Os eventos cardiovasculares são as causas mais comuns de mortalidade em adultos. A hipertensão um dos mais importantes fatores de risco tratáveis em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Globalmente, 7,6 milhões (13%) de mortes prematuras, 54% de todos os acidentes vasculares cerebrais e 47% de todos os casos de cardiopatias isquêmicas podem ser atribuídos à hipertensão arterial sistêmica (HAS) em adultos.1 A prevalência global da HAS em adultos tem aumentado e estima‐se que atingirá 29% em 2025.2 A prevalência de HAS em populações pediátricas é muito menor, porém está associada a lesões em órgãos‐alvos. Em 1987, somente cerca de 1% das crianças e adolescentes era hipertenso.3 No entanto, nas últimas décadas, houve um aumento evidente na prevalência de HAS de até 4%, principalmente nos EUA,4 mas também no Canadá, na Europa, Ásia e América Latina.5,6 Portanto, a detecção da pressão arterial (PA) elevada é de grande importância clínica para a população pediátrica e para a saúde pública, é o principal procedimento diagnóstico na determinação da HAS. O objetivo real da medida da PA em crianças e adolescentes é fornecer estratégias para promover a saúde cardiovascular. Mesmo que o método auscultatório tenha sido sempre o principal pilar da medida clínica da PA, o uso clínico de outras técnicas de medida da PA, especialmente os métodos oscilométricos, cresce continuamente. A medida da PA em crianças e adolescentes é importante. Porém, algumas questões devem ser resolvidas. Por exemplo, o método de medida e disponibilidade de valores de referência para PA em crianças, já que a HAS na faixa etária pediátrica é definida com percentis. Na última década, estabeleceram‐se valores de referência de PA específicos para cada país devido às diferenças populacionais, tanto na medida auscultatória7 como na oscilométrica.8,9 Além disso, como o sobrepeso/obesidade tem um grande impacto no nível da PA, algumas diretrizes incluíram somente crianças com peso normal, ou seja, sem sobrepeso/obesidade.8–10
Nesta edição do Jornal de Pediatria, Jardim et al.11 publicaram em seu estudo os valores de referência da PA obtidos pelo método oscilométrico em consultório em adolescentes brasileiros saudáveis, como parte do Estudo dos Riscos Cardiovasculares em Adolescentes (Erica).
Em primeiro lugar, os dados normativos da PA basearam‐se em um tamanho de amostra muito grande, com mais de 70.000 adolescentes brasileiros (entre 12 e 17 anos), o que melhora seu valor preditivo e corresponde bem à heterogeneidade étnica brasileira. Este é o maior estudo já elaborado para a construção de referencial percentil de PA em adolescentes brasileiros e o primeiro estudo que relata a medida de PA obtida em consultório na população de adolescentes brasileiros saudáveis, permite o uso de normas brasileiras e não americanas ou europeias (American Academy of Pediatrics ‐ Clinical Practice Guidelines 2017, European Society of Hypertension Guidelines 201612,13). Encorajamos os pediatras brasileiros a usarem os valores de referência brasileiros para medida de PA no consultório, como os autores sugerem no estudo de Jardim et al., porque eles diminuem a influência da etnia no nível da PA, são mais fidedignos do que os valores de referência não brasileiros.11 Por exemplo, quando comparados com os dados normativos oscilométricos alemães8 ou poloneses,9 os adolescentes brasileiros apresentam valores até 6mmHg menores no percentil 95 de pressão arterial sistólica. Além disso, o percentil 95da PA diastólica também foi menor do que no estudo alemão, mas maior do que no estudo polonês. Portanto, existem diferenças étnicas na PA medida em consultório que precisam ser levadas em consideração quando interpretadas nas diferentes nacionalidades.
Uma questão permanece em aberto para os pediatras brasileiros: se eles devem adotar nos adolescentes com idade >12 anos a nova diretriz pediátrica dos EUA para definir hipertensão, semelhante à nova diretriz para adultos dos EUA (isto é, HAS seria quando a PA ≥ 130/80mmHg independentemente da idade, sexo ou altura12,14) em vez das tradicionais diretrizes europeias para adultos, que classificam HAS quando a PA ≥140 / 90mmHg.15
Outra questão ainda sem resposta é se o limite de idade para a adoção dos critérios para adultos deve ser de 13 (diretriz americana),12 16 (diretriz europeia)13 ou 18 anos (atual diretriz brasileira).16
Neste estudo, os autores relatam que 38% eram de etnia branca e 49% parda. Seria interessante saber se existem diferenças na PA entre adolescentes de cor branca e parda, pois isso reforçaria ainda mais a importância dos valores de referência nacionais e étnicos.
O presente estudo também relatou percentis menores de PA sistólica e diastólica em método oscilatório (com exceção da PA sistólica em adolescentes do sexo masculino) em comparação com os percentis de PA obtidos com dispositivos auscultatórios.17 Esse fato enfatiza ainda mais que os valores de PA oscilométricos não devem ser interpretados com os valores de referência do método auscultatório.12,13 Os valores de PA obtidos com os dispositivos oscilométricos são geralmente superiores àqueles obtidos com a técnica auscultatória.13 A fonte dessa discrepância pode ser o algoritmo usado no dispositivo oscilométrico ou erro do observador durante a medição convencional com esfigmomanômetro. No entanto, outros fatores relevantes podem contribuir para as diferenças observadas nos conjuntos de dados normativos oscilométricos, tais como dados demográficos (etnia, peso, exclusão de indivíduos com excesso de peso, definição de sobrepeso etc.), uso de diferentes leituras de PA (primeira ou segunda, ou média da primeira e segunda, ou média da segunda e terceira etc.) e tipo de dispositivo oscilométrico.18
Outra vantagem deste estudo é que ele excluiu – similar ao estudo americano – todos os adolescentes com sobrepeso e obesidade. A PA dessas crianças pode potencialmente aumentar os valores de referência devido aos valores mais altos de PA em crianças com sobrepeso/obesidade. O uso de valores de referência apenas de crianças sem sobrepeso/obesidade permite diagnosticar mais frequentemente crianças com hipertensão induzida por sobrepeso/obesidade. Esse fato permite iniciar precocemente o tratamento da HAS em crianças com sobrepeso/obesidade, o que pode melhorar o prognóstico dos adolescentes. Seria interessante comparar a PA nas crianças saudáveis com aquelas com sobrepeso /obesidade – quão maior foi a PA em crianças com sobrepeso/obesas (excluídas)?
Os autores brasileiros usaram uma metodologia padronizada rigorosa de medidas da PA com o dispositivo Omron (Omron Corporation®, Kyoto, Japão) auscultatório muito comum. Eles mediram a PA como recomendado pelas diretrizes americanas e europeias – três vezes com um intervalo de três minutos entre cada medida (seis minutos no total), omitiram a primeira medida da PA (geralmente a mais alta) e usaram a média da segunda e terceira leituras da PA (feitas depois do descanso recomendado de três a cinco minutos). Essa metodologia padronizada rigorosa poderia resultar em valores mais baixos em comparação com os estudos de PA, nos quais ela foi medida apenas uma vez, ou onde foi medida três vezes, mas as primeiras leituras da PA não foram omitidas.
Este estudo também deve encorajar os pediatras brasileiros a medirem a PA em todas as consultas de rotina pediátricas desde três anos, conforme recomendado na diretriz16, para permitir o diagnóstico e tratamento precoce da hipertensão, o que pode diminuir o risco cardiovascular em crianças hipertensas.
Um achado interessante deste estudo é também o não aumento da PA diastólica relacionado à idade, ao contrário do aumento da PA sistólica com o aumento da idade dos adolescentes. Isso é semelhante aos dados normativos de monitoração ambulatorial da pressão arterial (MAPA) publicados por Soergel et al.,19 nos quais a PA diastólica não aumentou com a idade, ao contrário da PA sistólica. Isso poderia significar que esse fenômeno é causado pelo método (dispositivo oscilométrico), e não pelo tipo de medida da PA (monitoração da pressão arterial no consultório ou de 24 horas).
A alta prevalência de outros fatores de risco cardiovasculares não relacionados à PA em adolescentes brasileiros também constitui uma questão preocupante – cerca de 25% deles apresentavam sobrepeso ou obesidade, 22% eram consumidores de álcool e 55% eram fisicamente inativos. Esse último é bastante surpreendente e decepcionante, em um país que já foi cinco vezes campeão mundial de futebol. Os cuidados pediátricos preventivos devem visar não apenas à HAS, mas todos os fatores de risco cardiovascular para melhorar a saúde em longo prazo de toda a população pediátrica. Supomos que esse seja também o objetivo do estudo Erica.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.