associadas à doença mental, que em metade dos casos tem início até os 14 anos.1 O sistema nervoso central (SNC) pode ser muito afetado por exposições ambientais durante a infância, período de grande vulnerabilidade do neurodesenvolvimento,4 e os desfechos causados por substâncias tóxicas podem demandar um longo tempo após a exposição para ser notados. Crianças tem comportamento explorador e percebem muito mal eventuais riscos. Além disso, rotas metabólicas de detoxificação de muitos poluentes são imaturas e funcionam de maneira reduzida na infância, fazem com que o impacto das exposições a dejetos químicos e biológicos seja muito maior nessa faixa etária.5 Essas características fazem com que muitas exposições ambientais sejam negligenciadas como causa ou fator predisponente de doenças.5,6

Muito tem se investigado acerca da exposição a substâncias presentes nos resíduos urbanos, como chumbo, cádmio, pesticidas organofosforados e outros compostos sobre o neurodesenvolvimento.7–9 Infelizmente, em países em desenvolvimento ainda é frequente o descarte inapropriado desses poluentes junto dos resíduos urbanos. Muitas vezes pessoas recorrem à reciclagem de resíduos urbanos como última forma de obtenção de renda para subsistência.10 Nesses cenários, é comum resíduos serem reciclados nas próprias casas ou em zonas contíguas a moradias dos recicladores, fica toda a comunidade exposta aos efeitos crônicos da inalação, contato dérmico e ingesta de poluentes.11 Embora muito se saiba acerca desses poluentes isoladamente, ainda não se sabe claramente qual o impacto da proximidade dessas exposições que ocorrem ao longo de anos, de modo contínuo, durante período crítico do neurodesenvolvimento. A medição ocasional de metabólitos tem limitações, pois a exposição a um poluente pode ser intermitente, pode assim gerar falsos negativos na caracterização da exposição. Além disso, a generalização dos efeitos de um poluente específico sobre o SNC é limitada na medida em que a composição de resíduos descartados pode ser extremamente variável em cada local, depende de hábitos, da sazonalidade, da atividade econômica e da rede de serviços à disposição das comunidades.10 Em face dessas limitações, faz‐se necessário estudar a exposição não a um poluente específico, mas à exposição como ela ocorre, diretamente focando na proximidade de crianças em relação ao ponto de depósito e separação de resíduos.

Esse estudo avaliou a associação da habitação próxima a sítios de reciclagem de rejeitos urbanos com escores de dificuldades emocionais e comportamentais em escolares de uma cidade do Brasil em comunidades de baixa renda onde grande parte do lixo é separado e processado no próprio local.

Métodos

Foi feito um estudo transversal de caso‐controle com crianças de comunidades onde há sítios de reciclagem de resíduos urbanos na cidade de Caxias do Sul/RS. Na cidade, grande parte dos resíduos é tratada por cooperativas ou organizações familiares que fazem a separação e destinação nos próprios locais de habitação ou em terrenos contíguos às residências. Esses resíduos são oriundos tanto de residências quanto de indústrias e empresas da cidade. As crianças foram selecionadas entre escolares de seis a 13 anos, que habitavam em dois bairros onde a reciclagem acontece a céu aberto e sem divisórias protetoras à circulação de crianças. O critério de alocação das crianças foi a moradia em até 100 metros de um sítio de reciclagem aberto; o grupo controle foi selecionado entre escolares que habitassem na mesma comunidade, mas a mais de 150 metros do centro de uma reciclagem, o que permitiu uma zona de washout entre os expostos e as crianças do grupo controle. O critério de corte das distâncias baseou‐se em estudos que avaliam poluição do ar, uma vez que não há, no conhecimento dos autores, pontos de corte bem definidos que determinem o impacto da proximidade dos sítios de reciclagem de resíduos mistos (orgânicos, químicos e inorgânicos indiscriminadamente) com o neurodesenvolvimento.12,13

A determinação do ponto central e do local de habitação dos participantes da pesquisa foi feita por meio de georeferenciamento. Essa técnica é amplamente usada em pesquisa ambiental para determinar o efeito da localização espacial e de distâncias em relação a um poluente. Tradicionalmente usado para investigar doenças infecciosas e epidemias, o método aplica‐se também a outros riscos ambientais como na pesquisa com resíduos urbanos, sítios de reciclagem, fontes radioativas e eletromagnéticas.14 Foi usado o aplicativo Map Plus (Miocool Inc.) versão 2.6.9 para a marcação dos pontos de habitação e reciclagem e o software Quantum Gis (QGIS) versão 2.14.20 para o cálculo das distâncias.15

Os escolares foram classificados como submetidos a dificuldades emocionais e comportamentais através do instrumento Questionário de Capacidades e Dificuldades (QCD) (ou Strengths and Difficulties Questionnaire – SDQ).16 O QCD é um instrumento traduzido e validado em mais de 40 países, inclusive o Brasil, de uso livre, que visa a avaliar a saúde mental de crianças e adolescentes.17 O QCD é composto de 25 itens, divididos em cinco subescalas: problemas no comportamento pró‐social, hiperatividade, problemas emocionais, problemas de conduta e problemas de relacionamento. Cada um dos 25 itens recebe uma pontuação entre 0 e 2 e as perguntas de cada dimensão são misturadas com as de outra dimensão, evita‐se viés de resposta por inércia ou reforço/negação. Cada uma das dimensões foi tabulada e os pacientes classificados de acordo com protocolo em “normal” ou “anormal”. Neste estudo, uma vez que o QCD é um instrumento de pesquisa e triagem para dificuldades emocionais e comportamentais de escolares (e não para diagnóstico nosológico), foi seguida a recomendação do protocolo, atribuiu‐se às crianças com pontuação limítrofe o resultado “anormal”.17 A combinação dos escores das subáreas gera um resultado final do teste, que é dividido em “normal” e “anormal”, esse escore geral é o desfecho principal.

O cegamento não foi possível pois o local de habitação era justamente o fator em estudo. Os avaliadores sentiam o odor dos dejetos em muitos dos casos, especialmente aqueles mais próximos ao centro da reciclagem. Por se tratar de população altamente vulnerável, não se adotou a opção de conduzir os responsáveis a outro local para que respondessem, para evitar a perda de participantes. A opção de coletar os dados nos domicílios teve também como objetivo preservar o bem‐estar dos participantes do estudo e seus responsáveis e minimizar a intervenção na rotina das famílias.

Inicialmente os locais foram visitados por um grupo de pesquisadores do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas e Sociais da Universidade de Caxias do Sul, que já fazem trabalho de apoio às comunidades. Ambos os bairros contam com Unidade Básica de Saúde com equipes de Estratégia de Saúde da Família. A partir dos pontos de reciclagem, identificados pela equipe e marcados nos softwares, a equipe partia de maneira excêntrica nas ruas adjacentes à reciclagem, de casa em casa, em busca de crianças na faixa etária do estudo. Deixaram de ser incluídas no estudo crianças sem um responsável disponível para a resposta do QCD. A seguir foram aplicados questionários acerca de dados perinatais, demográficos e do neurodesenvolvimento da criança. O QCD foi aplicado aos pais ou responsáveis. No caso das crianças do grupo controle, verificou‐se posteriormente no software de georeferenciamento a inexistência de outros sítios de reciclagem em raio menor do que 150 metros para cada marcação de domicílio, assim como se procedeu também à mensuração da distância ao centro da reciclagem mais próxima (fig. S1).

Foi feito cálculo de tamanho amostral de 76 crianças em cada grupo, estimou‐se a prevalência de 10% de crianças com dificuldades no grupo de não expostos e de 30% em crianças do grupo dos expostos, com nível de significância de 5% e poder de 90%, com uma margem de 15%. Para avaliar a associação entre exposição a resíduos e dificuldades emocionais e comportamentais foi usado o teste qui‐quadrado de Person para variáveis categóricas, o teste t de Student para comparação das médias dos grupos nas variáveis contínuas com distribuição normal e o teste U de Mann‐Whitney para as variáveis não paramétricas. Para avaliar o efeito de cada uma das variáveis sobre as dificuldades emocionais e comportamentais foi feita regressão logística, inclusive covariáveis com potencial impacto sobre o neurodesenvolvimento da criança, como baixo peso ao nascimento, número elevado (≤ 4) de irmãos e baixa escolaridade materna (ensino fundamental incompleto). Para análise dos dados foi usado o software IBM SPSS Statistics® versão 22.

A participação de todos foi voluntária e os pais ou responsáveis foram informados e assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de acordo com a resolução 466/2012da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). O estudo foi autorizado por Comitê de Ética em Pesquisa institucional, com parecer de número 2.172.721.

Resultados

Foram incluídas 153 crianças, com leve predomínio (54%) do gênero masculino. Embora tenha havido diferença significativa de renda familiar entre os grupos, a amostra de um modo geral se caracterizou por uma população de baixa renda e baixa escolaridade das mães. No entanto, não houve diferença entre os grupos quanto a indicadores de precariedade no cuidado perinatal que poderiam conferir maior risco ao sistema nervoso.

Foi verificada uma redução na pontuação do QCD em crianças que habitavam próximo dos sítios de reciclagem em relação àquelas que habitavam a mais de 150 metros. Essa redução persistiu mesmo após o controle de fatores de confusão entre algumas covariáveis no modelo de regressão logística.

Pela própria natureza da exposição e habitação junto a sítios de reciclagem, houve diferença entre os grupos quanto à renda familiar, maior no grupo controle (p < 0,01). Essa variável foi posteriormente incluída no modelo de regressão logística. Do mesmo modo, o nível de escolaridade materna, usado como outro marcador da condição socioeconômica, também foi diferente entre os grupos, com um percentual maior de mães com baixa escolaridade entre as crianças do grupo de expostos. A população estudada conta com baixa escolaridade materna, 92 mães (60,1%) têm apenas até o ensino fundamental.

Quanto às demais variáveis com potencial de influenciar o neurodesenvolvimento, não houve diferença significativas entre os grupos, à exceção do número de irmãos, que foi maior no grupo de crianças expostas à reciclagem (tabela 1).

Tabela 1.

Características das crianças dos grupos de expostos (habitação a menos de 100 metros da reciclagem) e do grupo controle (mais de 150 metros)

Variável  Expostos  Não‐expostos 
Idade (em meses)a  121 (27)  122 (26)  0,7 
Peso nascimento (em gramas)a  3234 (437)  3091 (439)  0,05 
Escore de Apgar no 5° minutob  9 (8‐10)  9 (8‐10)  0,9 
Semanas de gestaçãoa  39,4 (1,8)  38,7 (1,5)  0,6 
Dias de internação pós‐natalb  2 (1‐4)  2 (1‐3)  0,6 
Tabagismo materno na gestaçãoc  25 (33,7)  20 (26)  0,3 
Baixa escolaridade materna (até fundamental incompleto)c  16 (20,7%)  40 (53%)  < 0,01 
Renda familiar (em R$ / mensais)b  1300 (950‐2000)  2570 (1500‐3500)  ≤ 0,01 
a

Média (± DP).

b

Mediana (IQ 25‐75).

c

%.

Quanto aos aspectos socioeconômicos da amostra, muitas variáveis mostraram dados relevantes à caracterização da população estudada, mesmo que não tenha havido diferenças significativas entre os grupos. Apenas uma criança em toda a amostra não frequentava correntemente a escola; no entanto, um percentual considerável, de 37% de toda a amostra, não teve acesso à pré‐escola, período sabidamente fundamental ao neurodesenvolvimento. Outros aspectos habitualmente relevantes ao neurodesenvolvimento também se mostram desfavoráveis: apenas 46,5% (n = 67) das crianças foram amamentadas exclusivamente ao seio materno até o 4° mês de vida; 29,8% dos bebês (n = 45) tiveram mães que fumaram durante a gestação e 38% não moram mais com ambos os pais no domicílio (tabela 2).

Tabela 2.

Características de risco pós‐natal ao neurodesenvolvimento entre expostos e não expostos

Variável  Expostos  Não expostos 
Criança frequentou pré‐escolaa  50 (65)  47 (61)  0,5 
Amamentação exclusiva até 4°mêsa  29 (39)  38 (53)  0,09 
Mora com ambos os paisa  45 (59)  50 (65)  0,4 
Tempo de residência (em meses ± DP)  134 (82)  111 (78)  0,07 
Número de co‐habitantes (média, DP)  5,4 (1,8)  4,1 (1,3)  <0,01 
Número de irmãosb  3 (1‐5)  1 (1‐3)  <0,01 
a

n (%).

b

Mediana (IQ25‐75).

Foram identificados com busca ativa seis sítios de reciclagem sem barreiras ao acesso de crianças nos dois bairros estudados. Os perímetros de inclusão e dos controles foram estabelecidos a partir do ponto central desses sítios. A distância média da residência ao local de reciclagem foi de 52 metros (± 26) no grupo de expostos e 346 m (± 183) no grupo controle (p < 0,01). O tempo de habitação no local, que refletiu o tempo de contato da criança com o sítio de reciclagem, não foi estatisticamente diferente entre os dois grupos (p = 0,07).

Quanto aos achados das subáreas do comportamento e da saúde emocional, avaliados no QCD, nenhuma mostrou diferença significativa entre os grupos. No entanto, quando avaliado o teste como um todo, o número de crianças com baixo escore foi maior no grupo de expostos (tabela 3).

Tabela 3.

Resultados totais do QCD e das subáreas avaliadas de comportamento e saúde emocional

Dimensão do teste QCD (n, %)  Expostos  Não‐expostos  χ2 
Problemas de relacionamento  54 (71)  44 (57)  3,2  0,07 
Hiperatividade  34 (44,7)  34 (44,2)  0,005  0,9 
Problemas de conduta  28 (36,8)  23 (30)  0,83  0,3 
Problemas emocionais  28 (36,8)  20 (26)  2,09  0,1 
Problemas de comportamento pró‐social  5 (6,6)  3 (4)  0,55  0,4 
QCD Total alterado  18 (23,7)  8 (10,4)  4,8  0,03 

Quanto aos fatores de risco para o neurodesenvolvimento, apenas a localização menor do que 100 metros de distância mostrou‐se estatisticamente significativa no modelo de regressão logística. Optou‐se por colocar no modelo baixo peso ao nascer (< 2.500g), número elevado de irmãos (> 4), baixa escolaridade materna (fundamental incompleto ou menos) e ter ou não frequentado pré‐escola, esse último também significativo. Foi avaliada também a moradia a menos de 50 metros dos centros dos sítios de reciclagem, a fim de avaliar a intensidade da exposição, mas esse dado não se mostrou estatisticamente significativo (tabela 4).

Tabela 4.

Análise simples e ajustada para as covariáveis potencialmente prejudiciais ao neurodesenvolvimento

Covariáveis  OR não ajustado (IC 95%)  OR ajustado (IC 95%)  P (Wald)  P (LR) 
Menos de 100 metros  0,2 (0,11–0,39)  0,17 (0,06‐0,5)  < 0,01  < 0,01 
Menos de 50 metros  0,27 (0,11‐0,67)  1,78 (0,47‐6,68)  0,4  0,4 
Baixa escolaridade materna  0,31 (0,16‐0,62)  0,89 (0,36‐2,17)  0,8  0,8 
Mais do que 4 irmãos  0,31 (0,11‐0,85)  1,1 (0,33‐3,66)  0,8  0,8 
Baixo peso ao nascer  0,1 (0,01‐0,78)  0,16 (0,02‐1,32)  0,09  0,06 
Frequentar pré‐escola  0,24 (0,12‐0,49)  0,42 (0,18‐0,97)  0,04  0,03 

Alguns dados não quantitativos foram constatados durante a coleta de dados. Embora não caiba análise, esses dados reforçam a caracterização da exposição ambiental das crianças. Um desses dados é o fato de que há pouca (quando alguma) separação prévia dos resíduos depositados nas comunidades. Foi constatada a presença de resíduos químicos misturados indiscriminadamente com resíduos orgânicos, inclusive rejeitos hospitalares. Também foram localizados vários núcleos familiares de reciclagem, que operavam de modo independente e com suas próprias rotinas e normas de manuseio e separação. Muitos desses acúmulos de resíduos invadem a rua e estão facilmente acessíveis a crianças e transeuntes (fig. S2). O odor de matéria orgânica em decomposição foi constante em todas as visitas ao grupo de expostos.

Discussão

Foi demonstrada uma associação entre a moradia próxima a sítios de reciclagem de resíduos e pior desempenho nos testes de avaliação de sintomas emocionais e comportamentais, mesmo com o controle de outras variáveis com potencial de atraso do neurodesenvolvimento. Até o presente, os autores desconhecem outros estudos que avaliem especificamente essa associação, à exceção de um estudo que mostrou a proximidade de aterro sanitário como um fator de prejuízo ao neurodesenvolvimento.18 Vários outros têm avaliado sítios de descarte do chamado “lixo eletrônico”, ou e‐waste,19 e mostram a associação entre a habitação próxima de locais dedicados a esse tipo de atividade e níveis séricos elevados de chumbo,20 assim como outros metais em amostras de cabelo,21 solo e até mesmo em alimentos.22 No entanto, esses estudos diferem do presente na medida em que a constituição dos resíduos encontrados em nosso estudo foi mista, com matéria orgânica, produtos químicos e metais sem separação prévia.

Países em desenvolvimento recebem uma “dupla carga ambiental”,23 pois lidam com questões ambientais relacionadas à industrialização no mesmo momento em que riscos socioambientais relacionados à pobreza ainda não estão totalmente resolvidos. Nessas situações, o impacto sobre a saúde das crianças é sempre maior do que no adulto.24 Nosso estudo reflete essa realidade ao investigar uma população altamente desfavorecida, com sérias vulnerabilidades e que convive com os resíduos de uma sociedade industrializada, urbana. Segundo a Organização Mundial da Saúde, estudos que avaliam exposições ambientais em crianças de países como os da América Latina são necessários não só para diagnóstico, mas também para auxiliar a adoção de políticas públicas.25

Um aspecto importante foi a abordagem adotada em relação à caracterização da exposição. Vários estudos têm reduzido a importância de medirem‐se biomarcadores, uma vez que as exposições variam ao longo do tempo.4,25 A busca eventualmente frustrada por um único poluente específico ou biomarcador no cenário estudado poderia induzir à falsa conclusão de ausência de poluentes e por conseguinte baixa carga ambiental sobre as crianças.26 Nesse estudo optou‐se por adotar a teoria do “exposissoma”, que postula que inúmeras agressões ambientais podem concorrer de maneira sinérgica para um determinado desfecho. Pela teoria, é mais lógico avaliar a exposição aos resíduos como um todo, em vez de buscar um entre milhares de poluentes específicos possíveis de serem (ou não) encontrados. Ao focar na distância entre a casa da criança e o sítio de reciclagem, jogamos a atenção sobre a rotina da criança, em vez de nos atermos a um marcador específico.

Quanto à distância usada para a caracterização dos grupos, sabe‐se que alguns poluentes, especialmente os particulados pequenos e os voláteis, podem se dispersar por distâncias de até quilômetros,4 mas claramente as crianças mais próximas do lixo e que ali circulam têm maior exposição direta a resíduos químicos. No entanto, ao não encontrarmos estudos prévios que determinassem exatamente a distância de maior impacto no caso de resíduos urbanos mistos, optou‐se por adotar o corte de distância usado em estudos que avaliam poluição do ar, de 100 a 150 metros.12,27 Como resultado secundário, nossos dados podem balizar futuros estudos com esses pontos de corte da distância.

Especialmente em países em desenvolvimento, pouco se sabe sobre o impacto das exposições ambientais sobre a saúde de crianças.23 No entanto, várias premissas de nosso estudo já estão bem demonstradas: a exposição de grande número de pessoas ao processamento informal de resíduos;28 a vulnerabilidade de crianças à agressão ambiental;6 e o efeito de poluentes sobre o desenvolvimento do sistema nervoso central.1,7,29,30

O total de 17% de crianças que apresentaram dificuldades emocionais ou comportamentais do nosso estudo coincide com a literatura.2,3 Uma das limitações do presente estudo foi a não aplicação dos questionários a professores das crianças. Nesse caso é possível que os números fossem maiores e talvez mostrassem vulnerabilidade e impacto ainda maior do contato com a reciclagem. Apesar de o instrumento (QCD) ser validado e amplamente usado em muitos países, inclusive no Brasil, é possível que não tenha sido completamente compreendido por parte dos respondedores devido a limitações cognitivas desse público, extremamente carente. No entanto, não se conhece outro instrumento que avalie os mesmos desfechos que tenha sido especificamente desenvolvido para investigar essa população.

Outros fatores associados às más condições socioeconômicas poderiam ser postulados como fatores de confusão. Esses dados foram parcialmente controlados através da análise estatística adotada, mas mais fatores de confusão podem ser analisados em estudos futuros. Chama a atenção também que nas subáreas de estudo do teste não houve diferença estatisticamente significativa. Isso se deve possivelmente ao tamanho amostral, calculado para o teste completo, e não para suas subáreas. Do mesmo modo, o número de participantes foi calculado para a delimitação em 100 metros de distância no grupo dos expostos, o que talvez explique não ter havido diferença significativa nos resultados das poucas crianças que habitavam ainda mais próximas (menos de 50 metros) às reciclagens. De qualquer modo, o estudo levanta um problema negligenciado em centros urbanos que é a segurança sanitária e os riscos à saúde de crianças. Até o presente os autores desconhecem estudos semelhantes em nosso meio, com a combinação de georeferenciamento e uso de instrumento validado como o QCD. Parece‐nos importante colocar o problema de modo permanente na perspectiva das equipes assistenciais e dos gestores da saúde e do meio ambiente.

Agradecimento

Ao apoio da Secretaria Municipal da Saúde de Caxias do Sul/RS.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

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Como citar este artigo: Dumcke TS, Benedetti A, Selistre LS, Camardelo AM, Silva ER. Association between exposure to urban waste and emotional and behavioral difficulties in schoolchildren. J Pediatr (Rio J). 2020;96:364–70.

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