Em dezembro de 2019, surgiu na China um novo coronavírus, chamado de SARS-CoV-2 (Síndrome Respiratória Aguda Grave coronavírus 2), associado a grupos de pacientes com pneumonia que foram epidemiologicamente ligados a um mercado de frutos do mar e animais vivos na cidade de Wuhan, Província de Hubei.1 COVID‐19, o termo usado para a doença clínica causada pelo SARS‐CoV‐2, foi declarado uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março – a primeira causada por um coronavírus.2 Em 2 de abril, o número de casos confirmados em todo o mundo atingiu quase um milhão, com 50.000 mortes, com casos confirmados em quase todos os países de todos os continentes.3 O número de casos notificados da COVID‐19 certamente subestima a verdadeira carga da doença, dada a indisponibilidade de testes em vários locais, e também a proporção significativa de pessoas que, apesar de infectadas, desenvolvem formas assintomáticas ou leves não identificadas da doença.4 Portanto, devemos ter cuidado ao calcular a taxa de letalidade (CFR, case fatality rates) da COVID‐19 (atualmente mostram taxas globais de até 5%), reconhecer que essas taxas provavelmente serão mais baixas quando o denominador for ajustado para refletir o número real de pessoas que adquiriram a infecção. Os estudos de soroprevalência, uma vez disponíveis, fornecerão informações sobre a proporção da população infectada, possibilitando uma estimativa mais precisa da CFR associada à COVID‐19 nas diferentes faixas etárias e populações.
Dada a rápida disseminação (determinada pelo número básico de reprodução – R0, estimado no início da epidemia em valores de 2,38 [IC 95%: 2,04‐2,77])4 e o profundo impacto global da COVID‐19, com taxas crescentes de hospitalizações e mortalidade entre uma população totalmente naive em termos imunológicos em relação ao vírus, bem como a falta de vacinas disponíveis ou antivirais eficazes específicos contra o SARS‐CoV‐2, a pandemia da COVID‐19 representa a ameaça mais grave à saúde pública associada a uma infecção viral respiratória desde a pandemia de influenza‐A H1N1 de 1918.5
Dados preliminares da China, confirmados na experiência mais recente da Europa e dos EUA, mostram que idosos, particularmente aqueles com determinadas condições subjacentes de saúde, apresentam um risco desproporcionalmente maior de doença grave e morte associadas à COVID‐19 quando comparados a adultos jovens, adolescentes e crianças.6–10 O primeiro grande relatório do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da China incluiu 44.672 casos confirmados de COVID‐19, apenas uma morte ocorreu em pessoas com ≤ 19 anos e aproximadamente 80% das mortes ocorreram em adultos com ≥ 60 anos.8
O primeiro relato dos EUA sobre desfechos em pacientes com COVID‐19 indicou que 80% das mortes ocorreram em adultos com ≥ 65 anos, com a maior porcentagem de desfechos graves em pessoas com ≥ 85 anos e nenhuma mortalidade em pessoas com ≤ 19 anos.9 Na Itália, apenas 1,1% das mortes iniciais relatadas ocorreu em pessoas com menos de 50 anos e nenhuma delas era criança.10
Uma das descobertas mais impressionantes e consistentes dos relatos da COVID‐19 em todo o mundo é que, ao contrário dos adultos infectados, as crianças raramente experimentam as formas graves da doença. O espectro de manifestações descrito em 171 crianças (um dia–15 anos) infectadas com SARS‐CoV‐2 e tratadas no Hospital Infantil de Wuhan mostrou que os sinais e sintomas mais comuns incluem tosse (presente em 48,5% dos casos), eritema faríngeo (46,2%) e febre (41,5%). Outros sinais e sintomas menos comuns encontrados em menos de 10% das crianças foram diarreia, fadiga, rinorreia e congestão nasal. Taquipneia na hospitalização foi encontrada em 28,7% das crianças e hipoxemia (saturação de oxigênio<92% durante o período de hospitalização) em apenas 2,3% das crianças. O achado radiológico mais comum foi a opacidade bilateral em vidro fosco, observada em 1/3 dos casos.11 Surpreendentemente, da mesma forma que havia sido observado em adultos com pneumonia por COVID‐19,12 foram encontradas anormalidades na imagem da TC de tórax de crianças assintomáticas, salientando o conceito de que a avaliação das características da imagem com achados clínicos e laboratoriais pode facilitar o diagnóstico precoce da pneumonia por COVID‐19.
Na maior série de casos de pacientes pediátricos relatados até o momento, foram incluídas 2.143 crianças com suspeita ou confirmação de COVID‐19. Entre as 731 crianças com doença confirmada virologicamente, 94 (12,9%), 315 (43,1%) e 300 (41%) foram classificadas como casos assintomáticos, leves ou moderados, respectivamente, representando 97% dos casos confirmados. A proporção de crianças classificadas como casos graves e críticos, respectivamente 2,5% e 0,6%, foi substancialmente menor do que aquela observada em adultos com COVID‐19. Lactentes e crianças em idade pré‐escolar apresentaram maior probabilidade de manifestações clínicas graves do que crianças mais velhas, o que está de acordo com dados anteriores de crianças com infecções por coronavírus não SARS‐CoV‐2.13 Em outro estudo que investigou as características clínicas de uma coorte de 36 crianças com COVID‐19 na China, os autores descobriram que aproximadamente metade dos casos era assintomática ou apresentava apenas sintomas respiratórios agudos superiores leves e a outra metade apresentava doença moderada com pneumonia. As manifestações clínicas da COVID‐19 em crianças são muito mais leves do que nos adultos.14 Em comparação aos pacientes pediátricos com infecção por influenza, as crianças com COVID‐19 apresentaram uma proporção maior de casos assintomáticos, embora a pneumonia tenha sido mais prevalente. Com base na experiência dos primeiros casos tratados em nosso Hospital em São Paulo (dados não publicados), o pediatra deve estar alerta quanto à possibilidade de coinfecção por outro vírus respiratório ao tratar bebês e crianças pequenas com COVID‐19.
Os dados disponíveis sobre a gravidade da COVID‐19 em crianças com comorbidades são escassos, limitando a possibilidade de identificar condições com maior risco de complicações e mortalidade. Marcadores clínicos e laboratoriais de gravidade da doença e desfechos piores estão sendo investigados. Resultados preliminares, a maioria deles de pacientes adultos, mostraram que o desconforto respiratório na hospitalização e a linfopenia, elevados níveis de citocinas (particularmente IL‐6, IL‐10 e TNFα) e o aumento do dímero‐D ao longo do tempo e diminuição da expressão de IFNγ nas células T CD4+estão associadas a COVID‐19 grave.11,15
As razões para o risco muito menor das formas graves COVID‐19 em crianças (consistentes com o que também foi observado anteriormente para surtos de coronavírus SARS e MERS), quando comparadas às faixas etárias mais velhas, permanecem incertas e várias hipóteses foram levantadas para explicar esse fenômeno,16,17 incluindo diferentes padrões de respostas imunológicas entre as idades. É mais provável que os adultos, uma vez infectados com SARS‐CoV‐2, desenvolvam respostas imunes desbalanceadas, o que leva a uma tempestade de citocinas, frequentemente associada a danos nos pulmões e pior prognóstico para os pacientes, em oposição a lactentes e crianças nos quais seriam esperadas diferenças na imunidade inata e uma resposta mais eficiente das células T, capazes de eliminar o vírus.17,18 A proteção cruzada adquirida pela exposição prévia a coronavírus humanos (HuCoV), frequentemente associados a infecções leves em crianças, também foi levantada como uma explicação teórica para a menor gravidade em crianças, o que não parece ser uma hipótese razoável, dada a falta de casos graves relatados em bebês muito jovens, uma faixa etária improvável de ter sido previamente exposta a essas infecções por HuCoV. Acreditamos que a hipótese mais interessante para a menor gravidade da COVID‐19 pode estar relacionada à expressão da enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) nas células epiteliais alveolares do tipo I e II. Verificou‐se que a ACE2 é o receptor do SARS‐CoV‐2, necessário para a entrada na célula hospedeira e subsequente replicação viral.19 Portanto, uma expressão limitada da ACE2 na infância, um período em que os pulmões ainda estão em desenvolvimento, poderia proteger as crianças das formas graves de doença. Curiosamente, os homens têm níveis mais altos de ACE2 em suas células alveolares em comparação às mulheres, o que também poderia explicar as taxas mais altas de piores desfechos no sexo masculino,7–10 uma tendência também observada em estudos em crianças, ao comparar as taxas de hospitalização entre meninos e meninas.11,13
Dados da China que analisam o risco de transmissão intrauterina não mostraram evidências de infecção congênita com o SARS‐CoV‐2 de mães com pneumonia por COVID‐19.20,21 No entanto, dois estudos recentes relataram resultados intrigantes: o primeiro22 demonstrou a presença de anticorpos IgM e IgG no soro do sangue coletado ao nascer de dois bebês de mães com pneumonia por COVID‐19 e o segundo23 descreveu três bebês com infecção por SARS CoV‐2 de início precoce. Embora intrigante, é importante notar que nenhum dos bebês descritos nesses dois estudos apresentava evidência virológica de infecção por SARS‐CoV‐2, o que enfatiza a necessidade de mais dados antes de afirmar que a infecção por SARS‐CoV‐2 pode ser adquirida no útero.
Embora neste momento não se saiba se as mães com COVID‐19 podem transmitir o SARS‐CoV‐2 via leite materno, a OMS e a Sociedade Brasileira de Pediatria fizeram recomendações claras, permitindo o aleitamento materno.24,25 Portanto, devem ser seguidas precauções para evitar a transmissão do vírus ao bebê, incluindo a lavagem das mãos pela mãe antes de segurá‐lo e o uso de uma máscara facial em contato próximo com o bebê.
Um ponto crucial para investigação e ainda a ser determinado é o papel das crianças na transmissão. Vários estudos feitos em diferentes populações e faixas etárias demonstraram que uma proporção significativa dos casos de COVID‐19 foi diagnosticada sem apresentar sintomas ou com apresentações muito leves,11,14,26–28 provavelmente não identificadas com os atuais critérios de verificação de definição de caso. Apesar de assintomáticos ou oligossintomáticos, lactentes e crianças infectados podem ter alta carga viral na nasofaringe, além de eliminação fecal de SARS‐CoV‐2 por períodos mais longos.29–31 Além disso, um estudo feito em Shenzen comparando casos identificados por meio de vigilância sintomática e rastreamento de contatos, mostrou que as crianças corriam o mesmo risco de ser infectadas quanto os adultos.32 Juntas, todas essas evidências mostram que as crianças são suscetíveis à infecção por SARS‐CoV‐2, frequentemente apresentam formas assintomáticas ou leves da doença, representam uma fonte substancial de infecção na comunidade, antecipando que elas talvez possam desempenhar um papel importante na transmissão viral. Estudos epidemiológicos robustos, capazes de esclarecer as incertezas por trás do papel exato que as crianças desempenham na transmissão da SARS‐CoV‐2, são urgentemente necessários.
Essas informações serão de enorme importância para ajudar a orientar e modular intervenções não farmacológicas, implantadas para reduzir a magnitude do pico epidêmico da COVID‐19 e evitar um acúmulo de casos graves, hospitalizações e mortes por essa doença devastadora. Essas intervenções, que incluem não apenas o isolamento domiciliar de casos suspeitos e quarentena de contatos domiciliares, mas também o distanciamento social em toda a população, bem como o fechamento de escolas e universidades, enfrentam vários desafios a serem implantados oportunamente e efetivamente mantidos por períodos mais longos.5 Em lugares como o Brasil, devemos reconhecer que esses desafios são ainda maiores, se considerarmos a proporção da população que vive em extrema pobreza, nas grandes cidades densamente povoadas.
Compreender como o SARS‐CoV‐2 emergiu e passou de uma espécie animal para outra, a partir de um reservatório em morcegos – provavelmente através dos pangolins malaios como hospedeiros intermediários antes da transferência zoonótica –,33 também é crucial. Entre as lições importantes aprendidas dessa pandemia de coronavírus está a necessidade de medidas urgentes para extinguir esses wet markets de animais selvagens vivos na Ásia. Esses mercados são uma fonte potencial na natureza para o surgimento periódico de vírus respiratórios zoonóticos que podem se adaptar aos seres humanos, representando uma ameaça contínua ao mundo, a menos que sejam tomadas medidas sérias para mudar esse cenário.
Atualmente não existem antivírus específicos para o tratamento da COVID‐19. O tratamento em crianças inclui ingestão de líquidos e boa nutrição, além de suplementação de oxigênio e suporte ventilatório.34 Devido ao raro número de casos graves em crianças, não há dados de segurança e eficácia das diferentes intervenções terapêuticas que estão sendo testadas em adultos.35 Se nos espelharmos no que foi observado em outras infecções respiratórias, como a influenza, uma descoberta importante foi que quanto mais cedo formos capazes de iniciar os antivirais, após o início dos sintomas, melhores serão os resultados. Supondo que a maioria desses estudos tenha sido feita em pacientes críticos, geralmente na fase tardia da doença, devemos ser cautelosos ao interpretar os resultados e tentar projetar estudos que tenham o poder de responder a essas incertezas quanto à eficácia, bem como os potenciais efeitos colaterais nas diferentes faixas etárias e apresentações clínicas da COVID‐19.
Atualmente, o desenvolvimento de uma vacina contra o SARS‐CoV‐2 é uma demanda evidente. Várias plataformas estão sendo investigadas, inclusive vacinas baseadas em RNA e DNA, vacinas de subunidades recombinantes, vacinas vivas atenuadas e vacinas de vetores virais, entre outras. A experiência anterior com vacinas candidatas contra SARS‐CoV e MERS‐CoV abriu o caminho e facilitará o desenvolvimento de vacinas para o SARS‐CoV‐2. Existe uma preocupação com vários aspectos, incluindo a possibilidade de induzir amplificação dependente de anticorpos (ADE, do inglês antibody‐dependent enhancement), aumentando o risco de doença grave nos indivíduos vacinados, a falta de correlatos específicos de proteção para SARS‐CoV‐2, a capacidade de produção em larga escala e a necessidade do uso de adjuvantes (para aprimorar as respostas imunes e o efeito de dosesparing).36
Até que uma vacina se torne disponível, o que não é esperado antes de mais 12 a 18 meses, se tudo funcionar bem, devemos nos concentrar na implantação de intervenções não farmacológicas oportunas e eficazes para reduzir a carga da doença e proteger a população mais vulnerável, minimizar o tremendo custo social que já estamos enfrentando, expandir a capacidade de assistência médica, fornecer equipamento de proteção suficiente para os profissionais de saúde, estimular a lavagem frequente das mãos, o uso de máscaras e intensificar ao máximo a capacidade de testar casos suspeitos. Chegou a hora de finalmente aprendermos lições sobre pandemias que podem ser transmitidas para as gerações futuras.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflitos de interesse.
Como citar este artigo: Safadi MA. The intriguing features of COVID‐19 in children and its impact on the pandemic. J Pediatr (Rio J). 2020;96:265–8.