Os relatórios de saúde mais recentes da Organização Mundial da Saúde indicam que as taxas de mortalidade infantil foram reduzidas ao longo das últimas décadas em todo o mundo. Esse fato é devido principalmente à diminuição da mortalidade relacionada a algumas doenças agudas, como infecções respiratórias, diarreia e prematuridade.1 Por outro lado, o percentual de mortes infantis relacionadas a doenças crônicas é estável ou até mesmo crescente. Diversos estudos demonstraram que em alguns países a mortalidade infantil relacionada a condições crônicas é próxima de 50%.2,3
O crescente número de pacientes pediátricos com condições crônicas não somente acarreta aumento da mortalidade, mas também maior consumo de recursos de saúde em determinadas áreas de hospitalização, como unidades de terapia intensiva pediátrica (UTIP). O estudo publicado por O’Brien também indica que 46% dos pacientes internados em UTIPs apresentam pelo menos um problema crônico de saúde e esses pacientes apresentam maiores taxas de mortalidade e maior tempo de hospitalização.4 De acordo com nossa experiência, entre pacientes que necessitam de internações de longo prazo em UTIP, 81,9% deles apresentam diferentes condições crônicas.5
O estudo publicado nesta edição por Ramos et al. é o primeiro feito na região da América Latina que analisou a mortalidade em adolescentes e adultos jovens com doenças crônicas.6
Embora o estudo tenha algumas limitações, como o fato de ser retrospectivo e unicêntrico, ele compreende um longo tempo de observação e inclui uma grande coorte de pacientes. No entanto, do ponto de vista socioeconômico, a América Latina é uma região muito heterogênea e há importantes diferenças entre os diferentes sistemas nacionais de saúde no continente. Mais estudos internacionais multicêntricos são necessários para caracterizar a mortalidade em pacientes jovens com doenças crônicas. De qualquer maneira, essa condição retrospectiva e o longo período de observação permitiram descrever como a mortalidade diminuiu em um grupo muito específico de pacientes, como aqueles com HIV.6
Os autores compararam dois grupos diferentes de pacientes: adolescentes jovens (entre 10 e 14 anos) e adolescentes mais velhos/adultos jovens (entre 15 e 20 anos). Como esperado, os pacientes mais velhos tiveram um tempo de seguimento mais longo e maior número de internações anteriores. Outras diferenças entre esses grupos de pacientes são mais marcantes, como menor uso de cuidados paliativos e maior uso de terapias de substituição renal, drogas vasoativas e transfusões de hemoderivados no grupo de adolescentes jovens. Apesar de os autores assinalarem que o maior uso de cuidados paliativos nos pacientes mais velhos pode estar relacionado à alta frequência de doenças neoplásicas, não foram encontradas diferenças na taxa de doenças neoplásicas entre os grupos.6
O desenvolvimento de programas pediátricos de cuidados paliativos demonstrou diminuir a incidência e o tempo de internação hospitalar e, assim, os custos de assistência médica relacionados a pacientes pediátricos com doenças crônicas.7,8 Um estudo publicado recentemente por Connor et al. estima as necessidades de cuidados paliativos globais e específicos do país.9 Esse estudo estabelece uma taxa global de pacientes pediátricos que necessitam de cuidados paliativos de 43 por 10.000 crianças até 19 anos. Esse mesmo estudo indica que a taxa do Brasil está bem abaixo dessa, é de 27,2 por 10.000 crianças, uma taxa semelhante à de outros países da região, como a da Argentina (29,1 por 10.000).
O estudo de Ramos et al. analisa especificamente aqueles pacientes para os quais as informações da autópsia estavam disponíveis, compara seus resultados com os diagnósticos estabelecidos nos atestados de óbito.6 Vale ressaltar que 41,3% dos estudos pós‐morte mostraram discordância com o diagnóstico clínico pré‐morte. Entretanto, apenas uma pequena proporção (5,2%) dessas discordâncias pode ter afetado a sobrevida dos pacientes. É preciso ter cuidado antes de generalizar essa alta taxa de discordância entre diagnósticos clínicos e resultados de autópsia, já que apenas 11% dos pacientes tiveram a autópsia feita.
O estudo de Ramos et al. inclui apenas pacientes pediátricos com condições crônicas que morreram no hospital, mas devemos observar que uma proporção importante de pacientes com doenças crônicas morre em outros locais que não o hospital. Forjaz et al. estudaram os locais onde os pacientes pediátricos crônicos morreram em Portugal por um período de 25 anos (1987‐2011).3 Esse estudo mostra que em Portugal existe uma tendência crescente de que pacientes crônicos pediátricos morram em hospitais. Os autores deste estudo apontam como a principal causa dessa tendência a falta de desenvolvimento de programas específicos de cuidados paliativos pediátricos. Os estudos feitos em outros países mostram resultados semelhantes, com uma proporção maior de pacientes pediátricos com doenças crônicas que morrem em hospitais em comparação com aqueles que morrem em suas casas.10 Nesse sentido, é importante destacar o estudo de Håkanson et al., que compara o local de morte de pacientes pediátricos com doenças crônicas em 11 países.11
Em nível hospitalar, a morte de pacientes pediátricos com patologias crônicas pode ocorrer em áreas de hospitalização e situações clínicas muito diferentes. O trabalho de Ramos et al. descreve especificamente a taxa de pacientes que necessitam de cuidados intensivos durante sua última hospitalização, essa taxa é alta (entre 47% e 60%) e mais alta ainda no grupo de pacientes mais jovens.6 No entanto, além da localização e medidas de apoio durante o período anterior à morte, alguns aspectos muito importantes referentes ao modo como os pacientes morreram não foram estudados.
Meert et al. analisaram causas de morte em UTIPs de sete centros nos EUA. Este estudo mostra que 83% dos pacientes que morreram após a limitação do apoio e 81% dos que morreram após a retirada do tratamento tinham uma doença crônica, enquanto essa proporção diminuiu para 70% e 29% entre os pacientes que morreram após a falha da ressuscitação cardiopulmonar ou por morte cerebral, respectivamente.12
Outro estudo unicêntrico feito nos EUA constatou que 53,3% das crianças e adultos jovens com doenças crônicas ocorreram em UTIPs, que 27,9% dos pacientes receberam cuidados intensivos nos últimos dois dias de vida, mas em 50% dos pacientes a morte ocorreu após a retirada de medidas vitais de apoio.10
Em relação às causas de doenças crônicas nos pacientes estudados por Ramos et al., o câncer foi responsável por mais de 50% dos pacientes, embora essa patologia tenha sido a causa básica da morte em apenas 27% dos pacientes.6 Por outro lado, é digna de nota a existência de uma pequena porcentagem (5%) de pacientes com doenças reumatológicas e o fato de que patologias neurológicas não constituem uma porcentagem importante de pacientes, como indicado por outros autores.6 No estudo de DeCourcey et al., 23,7% dos pacientes apresentavam doenças progressivas do sistema nervoso central, 16,7% encefalopatia não progressiva e 11,4%, doenças neuromusculares.10
Portanto, o estudo de Ramos et al. destaca a necessidade de abordar a questão da patologia crônica na faixa etária pediátrica. Estudos multicêntricos prospectivos que analisem a mortalidade, causas e principalmente a forma da morte em pacientes pediátricos agudos e crônicos são necessários para caracterizar a morte na população pediátrica. Esses estudos podem permitir o aprimoramento da atenção que o paciente que está morrendo recebe, adaptar os recursos socioeconômicos e de cuidados da saúde às necessidades específicas de cada região.
Como Suttle et al. assinalam,13 também é necessário que os médicos que atuam em unidades onde os pacientes pediátricos morrem tenham treinamento adequado e conhecimento sobre as recomendações e políticas atuais. O cuidado adequado dado a esses pacientes deve ser fornecido não apenas do ponto de vista médico, mas também do psicossocial, tanto para os pacientes quanto para suas famílias. Da mesma forma, é muito importante que os prestadores de cuidados de saúde tenham um treinamento adequado sobre questões éticas e legais relacionadas aos cuidados no fim da vida de pacientes pediátricos.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.