O isolamento original do vírus zika (ZIKV), membro do gênero Flavivirus da família Flaviviridae, foi obtido em 1947 do sangue de um macaco rhesus febril exposto na floresta Zika próximo do Lago Vitória nas cercanias de Entebbe, a capital de Uganda.1 O ZIKV foi isolado também de mosquitos silvestres na mesma área e mais tarde esporádicos casos febris humanos foram atribuídos ao ZIKV em Uganda e em outros países da África Ocidental e Oriental. Posteriormente, nos anos 1960, o ZIKV foi detectado na Ásia e o vírus foi isolado de mosquitos Aedes aegypti inicialmente na Malásia e depois em vários países da Ásia. Isso mostrou que esse arbovírus também ocorria fora do continente africano.2 Essa nova faceta do ZIKV, ou seja, de causar doença epidêmica transmitida por Aedes aegypti, mostrou um novo marco na epidemiologia dessa arbovirose. Ficou claro que o ZIKV havia conseguido se adaptar a um velho conhecido dos humanos, o Aedes aegyti, transmissor da febre amarela urbana, dos quatro sorotipos do dengue, do vírus Chikungunya e de outros mais arbovírus na Ásia e na África.
Desde a década de 1960 têm sido relatados casos esporádicos de infecção pelo vírus zika em humanos3 e face a esse padrão de ocorrência esporádica e sem gravidade pouca importância foi dada a essa arbovirose, até que ocorreu uma epidemia de febre zika na ilha Yap, na República da Micronésia, em 2007, com a descrição de uma síndrome febril exantemática de leve intensidade e um elevado percentual de assintomáticos.4 A esse episódio na ilha Yap seguiram‐se outros mais na região do Oceano Pacífico da Polinésia e em alguns países do Sudeste da Ásia, com surtos confirmados por sorologia ou PCR para o vírus zika nas ilhas da Páscoa, Salomão, Cook, Indonésia, Malásia, Tailândia e na Polinésia Francesa.5–7 Nessa última, estudos epidemiológicos retrospectivos sugerem a ocorrência de aproximadamente 30.000 infecções e observaram‐se pela primeira vez os casos de síndrome de Guillain‐Barré (SGB) associada às infecções pelo ZIKV e a notificação dos primeiros casos de transmissão perinatal,8 o que alertou para o potencial das complicações das infecções congênitas por arbovírus, com base em relatos anteriores de encefalopatia, febre hemorrágica, óbito fetal, dentre outros, associados aos vírus chikungunya e dengue. Na análise retrospectiva dos nascidos vivos desse surto na Polinésia, foram identificados de março de 2014 a maio de 2015 17 casos de malformações do sistema nervoso central, incluindo microcefalia, em fetos e recém‐nascidos. Nenhuma das gestantes relatou sinais de infecção pelo vírus zika, mas em quatro testadas foram encontrados anticorpos (IgG) para flavivírus em sorologia, o que sugeriu infecção assintomática.9 Do mesmo modo que no Brasil, as autoridades de saúde da Polinésia Francesa acreditam que o vírus zika pode estar associado às anomalias congênitas, caso as gestantes sejam infectadas durante o primeiro ou segundo trimestre de gestação.
Com a confirmação dos primeiros casos de febre zika no Brasil em maio de 2015, inicialmente nos estados do Nordeste,10 observou‐se uma rápida dispersão do vírus para as outras regiões do país e seguiu‐se o aumento expressivo das notificações de recém‐nascidos com microcefalia no Sistema de Informação de Nascidos Vivos (Sinasc), com o registro de 141 casos suspeitos de microcefalia em novembro de 2015, no Estado de Pernambuco, e depois foi detectado um excesso de números de casos em outros estados do Nordeste (Paraíba e Rio Grande do Norte), além dos registros de abortos espontâneos e natimortos. Frente a esse novo cenário, o Ministério da Saúde do Brasil declarou o evento como de emergência em saúde pública de importância nacional.11 Constatou‐se ainda que os primeiros meses de gestação das crianças que nasceram com microcefalia corresponderam ao período de maior circulação do vírus zika na região Nordeste e que não havia correlação com histórico de doença genética na família ou exames com padrão de outros processos infecciosos conhecidos.
O nexo causal foi feito pelo Instituto Evandro Chagas (IEC), do Ministério da Saúde, ao isolar o ZIKV do cérebro e ao fazer a detecção desse vírus no LCR, cérebro e nos fragmentos de várias vísceras (coração, pulmão, fígado, baço e rim) de um recém‐nascido que evoluiu a óbito logo após o nascimento.11 Posteriormente, esses resultados foram reforçados com a detecção de anticorpos IgM para ZIKV no LCR de 12 crianças que nasceram com microcefalia. Todos os exames para outros agentes infecciosos associados ao que clinicamente é conhecido como síndrome Torch [toxoplasmose (tuberculose), outras infecções, rubéola, citomegalovírus, herpes simples 1 e 2], bem como para dengue e chikungunya foram negativos (Azevedo et al., 2016; comunicação pessoal).
Outra contribuição importante para elucidar a relação causal foi a identificação do vírus zika no líquido amniótico de duas gestantes da Paraíba com histórico de doença exantemática e fetos com microcefalia detectados na ultrassografia fetal.12 A partir desse achado, estudos adicionais foram feitos, o que possibilitou o sequenciamento completo do vírus isolado do líquido amniótico. A análise filogenética revelou que o vírus compartilha 97‐100% da sua identidade genômica com a linhagem asiática isolada no surto da Polinésia Francesa e que a presença do genoma viral nos pacientes por algumas semanas após a fase aguda sugere que a carga viral intraútero resulta da replicação persistente.13 Acrescem‐se a essas evidências a identificação do genoma do vírus zika em células da placenta em um aborto na 8ª semana, por meio de técnicas de RT‐PCR em tempo real, o que reforça o potencial da transmissão placentária.14
Recentemente foram confirmadas pelo CDC a presença do vírus por RT PCR e imuno‐histoquímica no tecido cerebral de quatro recém‐nascidos com microcefalia e/ou malformações graves cerebrais que evoluíram para o óbito após o nascimento e nas placentas de fetos abortados na 12ª semana de gestação.15 Achados similares foram identificados por Mlakar et al.,16 que identificaram o genoma viral no cérebro e na placenta de um feto produto de aborto na 32ª semana e que apresentou múltiplas lesões cerebrais e retardo de crescimento intrauterino detectados a partir da 29ª semana de gestação, o que confirma o neurotropismo do vírus com possível persistência viral no tecido cerebral e o grave comprometimento placentário.
A par disso, acumulam‐se evidências de que além do cérebro os olhos seriam o outro órgão‐alvo do vírus zika, como já observado em crianças com microcefalia e a presença de alterações oculares (atrofia macular),17 e mais recentemente as lesões maculares e perimaculares com atrofia do nervo óptico18 descritas em dez crianças com microcefalia durante o surto de zika em Salvador, BA.
Face à gravidade da situação, à rápida disseminação do ZIKV pelo continente americano, às dificuldades de diagnóstico para uma arbovirose emergente nas Américas e o risco elevado de o vírus se espalhar por outros continentes, a OMS declarou a epidemia causada pelo ZIKV como um evento de importância em saúde pública internacional, em consonância do regulamento sanitário internacional, e convocou um comitê de emergência. A divulgação da nota da OMS seguiu‐se de uma descrição do evento.19
Uma das grandes limitações a ser superada é a ausência de testes sorológicos e moleculares comerciais para o diagnóstico do ZIKV, já que os testes in house hoje existentes são limitados aos laboratórios de referência, que não têm como suprir os laboratórios de saúde pública. De fato, é urgente a necessidade de desenvolvimento de testes rápidos (imunocromatográficos), testes sorológicos (IgM‐ e IgG‐ Elisa) e moleculares para o pronto diagnóstico da infecção pelo ZIKV, especialmente nos grupos mais vulneráveis, quais sejam, gestantes e portadores de condições autoimunes e doenças crônicas.20 Há registros recentes de mortes em portadores de doenças crônicas, lúpus, anemia hemolítica, anemia falciforme e outros mais, o que faz com que se deva priorizar esses grupos para o acesso ao diagnóstico da infecção pelo ZIKV.
Há uma clara necessidade de fortalecimento das ações antivetoriais, que é a única medida concreta que hoje temos para diminuir os casos de infecções pelo ZIKV. É urgente que ações concretas sejam feitas em todos os níveis públicos e com o envolvimento da sociedade para reduzir os índices de infestação vetorial, pois ao se reduzir a quantidade de vetores se reduzirão as taxas de incidência e obviamente os casos de microcefalia e outras malformações congênitas.
O Ministério da Saúde do Brasil tomou a decisão política de desenvolver uma vacina contra o ZIKV. Em relação a esse assunto, são várias as abordagens possíveis para o desenvolvimento de uma vacina para prevenir as infecções pelo ZIKV, que e incluem: vacina de vírus inativado, vacina de vírus vivo atenuado, vacina de vírus vivo quimérica, vacina de DNA e vacina de subunidade. Certamente que as vacinas de subunidade e de DNA são as que não apresentam riscos para as gestantes e os grupos especiais e podem ser obtidas rapidamente, o mesmo ocorre com a vacina de vírus inativado. É importante assinalar, no entanto, que qualquer que seja a formulação adotada, os testes pré‐clínicos e clínicos de fases I, II e III tomarão alguns anos até que se tenha um produto licenciado para uso em humanos.
Em conclusão, a emergência de um arbovírus “quase desconhecido” e sua associação causal com diferentes quadros clínicos e com gravidade especialmente em fetos e em adultos portadores de imunodepressão e autoimunidade abre um leque de oportunidades para muitos estudos, mas as perspectivas de disseminação desse arbovírus por outros continentes, num mundo globalizado, requerem uma pronta resposta coordenada pela OMS, mas com o aval e o apoio financeiro de todos os Estados‐membros e da sociedade civil do mundo.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
Como citar este artigo: Oliveira CS, da Costa Vasconcelos PF. Microcephaly and Zika virus. J Pediatr (Rio J). 2016;92:103–5.