O desempenho escolar é um elemento fundamental para a saúde ao longo da vida. O sucesso acadêmico na adolescência não apenas prediz o sucesso profissional e financeiro na vida adulta como também pode estar associado a uma baixa carga alostática1 na vida adulta e a um melhor estado de saúde, como sugerido por evidências recentes.2 Essas associações poderão ocorrer em virtude de melhores oportunidades financeiras e de emprego que um alto desempenho escolar proporciona, porém provavelmente existem outras variáveis explicativas – como funcionamento familiar, capacidades intelectuais ou autorreguladoras da criança, estresse associado a pobreza crônica ou condições de saúde mental pré‐mórbidas – que influenciam tanto o desempenho escolar quanto resultados posteriores. Independentemente, a identificação de fatores possivelmente modificáveis de contribuição ao desempenho escolar é valiosa, já que melhorar a trajetória acadêmica de uma criança tem grande relevância na trajetória de vida.
Com razão, uma literatura cada vez maior tem examinado a atividade física como uma variável preditora do sucesso escolar: estudos feitos em laboratório sugerem que períodos de atividade física intensa podem melhorar o funcionamento cognitivo imediato, como a inibição de impulsos e a memória de trabalho.3 Embora as evidências sejam menos relevantes com relação à melhoria das funções executivas causada por hábitos de exercício de longo prazo,3 os benefícios podem ser específicos para uma determinada população: evidências recentes sugerem que crianças com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) apresentam melhor funcionamento cognitivo e comportamental ao participar de intervenções destinadas a aumentar sua atividade física.4 Embora uma literatura cada vez maior venha apresentando associações positivas entre forma física e aspectos de desempenho escolar, muitos desses estudos têm sido limitados por delineamento transversal e potencial de causalidade reversa. Em outras palavras, crianças com notas baixas poderão passar mais tempo fazendo lição de casa diariamente, o que limita seu tempo para atividade física, ou poderão ser tiradas de times esportivos por treinadores ou pais devido às notas ruins. Algumas crianças com dificuldades de aprendizagem ainda apresentam descoordenação motora, também associada ao baixo desempenho escolar5 e que pode torná‐las mais resistentes à prática regular de atividade física.6 Por fim, a falta de controle para lidar com variáveis de confusão importantes explica algumas associações observadas por outras variáveis, como situação socioeconômica, estresse psicossocial ou uso de mídias de tela.
Aguilar et al.,7 na tentativa de preencher essas lacunas do conhecimento, fizeram um grande estudo transversal com crianças de 12 anos no Chile e observaram que a função cardiorrespiratória (CRF) estava significativamente relacionada ao sucesso acadêmico, independentemente de variáveis de confusão socioeconômicas. Contudo, assim que as horas de uso diário de mídia de tela foram incluídas no modelo multivariável, associações entre CRF e sucesso acadêmico foram acentuadamente atenuadas e deixaram de ser estatisticamente significativas. Isso sugere fortemente que o uso de mídia de tela poderia ser um mecanismo de explicação entre um estilo de vida sedentário e dificuldades acadêmicas, possivelmente substituindo exercícios e atividades relacionadas ao aprendizado. Estatisticamente, também é possível que o uso de mídia de tela e a atividade física sejam tão negativamente colineares que a inserção simultânea de ambos no modelo multivariável gere associações não significativas; dessa maneira, teria sido interessante observar se as horas de uso diário de mídia de tela foram independentemente preditoras de baixo desempenho escolar nessa coorte. Para abordar a questão da colinearidade, os autores sabiamente estratificaram análises por uso de mídia e observaram que, com alto uso de mídia (> 2 horas/dia), a CRF não apresentou relação alguma com o desempenho escolar. Em usuários de pouca mídia, a CRF continuou sendo uma variável preditora significativa de boas notas. Esse achado é interessante, pois indica que os efeitos negativos do alto uso de mídia no sucesso escolar são tão dominantes que outros fatores de proteção (por exemplo, atividade física e CRF) perdem sua força.
Por outro lado, hábitos excessivos de uso de mídia poderão refletir variáveis relacionadas aos pais, como monitoramento de atividades da criança ou envolvimento na aprendizagem e na escola,8 fortes determinantes do sucesso acadêmico. Isso ilustra bem como os hábitos de tempo de tela da criança (como a maioria dos comportamentos relacionados à saúde, incluindo sucesso acadêmico)9 evoluem em um contexto socioecológico com multicamadas.10 No nível mais proximal para a criança, seu temperamento, estilo de aprendizagem, suas habilidades autorreguladoras e capacidades cognitivas influenciam como ela interage com a mídia de tela desde os primeiros anos de vida. A maneira como os irmãos da criança fazem uso de mídia, as regras dos pais sobre tempo de uso, o conteúdo e o acesso a telas moldam similarmente os hábitos de uso de mídia de crianças e adolescentes, também influenciados por aspectos do ambiente social imediato da criança, como relacionamentos com seus pares, nível de pobreza ou estresse em casa, conflitos no lar, doença mental nos pais e acesso a outras atividades ou recursos de aprendizagem (ou, ainda, oportunidades de prática de atividade física). Em um nível ecológico, os hábitos de uso de mídia são moldados pela segurança da vizinhança da criança, pela qualidade da escola da criança (e, portanto, pelo envolvimento da criança com professores e materiais didáticos), pelas exigências do trabalho dos pais e pela importância cultural do uso de mídia como meio de capital ou conexão social. Esses aspectos do contexto socioecológico da criança são difíceis de ser contabilizados em estudos epidemiológicos por diversas razões, incluindo medição de influências culturais, necessidade de coleta de dados de várias fontes e natureza interconectada de variáveis socioecológicas, o que exige modelos estatísticos complicados.
Essa estrutura teórica tem diversas implicações para pesquisas futuras. Primeiro, como a mídia de tela se torna mais generalizada nas camadas socioecológicas da saúde da criança com o uso de smartphones e tablets, será cada vez mais importante que os estudos avaliem especificamente a questão do tempo de tela. Sua portabilidade e acessibilidade instantânea aumentam o potencial de o tempo de tela substituir ou interromper atividade física, aprendizagem, interação social e sono. Também é importante levar em conta a função multitarefa da mídia,11 que normalmente é usada no mesmo momento da lição de casa e pode, portanto, afetar o desempenho escolar. Por fim, em estudos futuros, é importante incluir crianças com necessidades educacionais especiais, excluídas do estudo de Aguilar et al., para examinar se elas são diferencialmente suscetíveis aos efeitos do uso de mídia ou de atividade física.4 Na experiência clínica pediátrica do desenvolvimento comportamental, muitas crianças com deficiências de aprendizagem, desordem do espectro do autismo de alto funcionamento e TDAH desenvolvem hábitos excessivos de uso de mídia, talvez porque o uso de mídia – particularmente videogames – proporciona uma área de reforço positivo ou controle percebido que a escola não proporciona. Por essa razão, o uso de mídia representa uma possível janela para intervenções, seja para envolver crianças no aprendizado por meio de recursos educacionais digitais comprovados seja para diminuir hábitos de uso de mídia excessivos ao substituí‐los por atividades que proporcionam o mesmo senso de competência e controle.
Conflitos de interesseA autora declara não haver conflitos de interesse.