This article comprises a sample of abuse modalities observed in a pediatric emergency room (PER) of a public hospital in the Lisbon metropolitan area and a multifactorial characterization of physical and sexual violence. The objectives are: (1) to discuss the importance of social and family variables in the configuration of both types of violence; (2) to show how physical and sexual violence have subtypes and internal diversity.
MethodsA statistical analysis was carried out in a database (1063 records of child abuse between 2004 and 2013). A form was applied to cases with suspected abuse, containing data on the child, family, abuse episode, abuser, medical history, and clinical observation. A factorial analysis of multiple correspondence was performed to identify patterns of association between social variables and physical and sexual violence, as well as their internal diversity.
ResultsThe prevalence of abuse in this PER was 0.6%. Physical violence predominated (69.4%), followed by sexual violence (39.3%). Exploratory profiles of these types of violence were constructed. Regarding physical violence, the gender of the abuser was the first differentiating dimension; the victim's gender and age range were the second one. In the case of sexual violence, the age of the abuser and co‐residence with him/her comprised the first dimension; the victim's age and gender comprised the second dimension.
ConclusionPatterns of association between victims, family contexts, and abusers were identified. It is necessary to alert clinicians about the importance of social variables in the multiple facets of child abuse.
Este artigo apresenta uma casuística de modalidades de maus‐tratos numa urgência pediátrica (UP) de um hospital público na área metropolitana de Lisboa e uma caracterização multifatorial da violência física e violência sexual. Os objetivos são: 1) discutir a importância de variáveis sociais e familiares na configuração de ambos; 2) mostrar como violência física e violência sexual apresentam subtipos e diversidade interna.
MétodosFez‐se uma análise estatística de uma base de dados (1.063 registos de maus‐tratos infantis, entre 2004‐2013). Usou‐se o formulário aplicado a casos com suspeita de maus‐tratos, com dados sobre a criança, família, episódio de maus‐tratos, agressor, história médica e observação clínica. Foi feita uma análise fatorial de correspondências múltiplas para identificar padrões de associação entre variáveis sociais e violência, física e sexual, bem como sua diversidade interna.
ResultadosA prevalência de maus‐tratos nessa UP foi de 0,6%. Predominam a violência física (69,4%) e a violência sexual (39,3%). Perfis exploratórios desses tipos foram construídos. Quanto à violência física, o sexo do agressor estrutura a primeira dimensão diferenciadora; sexo e grupo etário da vítima estruturam a segunda. No caso da violência sexual, a idade do agressor e corresidência com ele estruturam a primeira dimensão; idade e sexo das vítimas organizam a segunda dimensão.
ConclusãoIdentificaram‐se padrões de associação entre vítimas, contextos familiares e agressores. É necessário alertar os clínicos para a importância das variáveis sociais nas múltiplas faces que os maus‐tratos assumem.
Nas suas várias formas, os maus‐tratos infantis permanecem um traço que afeta as infâncias contemporâneas em escala mundial. Ocorrem nos mais diversos contextos, particularmente naqueles nos quais a criança devia estar mais segura e protegida (família, casa, escola, instituições em que é cuidada).1 São uma causa importante de morbidade e mortalidade infantil e suas consequências no desenvolvimento e bem‐estar da criança são devastadoras.1,2
Estima‐se que entre 4% e 16% das crianças de países de rendimento elevado são abusadas fisicamente e uma em 10 sofre de violência psicológica ou negligência.3 Segundo a OMS, 18 milhões de crianças na Europa são vítimas de violência sexual, 44 milhões de violência física, 55 milhões de violência psicológica; 850 crianças morrem anualmente na sequência desses maus‐tratos.4 A atualidade e a gravidade desse problema persistem,3 apesar das políticas de proteção infantil desenvolvidas internacionalmente desde os anos 1970.5 Em um cenário de maior intolerância social face a tais situações,6 é crucial o contributo de investigadores e profissionais para que decisores promovam políticas públicas (de registro de informação, formação de técnicos, prevenção, intervenção e seguimento no terreno) ajustadas.
Na última década, Portugal implantou políticas específicas relativas à segurança infantil, o que permitiu ao país um avanço significativo nessa área. Ainda assim, não se dispõe de dados nacionais fidedignos que permitam um conhecimento rigoroso e pleno da situação.
Em busca de colmatar a falha de estudos na área, este artigo apresenta uma casuística de modalidades de maus‐tratos em uma UP de um hospital público de Lisboa e uma caracterização multifatorial dos dois tipos mais frequentes, violência física e violência sexual. Os objetivos são 1) discutir a importância de variáveis familiares e sociais (ex.: gênero de vítimas e agressores, natureza da conjugalidade, tempo) na configuração de ambos; 2) mostrar como violência física e sexual apresentam subtipos e diversidade interna.
DefiniçõesEm consonância com a Convenção sobre os Direitos da Criança, considera‐se “criança” o indivíduo com idade inferior a 18 anos.
Em 1999, a OMS definiu maus‐tratos infantis como todas as formas de maus‐tratos físico ou emocional, violência sexual, negligência ou exploração comercial que resultam em um dano real ou potencial para a saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade da criança no contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder.6
Considera‐se violência física uma ação, por parte de qualquer cuidador, que cause dano físico real ou potencial na criança. A violência sexual é um ato em que o cuidador usa a criança para sua gratificação sexual. A violência emocional inclui a falha do cuidador em proporcionar um ambiente adequado à criança (ex.: restringir movimentos, ameaçar, ridicularizar, intimidar, discriminar, rejeitar e outras formas não físicas de tratamento hostil)7 que repercute adversamente no seu desenvolvimento e na saúde emocional. O bullying configura um processo específico de violência, com base na intimidação e abuso continuado de uma criança em relação a outra que não tem possibilidades de se defender.8,9
A negligência ou o abandono representa a falha do cuidador em garantir o desenvolvimento da criança em áreas consideradas vitais como saúde, educação, desenvolvimento emocional, nutrição, abrigo e segurança.8
MétodoParticipantesForam incluídos neste estudo registros de 1.063 crianças em 10 anos (de 2004 a outubro de 2010 até 16 anos e a partir da última data até 18 anos), identificadas como alegadas vítimas de alguma forma de maus‐tratos infantis (pelo próprio, pelo seu acompanhante ou pelo médico assistente), que recorreram ou foram referenciadas na UP do hospital.
InstrumentosComo instrumento de recolha de dados, usou‐se o formulário específico para casos com suspeita de maus‐tratos, preenchido pela equipe médica no decurso do episódio de urgência. Trata‐se de um questionário semiestruturado que contém dados sobre a criança e sua família, o episódio de maus‐tratos, o agressor, a história médica e a observação clínica e a posterior orientação da situação. A recolha dependeu da entrevista e observação feitas pelo clínico assistente na UP, existe assim alguma heterogeneidade no preenchimento completo dos campos sociais.
ProcedimentosAs variáveis do instrumento de recolha, em formato papel (até 2011) e informático (a partir de 2011), foram codificadas retrospectivamente em base de dados informatizada para sua posterior análise pela equipe multidisciplinar (Núcleo Hospitalar de Apoio à Criança e Jovem em Risco). Correspondem às características da vítima (sexo, idade, composição do agregado familiar, antecedentes pessoais de doença crónica, contexto de violência doméstica no domicílio habitual), seu agressor (sexo e idade, relação com a vítima) e da situação de maus‐tratos relatada (data de ocorrência, tipo de abuso), assim como das medidas subsequentes implantadas.
Análise estatísticaComeçou com uma breve descrição da amostra em estudo. Depois construíram‐se modelos exploratórios dos dois tipos de maus‐tratos mais frequentes na amostra: violência física (64,2%) e violência sexual (39,3%). Os modelos assentam‐se na Análise Fatorial de Correspondências Múltiplas (AFCM), feita com o método Optimal Scaling.10,11 Essa técnica visa a expor associações entre variáveis num espaço multidimensional, resume informação acerca de um grande número de variáveis categoriais, facilita a compreensão de como elas se organizam em padrões específicos. Para as variáveis numéricas com distribuição normal calcularam‐se a média e o desvio‐padrão. Para as variáveis sem distribuição normal calcularam‐se a mediana, o mínimo e o máximo. Para as análises comparativas recorreu‐se ao teste do qui‐quadrado para variáveis categóricas. Essa técnica não substitui qualquer modelo preditivo ou de risco. As análises estatísticas foram feitas no SPSS Statistics® (IBM SPSS Statistics para Windows, versão 24.0. NY, EUA).
Considerações éticasA colheita de dados no processo clínico é feita pelo clínico mediante consentimento verbal prestado pelo acompanhante da criança ou adolescente na UP, de acordo com as leges artis. Os procedimentos de recolha, tratamento e análise de dados foram aprovados pelo Comité de Ética do Hospital em que se situa a UP.
ResultadosNo período considerado registraram‐se 1.063 casos de maus‐tratos, corresponderam a 0,6% das ocorrências nessa UP. A maioria das vítimas é do sexo feminino (62,4%) e a idade média é de 8,8 anos (SD±5,1). Globalmente, a maioria dos episódios ocorre em crianças entre 10 e 14 anos (32,7%). As vítimas do sexo feminino tendem a ser mais velhas (média=9,4, SD±5). A maioria do sexo masculino tem até 4 anos (32,5%). Relativamente aos progenitores das crianças, as mães têm em média 35 anos (SD±8) e os pais 38 (SD ±9). A maioria está empregada (83,6% dos pais e 76,6% das mães) e mais da metade (56,2%) está divorciada ou separada. Em 158 casos reporta‐se a existência de violência doméstica no lar em que a criança reside.
A violência física é o tipo de mau‐trato mais comum (69,4%), seguido da violência sexual (39,3%) e da violência emocional (22,2%). Em 8,7% dos casos, as crianças observadas foram vítimas de negligência e em 0,7% dos casos foram abandonadas. A maioria dos agressores é do sexo masculino (72,3%), com média de 32 anos (SD ± 13,3). Com ligeiras variações no seu peso relativo, esse é o padrão tipicamente sinalizado numa UP,12,13 diferente do que se encontra, por exemplo, nas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), nas quais a negligência e a violência emocional são os tipos mais frequentemente registrados (tabela 1).14
Caracterização da amostra
Variável | Categorias | n | % | Dados descritivos |
---|---|---|---|---|
Sexo da vítima (n=1060) | Masculino | 399 | 37,60% | |
Feminino | 661 | 62,40% | ||
Idade da vítima (anos) (n=1061) | Média: 8,8 | |||
Mediana: 9,0 | ||||
Desv. Padrão: 5,1 | ||||
Min‐Máx: 0,1‐18,0 | ||||
Escalões etários vítima (anos) (n=1061) | 0‐4 anos | 294 | 27,70% | |
5‐9 anos | 238 | 22,50% | ||
10‐14 anos | 353 | 33,30% | ||
15‐18 anos | 175 | 16,50% | ||
Idade da mãe (anos) (n=723) | Média: 34,9 | |||
Mediana: 35,0 | ||||
Desv. Padrão: 8,0 | ||||
Mín‐Máx: 16,0‐59,0 | ||||
Idade da pai (anos) (n=616) | Média: 38,4 | |||
Mediana: 39,0 | ||||
Desv. Padrão: 9,0 | ||||
Min‐Máx: 17,0‐74,0 | ||||
Emprego materno (n=838) | Desempregada | 179 | 21,40% | |
Empregada | 642 | 76,60% | ||
Reformada | 5 | 0,60% | ||
Ausente | 12 | 1,40% | ||
Emprego materno (n=733) | Desempregado | 77 | 10,50% | |
Empregado | 613 | 83,60% | ||
Reformado | 14 | 1,90% | ||
Ausente | 29 | 4,00% | ||
Pais div./separados (n=828) | Não | 363 | 43,80% | |
Sim | 465 | 56,20% | ||
Violência doméstica (n=272) | Não | 114 | 41,90% | |
Sim | 158 | 58,10% | ||
Tipos de maus‐tratos (n=1063) | Violência física | 682 | 65,20% | |
Violência sexual | 358 | 34,20% | ||
Violência emocional | 114 | 10,90% | ||
Negligência | 91 | 8,70% | ||
Abandono | 7 | 0,70% | ||
Sexo do agressor (n=823) | Masculino | 595 | 72,30% | |
Feminino | 228 | 27,70% | ||
Idade do agressor (583) | Média: 32,0 | |||
Mediana: 33,0 | ||||
Desv. Padrão: 13,3 | ||||
Mín‐Máx: 5,0‐80,0 | ||||
(n=583) |
Fonte: Formulário de sinalização de urgência da criança maltratada (2004‐2013).
O tempo introduz outros padrões de caracterização. Apesar das variações anuais (a análise longitudinal não considerou 2004, pois o formulário não esteve em vigor desde o início desse ano), existe uma tendência crescente no número de casos detectados. Mas é diferenciada a evolução anual por tipo de maus‐tratos. O número de casos de violência sexual tem se mantido estável, com picos em 2007 e 2012. Já os casos de violência emocional têm aumentado nos últimos anos (fig. 1).
A análise da distribuição mensal dos episódios de violência relatados indica uma média acumulada de 83 ocorrências. A variação mensal, que remete para ritmos sazonais de vida social, é significativa: há mais casos nos meses de primavera e verão (março, maio, junho, julho, setembro e outubro) e menos no fim do outono e inverno (novembro, dezembro e janeiro). A violência física é o tipo mais comum de maus‐tratos ao longo do ano. A violência sexual registra picos de ocorrência no verão e em dezembro (meses coincidentes com as férias escolares e a permanência das crianças em casa). Os casos de violência emocional são mais comuns nos últimos 12 meses do ano (novembro e dezembro).
Perfis exploratórios da violência física e da violência sexualTraçamos seguidamente alguns perfis exploratórios da relação entre as variáveis sociais e os tipos de maus‐tratos mais comuns e recorremos à AFCM. Os resultados são apresentados nas figuras 2 e 3. Foram incluídas variáveis relacionadas com a vítima e agressor (sexo e escalão etário) e o contexto familiar (pais divorciados/separados).
Quanto à violência física, o sexo do agressor estrutura a primeira dimensão, ao passo que sexo e grupo etário da vítima estruturam a segunda dimensão (fig. 2). A idade do agressor é um fator que intermedeia esses dois elementos.
Identifica‐se um primeiro perfil de violência física em que vítimas e agressores são adolescentes (canto inferior direito), em situações de violência entre pares (i.e. bullying) que ocorrem tanto no contexto escolar como fora dele. Um segundo perfil (canto inferior esquerdo) corresponde a agressores do sexo masculino, tendencialmente mais velhos, que agridem vítimas sobretudo do sexo feminino, entre os 10 e os 14 anos; vítimas e agressores residem juntos. Um terceiro perfil (canto superior esquerdo) destaca agressoras do sexo feminino, separadas ou divorciadas, entre 20 e 39 anos. Aqui, as vítimas tendem a ser do sexo masculino, muito jovens (entre 5 e 9 anos) e em corresidência parcial com a agressora. Existe um quarto perfil, menos definido, no canto superior direito, em que as vítimas são crianças muito pequenas e do sexo masculino; escasseia informação acerca do abusador e sobre a situação conjugal dos pais.
No caso da violência sexual, os dados estruturam‐se de forma distinta. A idade do agressor e corresidência com o agressor estruturam a primeira dimensão. Idade e sexo das vítimas organizam a segunda dimensão. O sexo do agressor e uma separação/divórcio recente são os elementos que fazem a ponte entre essas duas dimensões.
Existe uma associação entre agressor do sexo masculino e vítimas do sexo feminino (parte inferior do gráfico). Nesse perfil, a violência ocorre em situações em que a vítima provém de famílias em que não houve separação dos pais. Trata‐se de agressores do sexo masculino que agridem vítimas do sexo feminino em idade pré‐adolescente ou adolescente. Um segundo perfil (parte superior do gráfico) associa agressores do sexo feminino, entre 30 e 39 anos, a vítimas mais jovens e que provêm de contextos em que houve separação dos progenitores. A qualidade dos dados sofre aqui algum enviesamento pela ausência ou desconhecimento de informação sobre identidade e idade do agressor, o que compromete a descrição dos outros dois quadrantes. Esse sinal sugere a relativa opacidade que envolve as situações de violência sexual sobre crianças muito jovens, a que acresce o fato de serem eventualmente praticadas por mulheres ou pela conivência/proteção dessas face ao agressor/companheiro.
DiscussãoA casuística que obtivemos em contexto de UP não se afasta, em grande medida, de outras assinaladas na literatura, notadamente a portuguesa.8,9 Com a estatística descritiva, comprovam‐se os tipos de maus‐tratos mais frequentes na UP (violência física e sexual), portanto formas de maus‐tratos ativas, por oposição a negligência (tipicamente captada através de serviços e técnicos de assistência social),1 e o seu peso relativo segue padrões comuns.15
Revelaram‐se nesta amostra indícios de prática de violência física entre pares, especialmente entre as crianças mais velhas. Se, em outros países, o bullying adquiriu alguma visibilidade estatística e em jornais pediátricos,5,16 já em Portugal a abordagem do tema é incipiente. Isso se deve, certamente, à não consideração ou registro dessas situações nos atuais protocolos de recolha de informação.
O sexo da criança e o do agressor foram contemplados na análise e a variável gênero teve um desempenho relativamente previsível, face à literatura conhecida:17 agressores maioritariamente do sexo masculino (72%), vítimas sobretudo do sexo feminino (62%) e importância do gênero na estruturação da proximidade ou distância entre variáveis ilustrativas na construção dos dois tipos de violência física ou violência sexual.
Face a outros, este estudo ensaia a introdução de variáveis sociais pouco usadas na análise e na caracterização dos maus‐tratos infantis. O tempo, por um lado, e a relação conjugal entre os pais da criança, por outro, trouxeram resultados inovadores.
O ritmo sazonal dos maus‐tratos ficou patente: primavera e verão concentram picos máximos, o fim do outono e o inverno registram valores mínimos. A relativa estabilidade da violência física ao longo do ano contrasta com a concentração da violência sexual nos meses de verão e em dezembro. Investigações aprofundadas permitirão compreender essa variabilidade; mas os ritmos da vida escolar (com a maior permanência das crianças em casa ou exclusivamente à guarda da família em períodos de férias) podem fazer parte da explicação.
Por outro lado, a natureza da relação conjugal entre os progenitores da criança (pais casados vs. pais divorciados/separados) revelou‐se uma variável explicativa. É um resultado que se destaca da abordagem dominante feita na literatura sobre maus‐tratos infantis, que privilegia – na caracterização da relação do casal – a questão da existência de violência.18 Ora, a situação na conjugalidade dos progenitores (em união ou separados), de per si, joga um papel na configuração de dois subtipos de violência sexual: entre agressores do sexo masculino e vítimas do sexo feminino em idade pré‐adolescente ou adolescente; entre agressores do sexo feminino e crianças mais jovens. As primeiras situações associam‐se a pais em conjugalidade; as segundas a pais separados. Os dados são antes de tudo suspeitas de violência; ora, em idades precoces, são difíceis de comprovar e dependentes do relato (manipulado?) do progenitor que acompanha a criança à UP, eventualmente envolvido numa situação de separação litigiosa.
Neste artigo ensaiou‐se ainda a aplicação de uma metodologia multidimensional, pouco comum na literatura, que permitiu descobrir outros subtipos da violência física e sexual. O gênero assume um papel relevante na estruturação desses perfis: o sexo da criança e do agressor na violência física; e o sexo da criança nas diferentes formas de violência sexual. Destaque‐se, ainda, a visibilidade com que surge, na violência sexual, a mulher como agressora de uma criança mais nova, é uma realidade raramente captada ou discutida em estudos congêneres,19 mas a que a intervenção deve estar atenta.
As limitações deste estudo derivam, em grande medida, das lacunas no preenchimento dos dados por parte dos profissionais da UP, situação potenciada pela circunstância de o protocolo não ser, até a data, de preenchimento obrigatório. O fato de ser preenchido durante o agitado expediente hospitalar também contribui para o menor rigor e atenção dessa operação. Esses fatores explicam a menor qualidade ou mesmo inexistência de dados sobre meios sociais de origem da criança, particularmente evidente no caso dos progenitores das vítimas de violência sexual (nível de instrução, profissão, emprego etc.).
É sabido que as situações reportadas em uma UP são apenas uma fração dos casos de maus‐tratos infantis, mesmo das que conduzem ao hospital;20 e que tais maus‐tratos são, com frequência, apenas detectados após múltiplas visitas.21 O alargamento e refinamento das questões usadas no formulário e a sua conversão numa plataforma de preenchimento obrigatório, anexada ao processo hospitalar, contribuirão para ultrapassar os problemas de incompletude dos dados, como ainda para incrementar a taxa de detecção de situações de violência, na esteira de boas‐práticas documentadas.15,22
Uma maior consciência acerca da importância das variáveis sociais e familiares, bem como do contexto escolar, nas múltiplas faces que os maus‐tratos podem assumir, será inevitavelmente útil aos profissionais de saúde, treinados sobretudo para a avaliação de fatores orgânicos ou psicológicos de risco. Este estudo pretende contribuir nesse sentido.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
À equipe do Departamento de Pediatria do Hospital Fernando Fonseca pelas informações cedidas e pelo apoio durante este trabalho. A Débora Terra pela revisão do texto em português do Brasil.
Como citar este artigo: Almeida AN, Ramos V, Almeida HN, Escobar CG, Garcia C. Analysis of contextual variables in the evaluation of child abuse in the pediatric emergency setting. J Pediatr (Rio J). 2017;93:374–81.