Alcançar a continência é um importante marco fisiológico e de desenvolvimento para todas as crianças, o controle diurno e noturno da bexiga é normalmente alcançado na idade cronológica de cinco anos. A enurese noturna (NE) ou incontinência noturna é a forma mais comum de incontinência funcional na infância. De acordo com a International Children's Continence Society, a EN é definida como incontinência intermitente que ocorre durante períodos de sono com um mínimo de um episódio por mês por pelo menos três meses. Enurese frequente ocorre ≥ 4x/semana e infrequente, <4x/semana. Os subtipos incluem primária, secundária (recaída após um período seco de pelo menos seis meses), monossintomática (ENM); sem sintomas do trato urinário inferior (STUI) ou disfunção da bexiga presente, ou EN não monossintomática (ENNM) na presença de STUI.1
Os fatores causais subjacentes para EN são poliúria noturna e/ou redução noturna da capacidade da bexiga, que dão origem à necessidade de esvaziamento durante o sono. Dificuldades superpostas de excitação e incapacidade de acordar resultam em enurese noturna. Dados de prevalência do mundo todo (inclusive a coorte brasileira apresentada por Mota et al. nesta revista) revelam que as taxas de enurese diminuem com a idade, de 9,7% aos sete anos para 5,5% aos 10 anos, sugerem fatores de atraso maturacional em algumas crianças.2,3 Isso leva a maioria dos pais a esperar que seus filhos “cresçam e superem” a enurese noturna. Entretanto, novos métodos estatísticos, com análise de classe latente longitudinal, mostraram em dois estudos de coorte populacionais prospectivos e historicamente distintos do Reino Unido (coorte de 1946 do MRC Health and Development; n=4.755 e coorte ALSPAC de 1991/2; n=10.818) que 34% dos casos de enurese aos quatro anos de idade são enuréticos persistentes aos 15 anos4 e 41% dos enuréticos aos 4,5 anos são persistentes aos 9,5 anos,5 respectivamente. Além disso, nesse último estudo, se a criança tem EN monossintomática ou não monossintomática aos 9,5 anos, as chances de enurese aos 14 anos (n=5.899) são de 3,5 e 23, respectivamente.6 Achados semelhantes de Hong Kong mostraram que havia uma forte associação entre disfunção de eliminação na infância e adolescentes e adultos com EM,7 i.e., não há garantia de que uma criança irá crescer e superar a enurese e a presença de STUI na infância é um forte preditor de EN na adolescência e na idade adulta.
A percepção das crianças sobre sua enurese é variável, alguns estudos mostram uma redução da autoestima em relação aos seus pares que se mantêm secos8,9 e outros que não mostram diferenças.10–13 Para crianças mais novas, parece que são os problemas físicos imediatos, por exemplo, ter que usar fraldas ou acordar com uma sensação de umidade, que constituem o principal aborrecimento percebido. Para adolescentes, a enurese resolvida e em andamento tem consequências psicossociais; na coorte ALSPAC (n=5,887), as consequências autorrelatadas para enurese anterior, que ocorreu entre 4‐9 anos, incluíram pior autoimagem, mais problemas com relacionamentos com colegas na escola e uma percepção mais negativa da escola aos 14 anos. Não é surpreendente o fato de que aquelas crianças de 14 anos que ainda tinham EN apresentassem níveis autorrelatados mais altos de autoimagem ruim, vitimização de colegas e, em meninas, depressão.14
Os pais têm respostas variáveis à EN de seus filhos, o que pode incluir tolerância, mas também raiva, frustração e punição,15,16 particularmente em crianças mais velhas e em pais menos instruídos. As taxas de punição variam de 2‐89% entre as culturas. No entanto, a punição é contraproducente e está associada a enurese infantil mais grave, escores depressivos e escores reduzidos de qualidade de vida relacionada à saúde.17 Outros estudos mostram que os escores de qualidade de vida são reduzidos tanto para as mães quanto para os filhos, independentemente da atitude dos pais.18 Certamente, a enurese pode afetar toda a família e a punição pode não vir apenas dos pais; sempre vale a pena explicar claramente que a enurese não é culpa da criança e defender a criança enurética, ao mesmo tempo em que se considera o fardo que pode ser imposto aos pais e a outros membros da família.
O tratamento de base envolve componentes comportamentais; os pais geralmente usam a restrição hídrica e acordam seus filhos para levá‐los ao banheiro durante o sono para tentar ajudar, embora essas atitudes tenham se mostrado minimamente eficazes em uma metanálise19 e prejudiciais em outra.20 Quando os pais vêm em busca dos profissionais de saúde para obter aconselhamento, os primeiros passos recomendados são, novamente, aqueles que envolvem mudanças comportamentais, como beber regularmente, ir ao banheiro etc.
Tratamentos subsequentes específicos de primeira linha envolvem o uso do alarme de enurese com adaptações comportamentais complexas e/ou uso de desmopressina, o que exige restrição rigorosa de fluidos e uso cronometrado antes do sono.21,22 Para crianças motivadas e aderentes, com pais tolerantes e apoiadores, esse tratamento é viável, geralmente bem‐sucedido e recompensador para todos os interessados. No entanto, o profissional de saúde deve estar ciente da importante mensagem contida no artigo de Mota et al.3 que concorda com outras séries do mundo todo: há uma forte associação entre transtornos psicológicos comórbidos e enurese noturna, com taxas duas a quatro vezes maior do que em não enuréticos.23 Além disso, idade mais velha, sexo masculino e EN não monossintomática e secundária são ainda mais fortemente associados a transtornos psicológicos comórbidos. Embora distúrbios internalizantes, como a ansiedade, estejam associados, a NE está mais fortemente associada a distúrbios de comportamento externalizantes e, em particular, ao transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Na coorte de Pelotas,3 a proporção de enuréticos com ENNM é maior do que a relatada em outras2,3 (isso pode ser devido ao fato de que sua definição inclui “distúrbios intestinais” que não são rotineiramente incluídos na definição da ICCS), mas suas associações são semelhantes. O que isso significa? A relação exata entre distúrbios comportamentais e incontinência infantil não está totalmente clara e as possibilidades incluem que a interrupção da incontinência noturna origine comportamentos psicológicos, o distúrbio psicológico em combinação com uma predisposição genética dê origem à incontinência e que eles são parte e parcela de uma mesma disfunção neurobiológica, ou que coexistam coincidentemente. De qualquer maneira, a presença de transtornos comportamentais comórbidos afetará as escolhas e os resultados do tratamento da EN e o profissional de saúde é aconselhado a investigar, observar e rastrear ativamente as crianças quanto a essas dificuldades e encaminhá‐las a um serviço apropriado, se indicado.23 Caso contrário, corremos o risco de aumentar as dificuldades da criança e o fardo dos pais.
Conflitos de interesseMembro da Drug and Safety Monitoring Board para Mirabegron com Astellas Pharma. Todas as quantias são pagas ao fundo de pesquisa do autor. Secretária‐geral da International Children Continence Society.