Compartilhar
Informação da revista
Vol. 90. Núm. 4.
Páginas 420-425 (Julho - Agosto 2014)
Compartilhar
Compartilhar
Baixar PDF
Mais opções do artigo
Visitas
3602
Vol. 90. Núm. 4.
Páginas 420-425 (Julho - Agosto 2014)
Artigo Original
Open Access
Association between morphometric variables and nocturnal desaturation in sickle‐cell anemia
Associação entre variáveis morfométricas e dessaturação noturna na anemia falciforme
Visitas
3602
Cristina Salles
Autor para correspondência
dra.cristinasalles@gmail.com

Autor para correspondência.
, Marcelo Bispo, Regina Terse Trindade‐Ramos
Faculdade de Medicina, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA, Brasil
Este item recebeu

Under a Creative Commons license
Informação do artigo
Resume
Texto Completo
Bibliografia
Baixar PDF
Estatísticas
Tabelas (4)
Tabela 1. Comparação dos dados clínicos de crianças e adolescentes com anemia falciforme apneicos e não‐apneicos
Tabela 2. Comparação dos dados polissonográficos segundo as variáveis quantitativas de crianças e adolescentes com anemia falciforme apneicos e não‐apneicos
Tabela 3. Comparação das variáveis morfométricas entre crianças com e sem dessaturação
Tabela 4. Correlação entre variáveis morfométricas e dessaturação noturna em crianças e adolescentes com anemia falciforme
Mostrar maisMostrar menos
Abstract
Objective

to evaluate associations between morphometric variables, cervical circumference (CC), and abdominal circumference (AC) with the presence of nocturnal desaturation in children and adolescents with sickle‐cell anemia.

Methods

all patients were submitted to baseline polysomnography, oral cavity measurements (maxillary intermolar distance, mandibular intermolar distance, and overjet), and CC and AC measurements.

Results

a total of 85 patients were evaluated. A positive correlation was observed between the height/age Z‐score and CC measurement (r = 0.233, p = 0.031). The presence of nocturnal desaturation was associated with CC (59.2 ± 9.3 vs. 67.5 ± 10.7, p = 0.006) and AC measurements (27.0 ± 2.0 vs. 29.0 ± 2.1, p = 0.028). There was a negative correlation between desaturation and maxillary intermolar distance (r = −0.365, p = 0.001) and mandibular intermolar distance (r = −0.233, p = 0.037).

Conclusions

the morphometric variables of CC and AC may contribute to raise suspicion of nocturnal desaturation in children and adolescents with sickle‐cell anemia.

Keywords:
Sickle‐cell anemia
Desaturation
Maxilla
Mandible
Sleep apnea
Resumo
Objetivo

avaliar associações entre variáveis morfométricas e circunferências cervical (CC) e abdominal (CA) com a presença de dessaturação noturna em crianças e adolescentes com anemia falciforme.

Métodos

todos os pacientes foram submetidos à polissonografia basal, medidas da cavidade oral (distância intermolar da maxila, distância intermolar da mandíbula e overje), CC e CA.

Resultados

foram avaliados 85 pacientes. Foi observada correlação positiva entre o escore Z altura/idade e a medida da circunferência cervical (r = 0,233 p = 0,031). A presença da dessaturação noturna associou‐se com as medidas da circunferência cervical (59,2 ± 9,3 vs 67,5 ± 10,7; p = 0,006) e abdominal (27,0 ± 2,0 vs 29,0 ± 2,1; p = 0,028). Houve correlação negativa entre a dessaturação e a distância entre os segundos molares da maxila (r =−0,365, p = 0,001) e da mandíbula (r = −0,233, p = 0,037).

Conclusões

as variáveis morfométricas e circunferências cervical e abdominal podem contribuir para a suspeita da dessaturação noturna em crianças e adolescentes com anemia falciforme.

Palavras‐chave:
Anemia falciforme
Dessaturação
Maxila
Mandíbula
Apneia do sono
Texto Completo
Introdução

O principal aspecto da fisiopatologia da anemia falciforme (AF) é a crise vaso‐oclusiva, também chamada de crise álgica ou crise dolorosa, resultante da polimerização da hemoglobina S, que leva as hemácias a assumirem o formato de foice, com resultante obstrução de vasos sanguíneos de pequeno calibre, hipóxia tecidual, necrose e intensa dor.1

Dentre as consequências desse afoiçamento das hemácias podem ser relacionados as crises vaso‐oclusivas dolorosas, o vascular cerebral2 e a anemia hemolítica crônica.3 As complicações pulmonares são responsáveis por 20‐30% das mortes em adultos com AF, seguidas das lesões pulmonares provocadas por obstrução das vias aéreas superiores (VAS).4 Quanto às crianças com AF, um importante fator causal da obstrução das VAS é a hipertrofia adenotonsilar (HAT). Salles et al.5 observaram uma prevalência de 55,3% da HAT obstrutiva em crianças e adolescentes com AF. Quando essa obstrução das VAS é associada à síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS), é capaz de precipitar episódios de hipoxemia,6 aumentando o risco de crises vaso‐oclusivas.7

A dessaturação arterial noturna da oxihemoglobina na AF ocorre em até 83% das crianças com doença falciforme e pode ser resultado da SAOS, da doença pulmonar ou secundária à diminuição da afinidade da hemoglobina S pelo oxigênio.8 A dessaturação da oxihemoglobina é comum durante o sono, a qual está associada à hipoventilação, e exacerbada pela obstrução das VAS,6 sendo que nos pacientes com AF pode existir risco aumentado para a obstrução das vias aéreas devido à HAT.9

Fatores que se somam na obstrução das VAS: HAT e as consequências craniofaciais promovidas pela própria HAT obstrutiva, como respiração predominantemente bucal; alterações maxilares verticais, horizontais e transversais; selamento labial incompetente; e desequilíbrio da musculatura orofacial, principalmente dos músculos elevadores e abaixadores da mandíbula.10,11

Assim, o presente estudo tem por objetivo avaliar associações entre variáveis morfométricas e circunferências cervical e abdominal com a presença de dessaturação noturna em crianças e adolescentes com AF.

Materiais e métodos

Trata‐se de um estudo do tipo coorte contemporânea, em corte transversal e de alocação sequencial, de 85 pacientes com AF inscritos em um centro de referência de hematologia e hemoterapia, entre maio de 2007 e maio de 2008. Foram adotados os seguintes critérios de inclusão: ter diagnóstico confirmado de AF através da análise quantitativa de hemoglobina por eletroforese de hemoglobina ou cromatografia líquida de alta pressão (HPLC), realizada no equipamento Variant II (Bio‐Rad Laboratories, Bossier City, LA, EUA); ter idade entre dois e 19 anos; estar clinicamente estável; responder ao questionário; permitir avaliação pediátrica e otorrinolaringológica; e realizar a polissonografia noturna. Foram adotados os seguintes critérios de exclusão: apresentar outras síndromes genéticas, doenças debilitantes, hepatite aguda, tratamento prévio para SAOS ou trauma craniofacial recente; usar hipnóticos; ter realizado terapia com corticoides; ser gestante; e apresentar infecção durante a avaliação.

Para o cálculo do tamanho amostral, foi utilizado programa PEPI‐Sample (Sagebush Press, Salt Lake City, UT, EUA) e foram adotados os seguintes parâmetros: nível de confiança de 95% e prevalência da SAOS em crianças/adolescentes de 5% (4,9% como diferença aceitável da prevalência).

A amostra foi retirada a partir de uma população de aproximadamente 1.000 crianças e adolescentes com AF, cadastrados em uma unidade de referência em hematologia e hemoterapia. Dessa forma, para responder aos objetivos, o tamanho amostral calculado foi de 71 pacientes. Considerando a possibilidade de 10% de perdas, o “n” foi totalizado em 78 pacientes.

A idade foi medida em anos completos, de acordo com a data de nascimento. A variável raça foi autodefinida, de acordo com a nomenclatura oficial dos censos demográficos, adotando como referência a cor da pele (branca, parda ou negra). Os pacientes foram pesados em uma balança mecânica (modelo 131; Filizola, São Paulo, Brasil). O comprimento foi medido com um antropômetro ou estadiômetro. Essas medidas foram comparadas aos gráficos de crescimento do National Center for Health Statistics e convertidas para os escores Z de índice de massa corpórea (IMC), peso/idade e estatura/idade, baseados em idade e gênero, utilizando o programa Epi‐Info versão 3.4.1.

O exame da cavidade oral foi realizado por um único otorrinolaringologista, em posição de Frankfurt e utilizando instrumental padronizado. As medidas da cavidade oral, exceto o overjet (OJ), foram realizadas com a língua em posição relaxada e abertura de boca com ângulo de 20o em relação ao côndilo mandibular. Para tanto, utilizou‐se um compasso de ponta seca com abertura fixa de 20o que foi colocado na topografia da articulação temporomandibular, a ponta da sua haste superior alinhou‐se com os incisivos centrais superiores e a da haste inferior com os incisivos centrais inferiores, obtendo‐se a abertura oral desejada.

Com outro compasso de ponta seca, realizaram‐se as medidas da cavidade oral (distância intermolar da maxila, definida como tamanho da maxila; distância intermolar da mandíbula, definida como tamanho da mandíbula), as quais foram transpostas para uma régua. Para medida do OJ utilizou‐se uma régua de 40 milímetros (mm); para a medida da circunferência cervical (CC), uma fita métrica localizada na altura da membrana cricotireoídea; e para a circunferência abdominal (CA), a mesma fita localizada na altura da cicatriz umbilical.10

Os pacientes foram submetidos a estudo polissonográfico, acompanhados pelo responsável, durante pelo menos 10h, em ambiente silencioso, com temperatura e iluminação adequadas para o exame. Este foi conduzido em sono espontâneo, sem nenhuma sedação prévia ou privação do mesmo, evitando‐se alimentos estimulantes (café, chocolate, refrigerante e chá preto). A polissonografia foi realizada em ambiente hospitalar, através de equipamento computadorizado Sonolab 620 (Medtron, São Paulo, Brasil), sendo os laudos emitidos pelo mesmo observador. Através da polissonografia foram registrados: eletroencefalograma (C4‐A1, C3‐A2, O2‐A1 e O1‐A2), eletro‐oculograma, eletromiografia de nervos tibiais anteriores e de mento e eletrocardiograma. Os movimentos respiratórios foram observados através de faixa torácica e abdominal, e a SpO2 através de oxímetro de pulso. Também foi utilizada uma cânula oronasal e termistor para medir o fluxo oronasal, além de um microfone colocado na região do pescoço para registrar o ronco.

A American Thoracic Society11 determina a seguinte definição e os seguintes critérios para o índice de apneia e hipopneia (IAH) em crianças: corresponde à somatória do número de apneias obstrutivas e mistas e hipopneias obstrutivas e mistas; deve ser expresso em eventos por hora; para o cálculo deste deve‐se utilizar o tempo total de sono; e considera‐se anormal quando o IAH ≥ 1 evento por hora de sono. A hipopneia foi definida como redução>50% da amplitude do fluxo associado a um microdespertar e ou redução >3% da saturação basal de oxigênio. Quanto ao índice de apneia (IA), foram adotadas as seguintes premissas: o número de apneias obstrutivas e mistas (as mistas são aquelas inicialmente centrais e que podem tornar‐se obstrutivas ao final do evento), com duração mínima de dois ciclos respiratórios, que foi expresso em eventos por hora, sendo que, para o cálculo, utilizou‐se o tempo total de sono e considerou‐se como anormal quando o IA ≥ 1 evento por hora de sono. Microdespertar foi definido como a mudança abrupta na frequência do eletroencefalograma com duração mínima de 3 s, precedido de no mínimo 10 s de sono. Dessaturação noturna foi considerada quando os pacientes que apresentaram mais que 30% do tempo total de sono com saturação periférica de oxigênio (SpO2) abaixo de 90%.

O projeto foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisas da instituição (Protocolo 197; Parecer 98/2006). Os responsáveis pelos pacientes, ao concordarem em participar do estudo, assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.

Para tabulação e análise dos dados foi utilizado o programa estatístico SPSS. As variáveis quantitativas foram expressas através de média±desvio‐padrão ou mediana e amplitude interquartil. As variáveis qualitativas foram expressas através de frequências simples e relativas. Para comparação de duas médias foram utilizados os testes t de Student para amostras independentes ou Mann‐Whitney. Para testar a correlação entre as variáveis foi utilizado o teste de Spearman. Para tal, foi adotado nível de significância de 5% (p<0,05).

Resultados

Foram avaliados 85 pacientes, sendo 58,8% do gênero masculino. Quanto à raça, 71,8% se autodefiniram como pardos, 20% como negros e 8,2% como brancos. Na tabela 1 está demonstrado o perfil clínico das crianças e adolescentes portadores de AF. Não houve diferença estatisticamente significante entre a média das idades: no grupo de apneicos foi de 9±4 anos, e no de não‐apneicos, 9±3 anos. A classificação das tonsilas palatinas e faríngeas nessa amostra, assim como as suas frequências, estão descritos em Salles et al.5

Tabela 1.

Comparação dos dados clínicos de crianças e adolescentes com anemia falciforme apneicos e não‐apneicos

Variável  Apneicos (n=9)  Não‐apneicos (n=76)  pa 
Idade, anos  9±9±0,818 
Hemoglobina anual média, g/dL  7,6±0.6  7,9±0,295 
Escore Z para índice de massa corpórea  −0,4 (−2,8−0,5)  −1,0 (−2,2−0,2)  0,875 
Escore Z para estatura/idade  −0,5 (−1,7−0,9)  −0,7 (−1,4−0,1)  0,775 
Episódios de crise álgica nos últimos 12 meses, n  12 (3‐26)  20 (4‐60)  0,936 
Tamanho das tonsilas faríngeas, % de ocupação do cavum  90 (25‐95)  60 (40‐70)  0,135 

Dados apresentados em média±desvio‐padrão ou mediana (intervalo interquartílico).

a

Teste t de Student.

A distribuição dos dados polissonográficos está representada na tabela 2. Não foi observada associação entre SAOS e as variáveis raça, gênero, idade, escore Z para IMC e escore Z estatura/idade.

Tabela 2.

Comparação dos dados polissonográficos segundo as variáveis quantitativas de crianças e adolescentes com anemia falciforme apneicos e não‐apneicos

Variável  Apneicos(n=9)  Não‐apneicos (n=76) 
TTS, Mina  332±79  368±63  0,223 
IAH (eventos/h de sono)a  1,3 (1,9−5,1)  0 (0−0)  0,000 
Microdespertares, eventos/h de sonoa  57 (30−147)  43 (29−67)  0,145 
Dessaturações, eventos/h de sonoa  13 (1,5−29)  5 (1−11)  0,083 
Tempo de SpO2 menor que 90%a,b  10 (1−29)  0,6 (0,1−4,9)  0,105 
Tempo de SpO2 menor que 80%a,c  0,1 (0−2)  0 (0−0)  0,021 

Dados apresentados em mediana (amplitude interquartil).

IAH, índice de apneia e hipopneia.

a

Teste de Mann Whitney.

b

Percentual do tempo total de sono (TTS) em que a saturação de oxigênio (SpO2) foi menor que 90%.

c

Percentual do tempo total de sono em que a SpO2 foi menor que 80%.

Dos 85 pacientes submetidos à polissonografia, apenas nove tiveram o IAH ≥ 1 (evento por hora de sono), caracterizando a síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS). A dessaturação noturna foi observada em 69 pacientes (81,2%), conforme publicado em trabalho anterior,12 sendo que a quantidade de eventos por hora de sono apresentou média de 13, variando de 1,5 a 29 no grupo de pacientes apneicos e uma média de 5, e variando de 1 a 11 eventos por hora de sono no grupo de não‐apneicos.12

Na tabela 3 pode‐se observar a associação entre dessaturação noturna e circunferência cervical e abdominal, medidas da maxila e mandíbula.

Tabela 3.

Comparação das variáveis morfométricas entre crianças com e sem dessaturação

Variável  Com dessaturação (n=69)  Sem dessaturação (n=16) 
Idade (anos)a  9,0±3,8  10,6±4,6  0,229 
Circunferência abdominal, cma  59,2±9,3  67,5±10,7  0,006 
Circunferência cervical, cma  27,0±2,0  29,0±2,1  0,028 
Tamanho da mandíbula, cma  3,3±0,4  3,7±0,6  0,007 
Tamanho da maxila, cma  3,6±0,4  3,8±0,5  0,048 
Overjet, mmb  0,3 (0−0,6)  0,6 (0,3−0,9)  0,081 
a

Teste t de Student.

b

Teste de Mann Whitney.

Na amostra estudada as medidas das circunferências cervical e abdominal, medidas da maxila, mandíbula e overjet foram correlacionadas, utilizando o teste de Spearman, com os valores de dessaturação noturna obtidos na polissonografia (tabela 4).

Tabela 4.

Correlação entre variáveis morfométricas e dessaturação noturna em crianças e adolescentes com anemia falciforme

Variáveis morfométricas 
Circunferência cervical x dessaturação noturnaa  –0,278  0,012 
Circunferência abdominal x dessaturação noturnaa  –0,188  0,092 
Overjet x dessaturação noturnaa  –0,178  0,115 
Tamanho da mandíbula x dessaturação noturnaa  –0,233  0,037 
Tamanho da maxila x dessaturação noturnaa  –0,365  0,001 
Escore Z altura/idade x circunferência cervicala  0,233  0,031 
a

Teste de Spearman.

Discussão

A correlação positiva entre o escore Z altura/idade e a medida da circunferência cervical, observada no atual estudo, estão em acordo com a literatura, devido às seguintes evidências: primeiro, estudos têm demonstrado que os pacientes falcêmicos menores de 18 anos apresentam déficit na estatura, quando comparados às crianças normais;13,14 as alterações na curva de crescimento dessas crianças podem estar associadas com a obstrução das VAS, com eventos obstrutivos durante o sono e, consequentemente, na diminuição da liberação do hormônio de crescimento15. Bar et al.16 compararam o fator de crescimento I em crianças com obstrução das VAS devido à HAT, antes e após serem submetidas à adenosonsilectomia. Antes da cirurgia, o fator de crescimento I apresentou valor médio de 146,3 ng/mL e, após o tratamento cirúrgico, elevou para 210,3 ng/mL (p<0,01), assim como o índice de distúrbios respiratórios foi mantido dentro da normalidade.

No presente estudo, a dessaturação noturna em crianças e adolescentes com AF apresentou associação com a n circunferência cervical. Uma das estruturas nobres para respiração é o trato laríngeo, o qual está situado na região cervical, e na criança apresenta a forma de um funil, com estreitamento a partir das pregas vocais em direção à região subglótica.17 À medida que ocorre o crescimento dessa criança, observa‐se expansão da área subglótica,15 assim como a cartilagem tireoide, que se apresenta contígua ao osso hioide no nascimento, se afastará dele no sentido crânio‐caudal.17 Logo, quanto menor a idade e a altura da criança, menores serão a circunferência cervical e a via aérea, e maior a chance de essa criança com anemia falciforme apresentar a dessaturação da oxihemoglobina à noite, aliado ao fato de que 55,3% delas apresentaram HAT obstrutiva,5 contribuindo para a obstrução da VAS. Isso corrobora com a afirmativa de que até 83% das crianças com doença falciforme apresentam dessaturação noturna.18

Nesse estudo, a obesidade não foi um fator que contribuiu para a obstrução das VAS. As crianças e adolescentes com anemia falciforme não se caracterizaram pela obesidade ou sobrepeso, ao contrário, a maioria das crianças encontravam‐se dentro do padrão eutrófico. A literatura tem chamado atenção para a medida da circunferência cervical em crianças na idade pré‐puberal maior ou igual a 29cm, a qual está associada com sobrepeso e obesidade.19 O grau de dessaturação em um evento de apneia é conhecido por estar correlacionado com o grau de obesidade expresso pelo IMC.20 Como as crianças e adolescentes com AF não apresentaram essas características, mas apresentaram a dessaturação noturna, chama‐se atenção para a necessidade de futuros estudos com imagem e polissonográfico, com o objetivo de avaliar as características da região cervical dessa população.

No atual estudo, crianças e adolescentes com AF que apresentaram dessaturação noturna apresentaram menores medidas da maxila e da mandíbula, assim como correlação positiva das mesmas com a dessaturação noturna. Sabe‐se que HAT obstrutiva é capaz de alterar a anatomia da cavidade oral, sendo principal causa de obstrução das VAS em crianças.21 Estudos mostram que, ao nascimento, o esqueleto craniofacial de um americano corresponde a 60% do tamanho cefálico do adulto; aos oito meses corresponde a 80%; aos três anos atinge os 90%; e aos nove alcança os 95% do adulto.22 Como consequência, pode desenvolver palato ogival, arcos dentais estreitos e retração mandibular, e estas estruturas passam a ocupar o espaço lingual, forçando a língua para trás, em direção à parede posterior da orofaringe.23 Somando‐se a esses fatos, pacientes que apresentam reduzidas dimensões da mandíbula e maxila têm uma tendência a apresentar restrição do lúmen das VAS, pois a língua desloca‐se em direção à parede posterior da faringe, assim como o palato mole e os tecidos moles na cavidade oral,24 resultando em colapso da VAS quando em estado de hipotensão dos músculos abdutores da faringe durante o sono, favorecendo a dessaturação da oxihemoglobina.24

A circunferência abdominal é usualmente utilizada como indicador de obesidade central, típica de adultos com SAOS.21 Contudo, no presente estudo, as crianças e os adolescentes com dessaturação noturna apresentaram menores medidas da circunferência abdominal. Como a amostra avaliada não se caracterizou pela obesidade ou sobrepeso, a medida da circunferência abdominal pode estar sendo influenciada pelo aumento do volume do fígado e do baço, característico da AF.

Sabe‐se que em pacientes com AF a dessaturação da oxihemoglobina não significa necessariamente hipoxemia, pois ela pode corresponder à diminuição do conteúdo de oxigênio arterial, provavelmente devido à presença da carboxi‐hemoglobina e meta‐hemoglobina, e diminuição da afinidade da HbS pelo oxigênio, mesmo com SpO2 normal.25 Apesar de o trabalho atual não ter como objetivo avaliar os pacientes com AF através da polissonografia noturna e hemogasometria, este chama a atenção para futuros estudos abrangendo esta associação.

Finalmente, através do presente estudo foi possível observar que as variáveis morfométricas e circunferência cervical podem contribuir para a suspeita da dessaturação noturna em crianças e adolescentes com anemia falciforme.

Financiamento

Este projeto contou com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

Referências
[1]
J.B. Thornton, D.R. Sams.
Preanesthesia transfusion and sickle cell anemia patients: case report and controversies.
Spec Care Dentist., 13 (1993), pp. 254-257
[2]
L. Pauling, H.A. Itano, J.S. Singer, I.C. Wells.
Sickle cell anemia, a molecular disease.
Science., 110 (1949), pp. 543-548
[3]
M.A. Zago, A.C. Pinto.
The pathophysiology of sickle cell disease: from the genetic mutation to multiorgan dysfunction.
Rev Bras Hematol Hemoter., 29 (2007), pp. 207-214
[4]
G.A. Moreira.
Respiratory repercussions of sickle cell anemia.
J Bras Pneumol., 33 (2007), pp. 18-20
[5]
C. Salles, R.T. Ramos, C. Daltro, V.M. Nascimento, M.A. Matos.
Association between adenotonsillar hypertrophy, tonsillitis and painful crises in sickle cell disease.
J Pediatr (Rio J)., 85 (2009), pp. 249-253
[6]
A.J. Block, P.G. Boysen, J.W. Wynne, L.A. Hunt.
Sleep apnea, hypopnea and oxygen desaturation in normal subjects. A strong male predominance.
N Engl J Med., 300 (1979), pp. 513-517
[7]
P.L. Robertson, M.S. Aldrich, S.M. Hanash, G.W. Goldstein.
Stroke associated with obstructive sleep apnea in a child with sickle cell anemia.
Ann Neurol., 23 (1988), pp. 614-616
[8]
J. Kaleyias, N. Mostofi, M. Grant, C. Coleman, L. Luck, C. Dampier, et al.
Severity of obstructive sleep apnea in children with sickle cell disease.
J Pediatr Hematol Oncol., 30 (2008), pp. 659-665
[9]
R.M. Wittig, T. Roth, A.J. Keenum, S. Sarnaik.
Snoring, daytime sleepiness, and sickle cell anemia.
Am J Dis Child., 142 (1988), pp. 589
[10]
M.C. Soares, L.R. Bittencourt, A.L. Zonato, L.C. Gregório.
Application of the Kushida morphometric model in patients with sleep‐disordered breathing.
Rev Bras Otorrinolaringol., 72 (2006), pp. 541-548
[11]
American Thoracic Society/American Sleep Disorders Association.
Statement on health outcomes research in sleep apnea.
Am J Respir Crit Care Med., 157 (1998), pp. 335-341
[12]
C. Salles, R.T. Ramos, C. Daltro, A. Barral, J.M. Marinho, M.A. Matos.
Prevalence of obstructive sleep apnea in children and adolescents with sickle cell anemia.
J Bras Pneumol., 35 (2009), pp. 1075-1083
[13]
C.K. Phebus, M.F. Gloninger, B.J. Maciak.
Growth patterns by age and sex in children with sickle cell disease.
J Pediatr., 105 (1984), pp. 28-33
[14]
O.S. Platt, W. Rosenstock, M.A. Espeland.
Influence of sickle hemoglobinopathies on growth and development.
N Engl J Med., 311 (1984), pp. 7-12
[15]
F.C. Valera, R.C. Demarco, W.T. Anselmo-Lima.
Obstructive sleep apnea syndrome (OSAS) in children.
Rev Bras Otorrinolaringol., 70 (2004), pp. 232-237
[16]
A. Bar, A. Tarasiuk, Y. Segev, M. Phillip, A. Tal.
The effect of adenotonsillectomy on serum insulin‐like growth factor‐I and growth in children with obstructive sleep apnea syndrome.
J Pediatr., 135 (1999), pp. 76-80
[17]
J.N. Braga.
Freqüência fundamental de 100 crianças de 6 a 8 anos de Belo Horizonte [dissertation].
Universidade Veiga de Almeida, (2007),
[18]
J.F. Spivey, E.C. Uong, R. Strunk, S.E. Boslaugh, M.R. DeBaun.
Low daytime pulse oximetry reading is associated with nocturnal desaturation and obstructive sleep apnea in children with sickle cell anemia.
Pediatr Blood Cancer., 50 (2008), pp. 359-362
[19]
N. Hatipoglu, M.M. Mazicioglu, S. Kurtoglu, M. Kendirci.
Neck circumference: an additional tool of screening overweight and obesity in childhood.
Eur J Pediatr., 169 (2010), pp. 733-739
[20]
Uchiyama LN, Magalhães CC, Durval MR, Pinho HA, Oliveira LV. Estudo da dessaturação da oxihemoglobina durante o sono em pacientes portadores de insuficiência cardíaca congestiva. IX Encontro Latino Americano de Iniciação Científica, V Encontro Latino Americano de Pós‐Graduação – Universidade do Vale do Paraíba. [cited 13 Jul 2013]. Available from: http://www.inicepg.univap.br/cd/INIC_2005/epg/EPG4/EPG4‐37%20ok.pdf.
[21]
C. Guilleminault.
Obstructive sleep apnea syndrome and its treatment in children: areas of agreement and controversy.
Pediatr Pulmonol., 3 (1987), pp. 429-436
[22]
H.V. Meredith.
Growth in head width during the first twelve years of life.
Pediatrics., 12 (1953), pp. 411-429
[23]
B. Palmer.
Snoring and sleep apnea: how it can be prevented in childhood.
Das Schlafmagazin., 3 (2005), pp. 22-23
[24]
T.D. Robinson, R.R. Grundstein.
Sleep‐disordered breathing.
Obesity – mechanisms and clinical management, pp. 202-228
[25]
L.C. Souza, C.A. Viegas.
Quality of sleep and pulmonary function in clinically stable adolescents with sickle cell anemia.
J Bras Pneumol., 33 (2007), pp. 275-281

Como citar este artigo: Salles C, Bispo M, Trindade‐Ramos RT. Association between morphometric variables and nocturnal desaturation in sickle‐cell anemia. J Pediatr (Rio J). 2014;90:420–5.

Copyright © 2014. Sociedade Brasileira de Pediatria
Idiomas
Jornal de Pediatria
Opções de artigo
Ferramentas
en pt
Taxa de publicaçao Publication fee
Os artigos submetidos a partir de 1º de setembro de 2018, que forem aceitos para publicação no Jornal de Pediatria, estarão sujeitos a uma taxa para que tenham sua publicação garantida. O artigo aceito somente será publicado após a comprovação do pagamento da taxa de publicação. Ao submeterem o manuscrito a este jornal, os autores concordam com esses termos. A submissão dos manuscritos continua gratuita. Para mais informações, contate assessoria@jped.com.br. Articles submitted as of September 1, 2018, which are accepted for publication in the Jornal de Pediatria, will be subject to a fee to have their publication guaranteed. The accepted article will only be published after proof of the publication fee payment. By submitting the manuscript to this journal, the authors agree to these terms. Manuscript submission remains free of charge. For more information, contact assessoria@jped.com.br.
Cookies policy Política de cookies
To improve our services and products, we use "cookies" (own or third parties authorized) to show advertising related to client preferences through the analyses of navigation customer behavior. Continuing navigation will be considered as acceptance of this use. You can change the settings or obtain more information by clicking here. Utilizamos cookies próprios e de terceiros para melhorar nossos serviços e mostrar publicidade relacionada às suas preferências, analisando seus hábitos de navegação. Se continuar a navegar, consideramos que aceita o seu uso. Você pode alterar a configuração ou obter mais informações aqui.