O vírus varicela‐zoster (VZV) é um herpes vírus humano onipresente, disseminado por todo o mundo e causa duas doenças. Essas doenças são infecção primária por varicela e o herpes zoster, uma erupção cutânea vesicular dermatomal que resulta da reativação do vírus latente.
A infecção por varicela é geralmente uma doença autolimitada leve, caracterizada por uma erupção vesicular generalizada com febre e mal‐estar. As complicações afetam cerca de 2 a 4% dos casos e, nos países desenvolvidos, as taxas de hospitalização são de aproximadamente 2 a 3 por 1.000 casos em crianças saudáveis e 8 por 1.000 casos em adultos, resultam em cerca de 2 a 3 mortes por 100.000 casos.1,2 As complicações são mais comuns nos extremos de idade, em pessoas com deficiências imunológicas e gestantes, mas também podem ocorrer em pessoas anteriormente saudáveis.2
Antes da introdução da vacina, a varicela era endêmica no mundo, com uma incidência anual aproximadamente correspondente à coorte de nascimentos de cada país. A introdução da vacina contra varicela mudou significativamente sua epidemiologia. A vacina foi produzida primeiramente no Japão na década de 1970, mas foi introduzida na maioria dos países ocidentais, inclusive Alemanha, Suécia, Coreia, EUA e Itália no fim das décadas de 1980 e 1990.3 Uma vacina combinada viva atenuada contra o sarampo, caxumba, rubéola e varicela (MMRV) também foi desenvolvida e licenciada com base na imunogenicidade não inferior dos componentes antigênicos, em comparação com a administração simultânea das vacinas MMR e da varicela.4,5 A MMRV tem sido usada para permitir uma integração mais simplificada com os esquemas de vacinação infantil existentes, a fim de aumentar a cobertura vacinal. Vários ensaios de eficácia documentaram que a vacina era segura e oferecia um alto grau de proteção contra a varicela e, por essa razão, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que os países nos quais a varicela tem uma carga da doença importante devem considerar a introdução da vacina contra a varicela no esquema de imunização infantil de rotina, com a primeira dose administrada aos 12–18 meses.6 Uma avaliação pós‐licenciamento recentemente publicada sobre a eficácia da vacina (EV) analisou 42 artigos publicados entre 1995 e 2014 e constatou que, para uma dose, a EV era de 81% (IC 95%: 78%‐84%) contra todas as infecções por varicela, 98% (IC95%: 97%‐99%) contra varicela moderada/grave e 100% para prevenção da doença grave.7 A EV combinada em duas doses contra todas as infecções por varicelas foi de 92% (IC95%: 88% –95%), sem diferenças significativas entre EV e tipo de vacina ou desenho do estudo. No entanto, é reconhecida a necessidade de mais estudos que avaliem e monitorem a introdução da vacinação contra varicela em diferentes áreas do mundo, de acordo com os diferentes cenários epidemiológicos.
De acordo com essa incumbência, o estudo feito por Ribeiro et al. e publicado nesta edição do Jornal de Pediatria enriquece a literatura internacional atual, compara a frequência de hospitalizações e óbitos por varicela antes (2010‐2012) e depois (2014‐2016) da introdução da vacinação no Brasil, o país mais populoso da América do Sul e o quinto mais populoso do mundo, com mais de 200 milhões de pessoas.8 Em particular, os autores pretendem avaliar a eficácia da introdução da vacina MMRV, que ocorreu em setembro de 2013 para crianças aos 15 meses.
Estudos como esse têm um papel essencial no aumento das práticas de saúde pública baseadas em evidências e na avaliação de achados epidemiológicos que podem ser de interesse para fazer ajustes, se necessário, nos programas de vacinação do ponto de vista nacional. Os resultados do estudo confirmam que, no Brasil, a varicela representava uma alta carga da doença que, na era pré‐vacinal (2010‐2012), resultava em taxas de hospitalização de 39,6/100.000 em lactentes com <1 ano e 19,6/100.000 em crianças de 1 a 4 anos e taxas de mortalidade de 1,36/100.000 em lactentes <1 ano e 0,68/100.000 em crianças de 1‐4 anos, respectivamente. Após a introdução da vacina MMRV, foram observadas reduções significativas nas taxas de hospitalização (‐40% em bebês <1 ano e ‐47% em crianças de 1 a 4 anos) e taxas de mortalidade (‐57% em crianças <1 ano e ‐49% em crianças de 1 a 4 anos). Esses resultados são, é claro, fortemente encorajadores, pois confirmam que a vacinação contra varicela está associada a uma redução imediata da carga da doença, evidente logo após alguns anos após a introdução da vacina. A redução das taxas de hospitalização e mortalidade também deve ser considerada à luz da carga econômica e social sustentada por todos os casos de varicela, dos quais eles representam apenas a “ponta do iceberg”.
Entretanto, à primeira vista, os achados de Ribeiro et al. poderiam sugerir eficácia vacinal relativamente moderada e, portanto, por essa razão, eles precisam ser adequadamente contextualizados. Em uma análise recente, nosso grupo de pesquisa descobriu que na Itália, de 2003 a 2018, a eficácia da vacinação contra varicela na redução do risco de hospitalização pode ter um impacto maior, de até ‐80,0% na faixa etária <1 ano e ‐86,7% em crianças entre 1 a 5 anos (artigo submetido).9,10 Da mesma forma, foram encontradas percentagens decrescentes de taxa de hospitalizações em outros países, como Alemanha (‐77,6% em crianças <5 anos) ou Espanha (‐83,5% em crianças <5 anos), Austrália (‐76,8% em crianças de 1 a 4 anos), Canadá (‐93,0% em crianças de 1 a 4 anos) e Uruguai (‐94% em crianças de 1 a 4 anos).11–15
Para melhorar a interpretação desses dados, deve‐se considerar que entre os diferentes fatores que podem influenciar a eficácia da vacinação, um papel principal é desempenhado pela cobertura vacinal e pelo número de anos desde a introdução da vacinação.16 Quanto maior a contribuição desses dois fatores, maiores são os efeitos positivos na saúde das populações em geral. Essa suposição é confirmada ainda mais, considerando‐se que no estudo de Ribeiro et al. o impacto da vacinação foi heterogêneo nas macrorregiões do país, foi maior nas regiões com maior cobertura vacinal, como na região sul (CV> 85%). Por outro lado, como relatado pelos autores, o curto período pós‐vacinação estudado pode ter subestimado o efeito indireto proporcionado pela vacinação. De acordo com essas considerações, na Sicília, descobrimos que o aumento das taxas de cobertura vacinal contra varicela (de 40% na coorte de nascimentos de 2001 para 85% na coorte de nascimentos de 2010) estava significativamente correlacionado com uma redução progressiva das notificações de varicela e nas taxas de hospitalização.17
Vale ressaltar que Ribeiro et al. encontraram uma redução significativa nas taxas de hospitalização e mortalidade entre crianças com 1 ano e com 5 a 14 anos, o que, em nossa opinião, devem ser consideradas como uma provável consequência da proteção do rebanho. É provável que, com o tempo, a força da eficácia da vacina aumente entre crianças de 5 a 14 anos, uma vez que uma porcentagem crescente dessas crianças pertencerá a coortes de nascimentos vacinadas anteriormente.
Há um terceiro fator importante que deve ser levado em consideração ao avaliar os estudos de eficácia da vacina, que é a validade dos dados coletados. O subdiagnóstico e a subnotificação ainda são bastante frequentes em todos os países e, principalmente, nas regiões onde o acesso aos serviços de saúde ainda pode ser precário, conforme declarado pelos autores em algumas áreas do Brasil. Além disso, o acompanhamento epidemiológico da cobertura vacinal brasileira é essencial para garantir o alcance e a manutenção da cobertura vacinal ≥ 80%, que é o limiar crítico necessário para manter a imunidade do rebanho e reduzir o risco de transferência da infecção por varicela para idades mais avançadas, com aumento da morbidade e mortalidade, apesar da redução no número total de casos. Mais estudos que investiguem os motivos da baixa cobertura vacinal observados em diferentes regiões brasileiras podem ser necessários para avaliar possíveis papéis desempenhados por movimentos antivacina ou dificuldades na oferta de vacinação pelo sistema nacional de saúde.
Além disso, conforme recomendado pela OMS, avaliar a média de idade da aquisição de infecções por varicela poderia sugerir a necessidade de considerar estratégias opcionais de vacinação, como a vacinação (ou vacinação de recuperação, catch‐up) de adolescentes e adultos sem evidência de imunidade contra a varicela.6
Embora o estudo de Ribeiro et al. possa ter algumas limitações, principalmente relacionadas à abordagem ecológica retrospectiva, os achados relatados confirmam fortemente que a varicela teve uma carga da doença significativa no Brasil em termos de hospitalização e mortalidade antes da introdução da vacinação universal contra varicela em massa. Além disso, há evidências da eficácia da vacina na redução significativa dessa carga nos anos imediatamente após a introdução da vacina. Nos próximos anos, esses dados precisarão ser confirmados e monitorados para evitar possíveis “efeitos perversos” devido à baixa cobertura vacinal, com aumento no número de casos com idade mais avançada e desfecho grave.
Conflitos de interesseFV e EA receberam apoio financeiro da GSK, Sanofi Pasteur MSD, Novartis, Crucell/Janssen e Pfizer por participar de conselhos consultivos e congressos/conferências e por atuar como pesquisadores em estudos epidemiológicos financiados ad hoc.