O estimulante estudo de da Rocha Neves et al. nesta edição aborda o papel de fatores sociais e biológicos no crescimento e desenvolvimento de crianças jovens em uma sociedade desfavorecida.1 Os autores avaliaram 92 crianças, entre 24 e 36 meses, que frequentaram em 2011 a rede municipal de educação na primeira infância em uma cidade da região do Vale do Jequitinhonha. Essa região no sudeste do Brasil é considerada economicamente desfavorecida. O estudo restringiu‐se a crianças com desenvolvimento normal, o que significa que as crianças não sofriam de deficiência congênita ou adquirida evidente. O crescimento foi avaliado por meio de padrões antropométricos com foco na estatura por idade, uma ferramenta válida para avaliar a desnutrição na infância.2 O desenvolvimento foi medido com a Escala Bayley de Desenvolvimento Infantil (BSITD‐III),3 padrão de base para medir o resultado do desenvolvimento em idade precoce. Os níveis cognitivos e os níveis de linguagem expressivos foram usados como parâmetros de resultado. O risco biológico foi avaliado por alguns fatores perinatais, como idade gestacional no nascimento, peso ao nascer, complicações na gravidez e número de consultas pré‐natais, e alguns parâmetros da infância, incluindo amamentação, presença de doenças crônicas, doenças infecciosas e internações hospitalares. O ambiente social foi registrado extensivamente, não apenas por meio do nível de escolaridade dos pais, do número de irmãos e do número de pessoas na residência, mas também com questionários padronizados para avaliar a) a situação econômica (com o questionário da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa); b) a qualidade da educação na primeira infância (com a Escala Revisada de Classificação do Ambiente na Infância); c) a qualidade do ambiente familiar (com o Inventário de Observação Doméstica para Medição do Ambiente [Home]); e d) a qualidade do bairro (com um questionário próprio, incluindo perguntas sobre acessibilidade e qualidade dos serviços).
Os resultados confirmaram que as crianças tinham um histórico social desfavorecido. Isso se refletiu, por exemplo, no achado de que cerca de 90% dos pais não tinham concluído o ensino médio e cerca de metade das crianças não viviam com ambos os pais. A grande maioria das crianças nasceu a termo (94%) sem sinais de restrição do crescimento intrauterino grave. Quase metade das crianças tinham tido doenças crônicas e/ou infecciosas nos três meses anteriores ao estudo.
O retardo do crescimento, definido como o índice estatura por idade abaixo de dois desvios padrão da norma, ocorreu em 15% das crianças. A análise multivariável indicou que a atrofia do crescimento estava associada ao peso ao nascer e ao número de consultas pré‐natais. Nenhum dos muitos fatores sociais contribuiu para o retardo do crescimento. Isso sugere que o crescimento na primeira infância é amplamente determinado pela qualidade da vida pré‐natal. A condição pré‐natal da criança, por sua vez, tem como base uma interação complexa de fatores biológicos e sociais, influenciada pelo estresse psicológico e fisiológico durante a gravidez, incluindo infecções e nutrição inadequada.4 Níveis elevados de estresse psicossocial não estão associados apenas ao baixo peso ao nascer, mas também a um número menor de consultas pré‐natais.5
Curiosamente, o estudo de da Rocha Neves et al.1 relatou que nenhuma das crianças era magra, ao passo que o sobrepeso ocorria em 4,4% das crianças. Atualmente, não apenas o retardo do crescimento está relacionado a condições sociais desfavorecidas, mas também o sobrepeso, associado ao baixo nível de escolaridade dos pais, grandes famílias e situação socioeconômica mais baixa.6 Além disso, evidências cada vez maiores sugerem que tanto o retardo do crescimento no início da vida quanto o sobrepeso na infância aumentam o risco de a criança apresentar doença cardiovascular na vida adulta.7
Quase 30% das crianças apresentaram uma disfunção cognitiva ou um distúrbio de linguagem – essas disfunções foram definidas conforme as pontuações ficaram um desvio padrão abaixo da média. Em contrapartida à atrofia do crescimento, o desenvolvimento cognitivo e de linguagem não estava associado a fatores de risco biológico, apenas ao risco social. O desenvolvimento cognitivo estava associado à pontuação da Home; o desenvolvimento da linguagem estava associado à pontuação da Home e à qualidade da vizinhança em termos de infraestrutura, interação e confiança. Os dados sugerem que o desenvolvimento cognitivo e da linguagem na infância em comunidades desfavorecidas depende fortemente de condições ambientais, implica que a melhoria dessas condições ambientais poderá promover o desenvolvimento da criança. De fato, a análise de Komro et al.8 indicou que as estratégias que visam à melhoria da coesão social e à melhoria do ambiente físico estão associadas a melhor desenvolvimento cognitivo e saúde infantil. Contudo, ainda não está claro se os programas específicos de intervenção precoce que visam a ensinar os pais como melhor estimular o desenvolvimento de seus filhos – programas efetivos em neonatos com risco biológico de disfunção cognitiva9 – também são efetivos na promoção do desenvolvimento cognitivo em crianças de famílias socialmente desfavorecidas.10
A falta de uma contribuição de fatores biológicos para o resultado de déficit cognitivo implica que os fatores biológicos não desempenham um papel no desenvolvimento de crianças em sociedades menos favorecidas? Presumivelmente, essa não é a conclusão correta. Da Rocha Neves et al. avaliaram apenas alguns fatores pré‐natais, perinatais e neonatais. Por exemplo, não havia dados disponíveis sobre o peso materno pré‐gestacional, doenças maternais, tabagismo materno durante a gravidez e asfixia perinatal. Esses fatores são conhecidos por exercer um efeito prejudicial sobre o resultado de desenvolvimento em longo prazo.11,12 Por exemplo, os neonatos nascidos a termo, expostos ao tabagismo materno antes do nascimento, apresentam em média uma redução de 10 pontos em seu quociente de inteligência (QI) em comparação com pares que não foram expostos ao tabagismo materno antes do nascimento.13 Em segundo lugar, o resultado de desenvolvimento focou no desenvolvimento cognitivo e da linguagem e o resultado do índice de desenvolvimento psicomotor do BSITD‐III não foi relatado. É concebível que o desenvolvimento motor em 2 a 3 anos dependa de fatores biológicos precoces, como o peso ao nascer e a idade gestacional. Experiências com animais14 e estudos de intervenção iniciais9 indicam que o desenvolvimento motor é mais dificilmente ligado no cérebro do que o desenvolvimento cognitivo, implica que o primeiro é mais fortemente determinado pela biologia do que o último. Em terceiro lugar, da Rocha Neves et al. avaliaram o resultado do desenvolvimento dos 2 aos 3 anos. Nessa idade, apenas parte das funções cognitivas se desenvolveu. Com o avanço da idade e com o aumento da complexidade do sistema nervoso, novas funções cognitivas se desenvolvem. É só depois do surgimento de uma função que o comprometimento dela pode ser diagnosticado. É por isso que a maioria dos déficits cognitivos e distúrbios cognitivos e comportamentais surge primeiro na idade escolar.15 É concebível que, com o avanço da idade, a contribuição de fatores biológicos e sociais precoces para o resultado cognitivo mude. Em idade precoce – conforme da Rocha Neves et al. relataram – a influência de fatores sociais pode dominar. Porém, isso supõe que, na idade escolar, o impacto dos fatores biológicos precoces aumenta, em linha com a hipótese das origens desenvolvimentistas da saúde e da doença.16,17 Cada vez mais evidências sugerem que as adversidades pré‐natais e perinatais poderão ter um efeito de longa duração sobre o desenvolvimento e a saúde.16,18
O estudo de da Rocha Neves et al. chama a atenção para a necessidade de melhorar o cuidado pré‐natal e da primeira infância a fim de facilitar a saúde e o desenvolvimento da criança. O primeiro passo a ser dado é melhorar o cuidado pré‐natal, pois o número adequado de consultas pré‐natais desempenha um papel fundamental. O baixo número de consultas pré‐natais não apenas está associado à atrofia do crescimento – conforme o estudo que da Rocha Neves demonstrou – como também é um fator de risco bem conhecido da mortalidade e morbidade neonatal.19 A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda pelo menos quatro consultas pré‐natais, uma durante o primeiro trimestre, a segunda entre a 24ª e 28ª semanas de gestação e a terceira e quarta na 32ª e 36ª semanas de gestação.19 Os fatores que impedem que as mulheres obtenham o número correto de consultas pré‐natais são pobreza, falta de informações, distância até o serviço de cuidado pré‐natal, serviços inadequados e práticas culturais.20 Isso significa que a biologia do início da vida é amplamente determinada por condições socioeconômicas. Não apenas o cuidado pré‐natal deve ser direcionado para melhorar o crescimento e o desenvolvimento infantil, como também as condições de criação pós‐natal exercem um forte impacto sobre o desenvolvimento infantil. Como o estudo de da Rocha Neves et al. demonstrou, o desenvolvimento cognitivo da criança depende amplamente do ambiente familiar, incluindo a qualidade dos cuidados, a responsividade dos pais e a presença de material de aprendizagem.
O resultado do estudo de da Rocha Neves et al. enfatiza a necessidade de acompanhamento de longo prazo de neonatos que crescem em ambientes economicamente desfavorecidos. Somente assim entenderemos o quanto a interação complexa de adversidades biológicas e sociais no início da vida afetará o crescimento, a saúde – incluindo doença cardiovascular e obesidade – e o resultado do desenvolvimento, incluindo déficits cognitivos e morbidade psiquiátrica. Somente assim saberemos o tipo de serviços sociais e de saúde durante a gravidez e durante a infância necessários para atingir a saúde e o desenvolvimento infantil ideais.
Conflitos de interesseA autora declara não haver conflitos de interesse.