Nesta edição do Jornal de Pediatria, Torres et al.1 apresentam um estudo sobre a incidência, as características clínicas, a mortalidade e a situação de vacinação de pacientes com coqueluche no Estado do Paraná entre 2007 e 2013. Também fornecem dados genotípicos sobre as cepas isoladas de B. pertussis. O estudo mostra que os casos de coqueluche no Paraná estão aumentando e que os sintomas mais graves e óbitos ocorrem em crianças com menos de dois meses. A combinação da epidemiologia clássica, que se concentra em incidências, distribuição por idade e características clínicas, com a caracterização da cepa é um aspecto importante desse trabalho, já que somente essa combinação nos permite compreender integralmente as causas do ressurgimento da coqueluche.
Os casos de coqueluche estão aumentando em todo o mundo e, como observam os autores, parte desse aumento deve‐se à maior conscientização entre médicos e à melhor detecção por meio da introdução da reação em cadeia da polimerase (PCR). Esses dois fatores resultaram em uma avaliação mais precisa da carga de doença, que tendia a ser subestimada. O aumento da precisão do diagnóstico de coqueluche levou alguns autores a sugerirem que o ressurgimento da coqueluche é um artefato. Entretanto, o conhecimento atual confirma a suposição de que há um aumento real dos casos de coqueluche, causado principalmente por dois fatores: declínio da imunidade induzida pela vacina e adaptação do patógeno por mutações em seu DNA. Os dois fatores não são independentes, já que a adaptação do patógeno reduz o período em que as vacinas são efetivas e, assim, aumenta a velocidade com que a imunidade protetora diminui (veja abaixo). Assim, o declínio da imunidade e a adaptação do patógeno são dois lados da mesma moeda.2 Estudos recentes indicam que a troca de vacinas de células inteiras (WCVs) por vacinas acelulares (ACVs) também contribuiu para o ressurgimento da coqueluche, pois a imunidade induzida por ACVs é de menor duração, em comparação com a imunidade induzida por WCVs.3,4 Entretanto, deve‐se destacar que o ressurgimento da coqueluche também é observado em países que mantiveram as WCVs, salientando novamente que vários fatores estão envolvidos.5,6
Os patógenos se tornam resistentes não só contra os antibióticos, mas também contra as vacinas. Esse último processo é, contudo, mais sutil, pois a resistência à vacina se acumula em pequenas etapas e, portanto, pode (inicialmente) passar despercebida. Além disso, a resistência à vacina não é absoluta e não implica que o B. pertussis seja capaz de causar doenças em um hospedeiro altamente imune. O efeito é mais sutil, de forma que as cepas adaptadas conseguem infectar hospedeiros com um nível maior de imunidade (isto é, logo após a vacinação) em comparação com cepas não adaptadas. Obviamente, isso resulta em um aumento nos suscetíveis e, assim, na circulação do patógeno.
Apesar de estudos com ratos terem mostrado que a adaptação de patógenos afeta a eficácia da vacina, é difícil estabelecer esses efeitos em populações humanas, já que exigem estudos de longo prazo com grandes populações. Portanto, é importante analisar a natureza das adaptações genéticas a fim de avaliar se devem afetar a eficácia das vacinas. Em geral, esse é o caso com B. pertussis. As primeiras adaptações do B. pertussis envolveram mudanças relativamente pequenas nas proteínas de superfície que conhecidamente induzem a imunidade protetora: toxina pertussis (Ptx), pertactina (Prn) e fímbrias.2 Posteriormente, foram encontradas alterações na regulação gênica, o que resultou em um aumento na produção de diversos fatores virulentos, incluindo Ptx e proteínas envolvidas na resistência ao complemento.7,8 Essas alterações poderão resultar no aumento da supressão e da evasão imunológica. As estirpes que mostram aumento na produção de fatores virulentos pertencem à linhagem chamada P3 (ou ptxP3), que recentemente foi difundida no mundo e predomina em muitas populações vacinadas.9,10 Aumentos na prevalência de estirpes P3 foram associados ao aumento da notificação nos Países Baixos e na Austrália.7,11 Um estudo, com Eletroforese em Gel de Campo Pulsado (PFGE) para tipificar estirpes brasileiras identificou dois perfis encontrados em estirpes P3 que circulam nos EUA12,13 e sugeriu que as estirpes P3 também estão presentes no Brasil. De fato, a sequência do genoma de uma estirpe P3 brasileira foi recentemente publicada.14
A adaptação mais recente do B. pertussis envolve a perda da produção de Prn, componente da maioria das ACVs. Estirpes deficientes de Prn predominam em vários países nos quais as ACVs foram usadas por muitos anos.15,16 Curiosamente, as estirpes deficientes de Prn não foram observadas na Polônia, que usa uma WCV.17 Isso sugere que a introdução de ACVs selecionou as estirpes deficientes de Prn e que seu surgimento pode ser impedido pelo uso de vacinas que proporcionem uma ampla imunidade. Seria interessante determinar se as estirpes deficientes de Prn circulam no Brasil.
Como o estudo feito por Torres et al.1 poderia ser melhorado? Deve‐se perceber que sempre haverá restrições locais, como ausência de recursos, equipamentos e experiência. Assim, isso não é uma crítica, mas uma tentativa de estabelecer o cenário ideal. Uma sugestão é usar um método de tipagem que permita comparações internacionais. Ao sequenciar regiões polimórficas nos genes da subunidade Ptx A, do promotor de Ptx (ptxP), Prn e Fim3, importantes características das estirpes atuais podem ser determinadas.18 Obviamente, a estirpe da vacina deve ser incluída para determinar a extensão da divergência quanto às cepas circulantes. A PFGE também é útil para tipificar estirpes, porém exige uma padronização cautelosa e nem sempre revela verdadeiras relações genéticas.19 A tipagem de polimorfismo de nucleotídeo simples (SNP) tem o poder discriminatório da PFGE, é inequívoca e revela verdadeiras relações genéticas. Recentemente, desenvolvemos um método de tipagem de SNP de alto rendimento e econômico.20
Para resolver o problema da coqueluche, devem‐se distinguir as abordagens de curto e de longo prazo. No longo prazo, precisamos desenvolver vacinas contra a coqueluche que induzam maior imunidade. Em curto prazo, a introdução da vacina materna pode reduzir substancialmente a morbidez e mortalidade. Estudos no Reino Unido demonstraram que a vacinação materna é muito eficaz (eficácia estimada da vacina: 90%) e segura para a mãe e o filho.21,22 Como muitos estudos demonstraram, incluindo o estudo de Torres et al., a coqueluche mais grave e a mortalidade ocorrem em neonatos menores de 2‐3 meses. Caso essa categoria possa ser protegida pela vacinação materna até que a série principal seja iniciada, a parte mais significativa do problema da coqueluche poderá ter sido resolvida. A pergunta a ser respondida é se a carga da coqueluche em adolescentes, adultos e idosos é grave o suficiente para usar recursos limitados a fim de desenvolver melhores vacinas contra a coqueluche.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.