O artigo “Curso clínico de uma coorte de crianças com sintomas de incontinência urinária diurna não neurogênica acompanhada em um centro terciário”1 destaca certos problemas importantes no tratamento da disfunção do trato urinário inferior (DTUI) em crianças. O primeiro problema reconhecido é a necessidade de terminologia consistente nessa área. Os autores usam o termo retenção urinária para descrever o que é definido no documento de padronização da Sociedade Internacional de Continência em Crianças (ICCS) como adiamento da micção: crianças que adiam a micção com frequência e usam manobras de contenção sofrem de adiamento da micção. Isso cria ambiguidade para o leitor e dificulta fazer uma busca precisa na literatura para estudos futuros sobre o assunto. Precisamos do esforço de todos os autores para usar uma terminologia padronizada para ajudar a profissão a continuar avançando cientificamente.
Respeito os editores desta revista dispostos a aceitar um estudo retrospectivo, que se tornou um “pária” em círculos e revistas acadêmicos. Tem havido um viés combinado na medicina clínica para menosprezar estudos retrospectivos como pesquisa médica de baixa qualidade em vez de outros estudos prospectivos que têm valor marginal. Tenho visto um número excessivo de trabalhos e resumos apresentados com base em análises, em base de dados, de dados de faturamento ou diagnóstico sem acréscimo de informações sobre pacientes. As reuniões de urologia pediátrica estão repletas desses estudos com coordenadores das reuniões cativados pelo fato de que esses são estudos prospectivos e que têm melhor classificação do que estudos retrospectivos. A outra forma de estudo que se tornou prevalente são estudos prospectivos de base de dados e os próprios autores classificam de achados subjetivos. Temos visto vários estudos como esse em reuniões e publicações, pois eles são prospectivos, então com certeza devem ser melhores. Como alguém que analisa os próprios resultados, conhece qual é a hipótese, produz um estudo neutro? Por algum motivo, editores e pessoas responsáveis pelas reuniões têm dado a esses estudos maior relevância do que para as análises retrospectivas. As boas respectivas análises, como essa, podem oferecer muito conhecimento. Sim, há limitações com estudos retrospectivos, porém, contanto que sejam adequadamente reconhecidos, não devem impedir a apresentação de dados inovadores. Em alguns casos, análises retrospectivas podem reduzir o viés. Como? Caso os pacientes fossem tratados sem intenção prévia de publicar os dados, a probabilidade de os médicos serem pressionados a chegar a um resultado hipotético seria menor. Caso a pessoa que analise os dados seja diferente do cuidador, ela também tende a reduzir o risco de viés. Precisamos de análises retrospectivas que nos forneçam estudos‐piloto com conceitos inovadores. Sem isso, teríamos de esperar anos pelo estudo perfeito. Envolvidos em ensaios clínicos de medicamentos que tentam obter aprovação nos Estados Unidos e na Europa, pode levar um bom tempo até que esses estudos sejam conduzidos. É ainda mais devastador se a hipótese errada for estabelecida, então todo o estudo pode ser em vão. Em alguns casos, o que poderia ter sido um conceito inovador pode não ser reconhecido. Há um lugar para análises retrospectivas bem feitas e completas, como este estudo.
O outro aspecto importante deste trabalho é que os autores concluíram o que tenho defendido e outros têm demonstrado que há um papel limitado para o uso do exame de urodinâmica na avaliação de crianças com DTUI. Eles observaram que 36/38 pacientes apresentaram anomalias urodinâmicas e dois não apresentaram anormalidade. Vamos analisar isso ainda mais e ver se de fato foi necessário fazer esses procedimentos. Como mostrado pelos autores, que um bom histórico é essencial e muito útil na obtenção de um diagnóstico, o fato de que a hiperatividade, conforme comprovado no exame de urgência, estimula a incontinência e a frequência provavelmente seria uma maior comprovação de instabilidade do detrusor no exame de urodinâmica. Mesmo se comprovado que o fato de a criança apresentar instabilidade do detrusor no exame de urodinâmica, o tratamento seria diferente? A resposta é “não“. Trataríamos os sintomas de hiperatividade da mesma forma, independentemente de a instabilidade do destrutor estar presente. Quais os motivos para o exame de urodinâmica e para submeter uma criança a um procedimento desconfortável desnecessariamente? As disfunções miccionais têm desaparecido sem o exame de urodinâmica? Claro que poderiam. O uso de urofluxometria com eletromiografia (EMG) do períneo e EMG concomitante do abdômen fornece boa comprovação de disfunções miccionais, negativa a necessidade do exame de urodinâmica. Podemos diagnosticar ainda dissinergia do esfíncter interno com tempos de atraso, conforme descrito por Combs e Glassberg.2 Hiperatividade vesical foi correlacionada a curtos tempos de atraso e hábitos miccionais mais baixos, tornou mais provável o diagnóstico de hiperatividade vesical (HV) de forma não invasiva.3 Outra publicação recente4 que define uma abordagem quantitativa para urofluxometria ajuda a remover a maior parte da subjetividade em curvas de leitura. Sabemos que há grande subjetividade no processo de determinação de se as curvas são bell em comparação ccom plateau e bell em comparação com tower. Usar um índice de fluxos como idealizamos remove essa subjetividade e torna a interpretação da urofluxometria mais objetiva e fornece a ela uma ferramenta mais potente. O uso do índice de fluxos pode levar à capacidade de acompanhar pacientes longitudinalmente, independentemente da idade ou do volume adiado. Isso, em associação com o EMG do períneo e do abdômen, cria uma ferramenta tão poderosa ou mais do que o exame de urodinâmica. Os autores nos mostram que atingiram um alto nível de concordância de 85% ao diagnosticar instabilidade do destrutor com histórico e testes não invasivos. Isso apenas confirma nossas convicções e o trabalho de Bael et al.,5 de que há pouco espaço no manejo de crianças com HV no exame de urodinâmica. Há alguns pacientes refratários que se adequam melhor aos exames de urodinâmica e esses pacientes são aqueles que os médicos suspeitam ter bexiga neurogênica ou, em alguns casos, desejam fazer exame de urodinâmica por vídeo, pois há necessidade de cistouretrografia miccional e o exame urodinâmica é feito simultaneamente. Porém, mesmo que isso seja algo que eu não consideraria favorável para o exame de urodinâmica, um cateter balão retal precisa ser inserido sem sedação, tornaria o procedimento pior do que uma uretrocistografia miccional (UCM) em si, que pode ser feita com anestesia ou propofol.
Caso os médicos suspeitem seriamente de que o paciente pode ter bexiga neurogênica, então provavelmente será aconselhável fazer RM da coluna antes do exame de urodinâmica. Caso a RM seja normal, então a necessidade de fazer exame de urodinâmica é quase nula, conforme comprovado por Stone et al.6 Eles mostraram que todos os pacientes que apresentaram resultados normais na RM não tinham nada, a não ser instabilidade do detrusor no exame de urodinâmica. Em caso de preocupação a respeito de bexiga não neurogênica/neurogênica, esse diagnóstico pode ser feito com UCM, mostra comprovação de trabeculação grave, em formato de árvore de Natal, e dissinergia do esfíncter externo ou dissinergia do esfíncter interno na UCM. Portanto, a necessidade de uso do exame invasivo de urodinâmica deve ser rigorosamente restringida em crianças com sintomas de HV de rotina.
Outro fato interessante no artigo é que os autores fizeram uma observação de que não encontraram relação entre obesidade e os sintomas de adiamento, conforme observado na literatura. Isso pode ser explicado por um recente artigo de Wang et al.,7 que verificou os problemas comportamentais no início da adolescência em uma coorte de pacientes em Hong Kong. Eles não encontraram relação entre obesidade e os problemas emocionais e comportamentais. Sabemos que há uma relação entre os problemas emocionais e comportamentais e a incontinência urinária em crianças e adultos. Portanto, por extensão, podemos presumir que a ausência de obesidade e DTUI nessa coorte de pacientes pode ser geográfica, ética, social e/ou possivelmente devido a variações culturais que podem impedir o desenvolvimento de obesidade em determinadas regiões do mundo. Nesse caso, se o grupo de crianças nesse estudo foi tirado de uma população de crianças com menos acesso a alimentos, então podemos ver uma menor incidência de obesidade neste estudo e possivelmente negar os achados vistos nos Estados Unidos e na Europa, onde a obesidade é epidemia.
Conflitos de interesseO prof. Israel Franco é consultor e investigador clínico na Astellas, na Allergan e na Laborie Medical Technologies.