O número 6 do volume 91 do Jornal de Pediatria publicou o artigo intitulado “Avaliação da capacidade preditiva da bioimpedância tetrapolar segmentada vertical na detecção do excesso de peso em adolescentes”.1 Os autores tiveram como objetivo analisar, em uma amostra de adolescentes, a capacidade preditiva do aparelho de bioimpedância tetrapolar segmentada vertical na detecção do excesso de peso e usaram como método de referência a bioimpedância tetrapolar horizontal. Entretanto, gostaríamos de abordar alguns pontos a fim de contribuir para o referido tema.
A bioimpedanciometria é uma técnica de avaliação da composição corporal considerada duplamente indireta,2 pois assume pressupostos conceituais baseados em princípios biológicos, físicos e matemáticos, com equações de regressão validadas a partir de um método indireto, mais comumente a pesagem hidrostática ou a absortometria radiológica de dupla energia (Dexa).
Nessa técnica, o princípio norteador é a relação entre o conteúdo de água corporal e as quantidades dos diferentes componentes corporais, com base na constatação de que o tecido magro, que contém uma grande quantidade de água (∼ 73%) e eletrólitos, é um bom condutor de corrente elétrica. Por sua vez, a gordura, que tem pequena quantidade de água, é um mau condutor.3
A resistência de uma substância é proporcional à variação da voltagem de uma corrente elétrica a ela aplicada. Dessa forma, por um sistema tetrapolar, no qual dois eletrodos são fixados à região dorsal da mão direita e dois à região dorsal do pé direito do avaliado, o aparelho de bioimpedância identifica os níveis de resistência e reatância do organismo à passagem de uma corrente elétrica, para a estimativa da água corporal total, da quantidade de massa corporal magra e de massa gorda.4
A bioimpedância segmentar não é recente, foi usada pela primeira vez na década de 1980,5 a partir da observação de que 85% da impedância corporal total eram resultantes da soma das impedâncias dos membros superiores e dos membros inferiores, apesar de esses segmentos constituírem apenas 35% do volume corporal total. Posteriormente, a abordagem segmentar da impedância bioelétrica passou a ser incorporada por vários equipamentos, inicialmente apenas pela medida dos membros inferiores, em balanças de bioimpedância,4 e mais recentemente em equipamentos tetrapolares, mas ainda carece de estudos que evidenciem sua validade.
Esse fato justifica a necessidade de estudos que avaliem a capacidade preditiva da bioimpedância tetrapolar segmentada vertical para a estimativa da gordura corporal em diferentes grupos populacionais e faixas etárias. Entretanto, isso só é possível quando se usa como padrão de referência uma técnica considerada padrão‐ouro como a Dexa; ou ainda, para a verificação da água corporal total, técnicas de diluição com brometo ou deutério, por exemplo, sempre seguidas de adequada análise estatística da referida validade.6
Com base na leitura atenta do manuscrito surgiram algumas dúvidas de ordem metodológica que, na nossa opinião, merecem esclarecimento, a fim de permitir ao leitor que não tenha um profundo conhecimento da área de avaliação da composição corporal o discernimento sobre a avaliação da capacidade preditiva de equipamentos de bioimpedanciometria.
Primeiramente, os autores usaram uma técnica duplamente indireta como padrão para a definição do excesso de gordura corporal e verificação da capacidade preditiva de um outro modelo de equipamento da mesma técnica duplamente indireta. Para justificar, os autores afirmam que a bioimpedância tetrapolar horizontal demonstrou elevados coeficientes de correlação quando comparada com o equipamento padrão‐ouro Dexa e citaram quatro artigos. Entretanto, um deles é uma revisão sistemática que conclui que a bioimpedância é uma técnica que não apresenta validade satisfatória; e nenhum dos outros três estudos correlaciona a bioimpedância com a Dexa.
Em segundo lugar, os autores referem que “os valores de resistência e reactância foram fornecidos por Biodynamics® (modelo 450, Biodynamics®, WA, EUA) e a porcentagem de gordura foi calculada com base nas equações preditivas de Chumlea et al. (1988)”; porém, o artigo citado trata da proposição de equações para a predição da massa corporal de pacientes idosos pelo uso de medidas antropométricas, sem qualquer relação com a técnica de impedância bioelétrica.
Em terceiro lugar, cabem algumas considerações sobre as análises estatísticas empregadas no estudo. Os autores não mencionaram se testaram o pressuposto de distribuição normal dos dados, usaram estatística paramétrica para a descrição dos dados (média±desvio padrão) e compararam os resultados entre os sexos pelo teste t de Student. Observando a elevada variabilidade de algumas variáveis, podemos supor que não apresentavam distribuição normal, como por exemplo a gordura segmentar do tronco (GT %) nas meninas (9,59±8,33) e nos meninos (16,33±6,94), que apresentaram coeficientes de variação de 86,9% e 42,5%, respectivamente. Assim, os dados deveriam ter sido apresentados como medianas e intervalos interquartílicos e as comparações feitas pelo teste U de Mann‐Whitney, quando detectadas distribuições não normais. Como o objetivo do estudo foi avaliar capacidade preditiva, deveriam ter sido apresentados os valores preditivos positivos e negativos. Além disso, a comparação entre os valores médios/medianos obtidos pelo padrão adotado e aqueles testados também deveria constar nos resultados. Uma técnica de análise de concordância, como Kappa, Coeficiente de Correlação de Concordância ou Plotagem de Bland‐Altman, também deveria ser usada. Para uma boa análise da performance de uma técnica de predição de composição corporal é usual a análise de regressão (Slope e Intercepto) e o cálculo do Erro Padrão de Estimativa (EPE) também.
Concluindo, queremos destacar que a escassez de estudos que testem a validade de equipamentos de bioimpedanciometria e sua capacidade preditiva da gordura corporal em adolescentes da população brasileira demonstra a importância da preocupação dos autores e a necessidade de investigações para esse fim. No entanto, a ausência de um método de referência baseado em modelos multicompartimentais ou padrão‐ouro enfraquece demasiadamente o estudo e não pode ser desprezada na discussão. Assim, os cuidados metodológicos aqui apontados devem ser observados, a fim de ampliar a qualidade dos resultados obtidos.
FinanciamentoRoberto Fernandes da Costa é bolsista do Programa Nacional de Pós‐Doutorado (PNPD) da Coodenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.