O estudo de Juliana Nobre et al. nesta edição apresenta um novo instrumento para avaliar o uso de mídia interativa por crianças menores de quatro anos.1 O desenvolvimento desse instrumento é oportuno. A sociedade está sendo confrontada com um aumento explosivo no uso de mídia interativa. Dados recentes dos Estados Unidos da América ilustram as mudanças no uso da mídia.2 Em 2011, 41% dos americanos até oito anos tinham um smartphone em casa, enquanto em 2017 esse número havia aumentado para 95%. Apesar do aumento nos dispositivos móveis, o tempo de tela geral das crianças não aumentou. As crianças continuaram a usar mídia de tela em média bem mais de duas horas por dia. No entanto, o tempo relativo gasto com dispositivos móveis aumentou de 4% para 35% do tempo total da tela. Além disso, a maioria das crianças mais novas atualmente usa dispositivos móveis: em 2013‐2014, 30% a 44% das crianças menores de um ano e 77% a 90% das crianças de dois anos (estudos feitos nos EUA3 e na França4) usavam dispositivos móveis. Diferentemente do teclado e do mouse do computador, que exigem considerável coordenação motora fina, as telas sensíveis ao toque dos dispositivos móveis são compatíveis com as habilidades motoras das crianças pequenas. Por volta de um ano, a maioria das crianças consegue bater de leve, tocar, deslizar e pressionar a tela.5 Devido à onipresença dos dispositivos móveis acessíveis, a mídia interativa é atualmente parte integrante da vida cotidiana das crianças pequenas. No entanto, o efeito dessas mídias na saúde e no desenvolvimento da criança não é bem compreendido.
A grande maioria dos estudos sobre uso de mídia de tela em crianças abordou formas passivas de uso dessa mídia, como assistir a programas de televisão, vídeos pré‐gravados e DVDs. Esses estudos relataram que o aumento do tempo de tela está associado a um maior risco de obesidade.6 Esse aumento do risco tem sido atribuído especialmente ao efeito de consumir petiscos enquanto assiste à TV e à exposição à publicidade de alimentos e petiscos com alto teor calórico.7,8 O aumento do tempo de tela também tem sido associado a um efeito negativo no sono, provavelmente causado pelo conteúdo estimulante da tela e sua luz azul, suprime a melatonina e com isso afeta o ritmo circadiano.8 Muitos estudos mostraram associações entre o tempo excessivo gasto em frente à televisão durante a infância e atraso cognitivo, de linguagem e socioemocional. No entanto, é importante perceber que as associações não implicam automaticamente em causação, já que está bem estabelecido o fato de que as famílias que são mais deficientes em termos funcionais, por exemplo, famílias com baixa renda familiar ou pai/mãe sem parceiro(a), são propensas ao alto uso da mídia.8 O estudo longitudinal de Madigan et al.9 indicou que maior tempo de tela quando a criança tem dois a três anos estava associado a piores escores de desenvolvimento aos cinco anos. O estudo sugeriu que o tempo de tela funcionava como um fator inicial. Entretanto, permanecia a questão se o aumento do tempo de tela havia induzido um pior desenvolvimento ou se as crianças com desenvolvimento menos aprimorado haviam sido expostas a mais tempo na tela. O último mecanismo é conhecido por desempenhar um papel na associação entre tempo de tela e problemas comportamentais. Radesky et al.10 mostraram que crianças com autorregulação deficiente durante a infância tinham maior probabilidade de consumir mídia aos dois anos do que crianças com autorregulação típica. O estudo sugeriu que parte da associação poderia ser atribuída à estratégia do cuidador para lidar com a autorregulação deficiente do lactente ao colocar o bebê em frente à mídia. No entanto, um estudo recente sugeriu que níveis moderadamente altos de tempo de tela não estão associados a problemas comportamentais em crianças ou jovens.11
Os estudos disponíveis sobre o efeito do uso da mídia interativa em bebês e crianças em idade pré‐escolar sobre o desenvolvimento infantil focaram na aprendizagem da linguagem. Alguns desses estudos usaram vídeos com e sem interação em vez de mídia interativa. Os estudos indicaram que bebês de 15 meses não conseguem aprender novas palavras ao assistir a vídeos, mesmo quando a pessoa no vídeo conversa com o bebê que assiste, e até quando o pai ou a mãe naturalmente interage com a criança durante a exibição dos vídeos.12,13 Em contraste, crianças de 15 meses podem aprender novas palavras quando os pais ensinam as palavras normalmente durante as atividades diárias.13 Crianças de pelo menos 19 meses são capazes de aprender novas palavras simplesmente ao assistir a vídeos, mas somente quando a pessoa no vídeo conversa com a criança que observa e ouve.13 Crianças não aprendem novas palavras quando o ator no vídeo se dirige a outra criança.14 No entanto, o aprendizado de novas palavras em crianças pequenas é mais eficiente quando o vídeo exige que elas toquem a tela de um modo casual do que quando assistem a um vídeo não interativo.15 Além disso, o estudo de Russo‐Johnson et al.16 sugeriu que o aprendizado de palavras melhorou mais quando os bebês tinham que arrastar o objeto identificado com a nova palavra do que quando tinham que tocar na tela ou simplesmente observavam as ações executadas na tela – um efeito especialmente observado em meninas e crianças de famílias de classes baixas. Quatro dos cinco estudos descritos que avaliaram a capacidade da criança de aprender novas palavras12–14,16 avaliaram o sucesso da criança por meio da apresentação do objeto recém‐identificado (a nova palavra) em uma tela. Isso significa que as avaliações não mediam se a criança conseguia transferir o conhecimento obtido durante o aprendizado de tela para o mundo real. Deve‐se notar, no entanto, que as crianças pequenas são prejudicadas pelo assim chamado déficit de transferência.17 Isso significa que as crianças têm mais dificuldade de reconhecer palavras demonstradas a elas em um livro ilustrado, na televisão ou em telas do tipo touchscreen (na ausência de um cuidador interagente) do que palavras apresentadas durante interações face a face. Em lactentes, o déficit de transferência pode muito provavelmente ser atribuído a dificuldades de percepção (por exemplo, imagens em 3D em uma tela 2D) ou a um desajuste contextual (por exemplo, incapacidade de distinguir entre o enquadramento e o conteúdo da tela). A partir dos dois anos, o déficit de transferência pode ser atribuído à falta de compreensão simbólica – é necessário tempo de desenvolvimento antes que as crianças entendam que um símbolo não é apenas um objeto em si, mas também uma representação de outra coisa.17
Os estudos sobre aprendizagem da linguagem baseada em tela mostram que as crianças aprendem mais com a mídia nas duas condições a seguir: (1) quando os cuidadores participam das atividades e estão ativamente engajados nelas; (2) quando envolve interações casuais específicas.5 Isso significa que a aprendizagem é mais eficaz quando imita a situação da vida real de interação com um adulto atencioso. Patricia Kuhl sugeriu que a eficácia dessa condição de aprendizagem não é mediada apenas por sua capacidade de aumentar a atenção e a estimulação da criança, mas também pelo fornecimento de informações multifacetadas, pois as palavras pronunciadas são acompanhadas de sinais sociais, como olhar fixamente e gestos de apontar.18
Os estudos acima descritos indicam que o efeito do uso da mídia interativa no desenvolvimento infantil depende em grande parte do contexto social de seu uso e do tipo de atividade. A novidade do questionário de Nobre et al.1 é que ele presta atenção explícita a esses dois últimos aspectos do uso da mídia interativa. O questionário resulta em um índice multicritério, em que maiores escores refletem, por exemplo, a ausência de tempo excessivo na tela, o uso de um tablet (em vez de um smartphone), a feitura de atividades que exigem ações manuais ou que são consistentes com aplicativos educacionais e presença e monitoramento do cuidador. Os autores demonstraram que um escore maior no índice multicritério – que reflete uma maior qualidade do uso da mídia interativa – em crianças brasileiras de 23 a 42 meses foi associado a escores maiores nas escalas de linguagem, cognitiva e motora fina das escalas Bayley Scales of Infant and Toddler Development.1 A associação positiva entre o uso de mídia interativa de boa qualidade e o desenvolvimento da linguagem corresponde à literatura descrita acima. A associação positiva entre o uso de mídia interativa de boa qualidade e o desenvolvimento motor fino está de acordo com os achados de um estudo recente que relata que o uso de tablets na idade pré‐escolar foi associado a melhores habilidades motoras finas.19 A associação entre uso de mídia interativa de boa qualidade e melhor desenvolvimento cognitivo é algo novo. As descobertas de Nobre et al. sugerem que o índice multicritério oferece novas oportunidades para avaliar os efeitos do uso da mídia interativa no desenvolvimento infantil em idade precoce. No entanto, sugiro que os autores melhorem a sensibilidade do índice adicionando dois itens: um sobre o modo como os cuidadores interagem com a criança durante a atividade conjunta na mídia e outro sobre os tipos predominantes de ações manuais da criança durante o uso da mídia interativa. A aplicação do índice multicritério abrirá o caminho para uma melhor compreensão dos efeitos do uso da mídia interativa. Esse conhecimento é necessário para orientação e aconselhamento adequados dos cuidadores sobre o uso de mídia interativa na infância e idade pré‐escolar. Teoricamente, a mídia interativa, quando usada adequadamente, ou seja, com orientação e interação dos pais, e não mais do que duas horas por dia e não pouco antes da hora de dormir, pode ser uma das ferramentas para promover o desenvolvimento de crianças pequenas. Lembre‐se de que atividades autodidatas exploradoras são impulsionadoras fundamentais do desenvolvimento!20
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
Agradeço com gratidão os comentários críticos e construtivos de Ying‐Chin Wu, PT, PhD e Jaqueline da Silva Frônio, PT, PhD, em um rascunho anterior do manuscrito.