A primeira vez que ouvi alguém falar sobre tolerância zero em relação à morte por asma foi na WAOInternational Scientific Conference em Dubai em 2010. Fiquei impressionado com o vigor com que a professora Tari Haahtela apresentou os resultados obtidos com o uso de planos de educação em saúde na prevenção da mortalidade por asma na Finlândia. Gary Wong tinha acabado de afirmar o mesmo conceito em um contexto diferente.1 Sob todos os céus então, inclusive o da América Latina,2 não há custo maior do que a morte evitável de um paciente, em particular entre crianças.
Após seu aumento de 0,45/100.000 em 1974/5 até um pico de 0,62/100.000 em 1985/6, a mortalidade por asma diminuiu no mundo. Em 2004/5, as taxas de mortalidade nos países desenvolvidos, inclusive Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia, Austrália e Japão, caíram para uma taxa de 0,23/100.000. Essa redução foi associada ao aumento do uso de corticosteroides inalatórios.3
A queda na mortalidade coincidiu com a introdução de diretrizes cada vez mais precisas para o manejo da asma internacionalmente e em países específicos, com o desenvolvimento de planos educacionais para clínicos, farmacêuticos e outros profissionais da saúde e com sua implantação pelas autoridades de saúde de cada país.
O protótipo dos modelos de controle de doenças continua a ser o programa finlandês de controle da asma, que produziu um enorme efeito na redução da mortalidade e morbidade da asma em 1994-2004. Ele era centrado no diagnóstico precoce, tratamento anti-inflamatório ativo imediatamente após o diagnóstico, informações sobre a doença e seu tratamento, automanejo e um networking efetivo entre especialistas, médicos de atenção primária e farmacêuticos. Esse programa resultou em uma redução nas mortes por asma de 100 para menos de 20 por ano em uma população de 5 milhões de finlandeses, o que poderia ser atribuído em grande parte ao uso precoce e mais eficaz de medicamentos anti-inflamatórios, especialmente corticosteroides inalatórios (fig. 1).4,5
Outros países (Austrália, Irlanda, Canadá, Polônia, Tonga, África do Sul, Nova Zelândia) seguiram o exemplo finlandês, desenvolveram suas próprias estratégias nacionais de redução da asma com bom êxito.2,6 Na Europa, o plano integrado European Asthma Research and Innovation Partnership (Earip) também foi posto em prática para harmonizar as atividades educacionais sobre a asma em todo o continente, a fim de desenvolver uma abordagem abrangente focada no controle da asma, reduzir a mortalidade e morbidade.7 Seu objetivo é reduzir a mortalidade por asma na Europa em 25% em 10 anos e em 50% em 20 anos.
Apesar de todo o progresso feito com a intervenção terapêutica precoce, uma taxa de mortalidade incompressível permanece mesmo quando as possibilidades oferecidas pelos anti-inflamatórios convencionais foram saturadas (fig. 1). Nos países desenvolvidos, agora experimentamos sinais de recuperação ascendente na mortalidade,8 juntamente com um aumento dos eventos adversos induzidos por corticosteroides em pacientes com asma grave,9 enquanto a mortalidade por asma não foi eliminada em qualquer lugar.
Esse cenário é aplicável a algumas partes do Brasil, mas não a todo o país. Os dados publicados nesta edição da Revista10 são interessantes, pois surgem de um sólido sistema de relatos em uma faixa etária jovem, na qual a mortalidade por asma pode ser mais precisamente rastreada devido à ausência de diagnósticos confundidores.11 No Brasil, a redução da mortalidade por asma ao longo de 20 anos é visível, demonstra o grande progresso no atendimento pediátrico pneumológico nesse país. A redução mais importante foi alcançada no grupo de crianças menores de quatro anos, o qual, entretanto, continua a ser o grupo que mais contribuiu para a mortalidade por asma em 2015. De fato, a mortalidade por asma em crianças brasileiras não atingiu um nível baixo ideal em todo o país. Algumas áreas de maior mortalidade ainda persistem, particularmente entre crianças menores de 10 anos e em algumas áreas geográficas, como o Norte e o Nordeste.10
O estudo mostra duas áreas de possível intervenção: os adolescentes e os pré-escolares.
Os adolescentes brasileiros com asma correm o risco de sub-hospitalização durante as crises,10 talvez como parte de sua negação da doença, comportamentos terapêuticos incompatíveis, tabagismo e problemas psicossociais. Algumas dessas condições podem ser melhoradas com intervenções educacionais específicas, voltadas para as razões do mau controle dos sintomas asmáticos: subestimação por pacientes e médicos, subtratamento, especialmente com drogas anti-inflamatórias, uso excessivo de broncodilatadores em caso de crises, baixa adesão aos medicamentos e pouca habilidade no uso dos dispositivos prescritos.12 Uma parte importante poderia ser o uso da agora disponível versão em português do Test for Respiratory and Asthma Control in Kids (Track).13 Uma parte substancial das causas (por exemplo, famílias de baixa renda14,15) exigiria intervenções complexas.
Digno de nota, 68% das mortes relatadas ocorreram em crianças com menos de 4 anos.10 Nessa faixa etária, as incertezas permanecem sobre a possibilidade de rotular uma criança como asmática.16 Concordo plenamente com a opinião dos autores de que, na idade pré-escolar, a asma deve ser considerada como tal, além das dificuldades de definição. Sob seus fenótipos multifacetados,17 pré-escolares experimentam episódios de sibilância grave, resultaram em visitas ao pronto-socorro, hospitalização e uso de esteroides orais. Pré-escolares merecem o tratamento da asma, pois uma intervenção precoce pode diminuir o número de exacerbações e promover o crescimento do pulmão. Como parte dessa intervenção, os planos educacionais não devem ser poupados.
Um obstáculo considerável para a realização de planos educacionais pode ser a vastidão territorial e a heterogeneidade econômica e social do Brasil. Essa nação tem uma das maiores taxas de desigualdade do mundo e o índice de Gini, que mede a desigualdade econômica dentro dos países, já foi associado a uma alta prevalência de alergias e asma.18 É também um país com alta prevalência de sensibilização a alérgenos perenes, associado à mortalidade por asma.19 Entretanto, o Brasil oferece oportunidades para planos educacionais. É o 5° país em uso de smartphones no mundo: 54% dos adultos brasileiros têm um smartphone e as famílias geralmente compartilham um dispositivo; estima-se que 120 milhões de brasileiros acessem a internet.20 Isso poderia oferecer as oportunidades de infraestrutura para intervenções modernas baseadas na saúde digital.21 Um esforço adicional será necessário por parte da comunidade médica brasileira e autoridades de saúde para abordar, juntamente com os problemas de saúde, os problemas sociais que podem ser vislumbrados sob os números do estudo publicado hoje. Afinal, trata-se de enfrentar um dos muitos aspectos da fragilidade das crianças na idade pré-escolar e adolescência, que nos lembra a necessidade de reconhecimento, cuidado e educação.
Toda morte por asma é demais. Os pediatras brasileiros estão prontos para aceitar esse desafio.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.