De um lado, a sepse é a principal causa de óbito não relacionado a trauma em pacientes pediátricos em todo o mundo, em nações desenvolvidas e em desenvolvimento.1 Por outro lado, os dados epidemiológicos demonstram a contribuição independente da lesão renal aguda (LRA) para a morbidade e mortalidade em adultos e crianças.2,3 A mortalidade, a morbidade e o custo financeiro da LRA são significativos e levaram a iniciativas globais exclusivas para eliminar a LRA prevenível e minimizar os efeitos da LRA existente.4 Infelizmente, a sepse e a LRA, juntas, sinergizam o “pior dos dois mundos” – incitam uma ladainha de respostas negativas do hospedeiro e, em última instância, levam a resultados ruins do paciente. Nesta edição do Jornal de Pediatria, Riyuzo et al.5 relatam dados sobre os fatores preditivos de óbito em pacientes com LRA associada a sepse. Em sua avaliação retrospectiva de 77 crianças com sepse e LRA, a taxa de LRA grave (pRIFLE) estágio I‐F e/ou estágio 2‐3 ficou acima de 75% e a taxa de mortalidade geral foi substancial (33,7%).
Os determinantes da lesão e progressão na sepse e LRA são similares. A sepse é propagada pelos principais mediadores de isquemia, hipóxia, inflamação e morte celular. A fisiopatologia multidimensional da sepse exerce perturbações do nível celular até a homeostase geral do hospedeiro. Os dados de modelos animais e humanos corroboram a desregulação do sistema imunológico inato, o desequilíbrio da produção/degradação da citocina pró‐ e anti‐inflamatória, a desestabilização das vias apoptóticas e a interrupção da estabilidade endotelial. De modo paralelo, a LRA é tipificada por um conjunto de respostas do hospedeiro, incluindo isquemia, inflamação desregulada, hipóxia e lesão tubular renal.6 Além disso, a LRA resulta em efeitos prejudiciais autócrinos, parácrinos e endócrinos da citocina sobre estruturas vitais extrarrenais, como cérebro, coração, pulmões e fígado.7 Portanto, a sepse e a LRA, individualmente, são mais adequadamente caracterizadas como síndromes (em comparação com “doenças” ou “lesões”), pois levam à desestabilização da homeostase por uma variedade de mecanismos globais.
A lesão renal aguda associada a sepse grave (LRASG) é comum, dispendiosa e prejudicial. A sepse é a principal causa de LRA em adultos e crianças, representa 33‐50% de toda a LRA em adultos e 25‐50% em crianças.8 Como síndrome única, a LRASG contribui para a alta mortalidade, o maior uso de recursos (suporte ventilatório, diálise) e o aumento na morbidade de pacientes (aumento na duração da internação). Além disso, as sequelas de longo prazo da LRASG são significativas: uma notável proporção de pacientes sobreviventes (adultos e crianças) sofre doença renal crônica, doença renal em estágio final precoce e óbito precoce.9,10 Infelizmente, a fisiopatologia da LRASG é pouco entendida. De maneira semelhante à sepse e à LRA (consideradas de maneira independente), os determinantes da LRASG incluem alterações hemodinâmicas intrarrenais, disfunção endotelial, desregulação da homeostase inflamatória, necrose/apoptose e lesão isquêmica‐hipóxica.11 No nível do hospedeiro, a sepse e a LRA se propagam simultaneamente por meio de efeitos independentes sobre o tônus vascular sistêmico, o volume intersticial, a distribuição alterada de albumina sérica e a indução de produção de óxido nítrico. Provou‐se que separação dos efeitos independentes da LRA da sepse é difícil, pois ambas compartilham vias comuns que envolvem disfunção circulatória, desconexão de bioenergia e problemas nas vias nitrosativas e oxidativas.12 As limitações à capacidade de modelos animais reproduzirem uma doença humana e uma escassez de dados sobre o tecido humano descreditam as suposições de que a sepse diminui automaticamente o fluxo sanguíneo renal e leva à necrose tubular.13 Tanto em homens quanto em ratos, a lesão multidimensional é potencializada nos pacientes muito jovens e muito velhos e naqueles com doença crônica.3 Por esses motivos, a sepse e a LRA andam “lado a lado” – e provavelmente contribuem de maneira sinérgica para o rápido acometimento de pacientes que sofrem de ambas as síndromes das lesões. Riyuzo et al.5 descobriram, em seu estudo de crianças com LRASG, um paralelo clínico com esses achados fisiopatológicos. Em seu estudo, as crianças com LRASG eram jovens (mediana de quatro meses), diagnosticadas precocemente (primeiro dia de internação na unidade de terapia intensiva) e sofriam de lesão grave (> 75% da classe I‐F e estágio 2‐3da pRIFLE). Os fatores de risco independentes associados ao óbito incluíram características de pacientes gravemente doentes (ventilação mecânica, terapia de diálise e hipoalbuminemia). Em seu estudo, a LRA não foi associada de maneira independente à mortalidade, achado esperado no contexto de doença grave geral de pacientes incluídos no estudo. É importante ressaltar que nenhuma gravidade dos parâmetros da doença (Risco Pediátrico de Mortalidade, Índice Pediátrico de Mortalidade) foi incluída em seu estudo para comparar pacientes sobreviventes e falecidos. Contudo, existe uma associação óbvia entre lesão renal aguda em pacientes com sepse (estágio 2‐3 e/ou que precise de diálise) e óbito – corroborada pela redução significativa demonstrada nas estimativas de sobrevivência Kaplan‐Meier.
Considerando as contribuições sinérgicas da sepse e da LRA, como, então, podemos fazer a diferença para melhorar os resultados dos pacientes com LRASG? Uma abordagem multifacetada, oportuna, racional e sistemática é necessária (tabela 1). O primeiro passo é a identificação oportuna dos pacientes em rico por LRASG. É óbvio – tratar a sepse! O início precoce de antibióticos é associado à mortalidade reduzida – um achado que tem sido lentamente valorizado e incorporado ao cuidado de rotina de pacientes gravemente doentes.14 Estudos incidentais com a população identificaram supostos biomarcadores com a finalidade de identificar pacientes em risco de desenvolver LRA (e a progressão da LRA) no contexto da sepse.15 Estudos da associação genômica ampla (GWAS) têm o potencial para identificar pacientes com alto risco de LRASG.16 Enquanto isso, estudos atuais em animais identificam biomarcadores mais novos para LRASG, especificamente aqueles com potencial de terapia direcionada. O uso adequado de biomarcadores no contexto da LRASG é fundamental para a inclusão dessa próxima onda de medicamentos de precisão na prática de rotina. Para minimizar o uso inconstante de novos biomarcadores de diagnóstico e para aprimorar a probabilidade pós‐teste de previsão, a metodologia de angina renal de estratificação de risco foi obtida e validada em várias populações pediátricas. Essa metodologia, conforme citada por Riyuzo et al.,5 estratifica os pacientes por risco e é um sistema fácil para a previsão de LRA em algum momento após a internação na UTI (72 horas), leva ramificações significativas para o manejo do paciente.17–19 O segundo passo é a adjudicação antecipada da progressão da lesão. Os biomarcadores para a progressão da LRASG podem ser uma importante faceta do manejo, principalmente na fase precoce de estabilização dos pacientes.14 A atenção à acumulação de fluidos é essencial. O aumento de evidências tanto de adultos quanto de crianças corrobora o achado da contribuição deletéria independentemente de acumulação de fluidos em pacientes gravemente doentes.20 Para isso, a gestão de fluidos na população de pacientes com LRASG, inclusive pacientes de terapia de substituição renal, é importante para minimizar os efeitos de edema em tecidos de órgãos‐alvo.21 Deve ser feita uma importante descrição a respeito do “estágio” de hidratação de um determinado paciente; tratar todos os pacientes da mesma forma e com a mesma abordagem de hidratação, estabilização e manutenção não faz sentido.22,23 Em terceiro lugar, o cuidado de suporte consistente e sistemático é essencial. A terapia precoce orientada a objetivos da sepse se tornou comum em pacientes gravemente doentes, porém a noção de cuidado de suporte para LRA (avaliações regulares de creatinina, atenção à diurese e ao peso, limitações de nefrotoxinas, dosagem renal de medicamentos, evitação de contraste etc.) não é consistente no mundo. As evidências precoces da apresentação do cuidado da LRA acopladas ao manejo são promissoras.24 Por fim, a terapia direcionada está à vista. A atenuação da inflamação precoce com o uso de endocanabinoides e terapias celulares, direcionamento celular específico com o uso de agentes quelantes do ferro e mediadores de heme oxigenase estão em estágios avançados do estudo clínico.25 Terapias extracorpóreas, como o dispositivo seletivo de citaferese para atenuação da inflamação, podem ser a nova onda para pacientes mais gravemente doentes com LRASG.26
Fazendo a diferença no tratamento da LRASG
1. | Identificação de pacientes e detecção precoce de lesão |
A. Reconhecimento e tratamento da sepse (uso antecipado de antibióticos!) | |
B. Estudos de associação do genoma (antesda doença) | |
C. Teste de biomarcadores de acordo com o índice de angina renal | |
2. | Adjudicação da progressão da lesão |
A. Progressão de biomarcadores | |
B. Avaliação da “fase de fluidos” | |
3. | Cuidado de apoio e pacotes de LRA |
A. Avaliações regulares, diárias e horárias da função renal | |
B. Aprimoramento da terapia contra sepse/hemodinâmica | |
C. Pacotes de LRA | |
i. Redução ou eliminação de nefrotoxinas | |
ii. Ajuste de medicamentos para liberação renal | |
4. | Terapia da próxima geração/terapêutica direcionada |
A. Imunomodulação | |
B. Destinação a células específicas (quelação de ferro) | |
C. Dispositivos extracorpóreos | |
i. Dispositivo seletivo de citaferese |
A lesão renal aguda associada a sepse grave é uma combinação de síndromes independentes e sinérgicas com efeitos negativos consideráveis sobre o resultado nos pacientes. Nesta edição do Jornal de Pediatria, Riyuzo et al.5 relataram a relevância do problema da LRASG, principalmente em crianças. A fisiopatologia intercalada torna essencial a identificação adequada e a redução de riscos para esses pacientes. Cuidar desses pacientes exige um entendimento da importância da abordagem oportuna, coerente e multidimensional do manejo.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.