Na última década, foram publicados aproximadamente 15 ensaios clínicos controlados e randomizados (RCTs) a respeito do debate sobre fluidos de manutenção isotônicos em comparação com os hipotônicos, dos quais o último é o de Valadão et al.,1 publicado nesta edição do Jornal de Pediatria. Esses pesquisadores fizeram um RCT centralizado duplo‐cego que comparou uma solução isotônica (150 mEq/L ou, basicamente, uma solução de NaCl a 0,9%) com uma solução hipotônica de 30 mEq/L (NaCl a 0,2%) em crianças submetidas à apendicectomia do momento da internação até 48 horas após a operação, devido à preocupação de que as crianças submetidas a cirurgia se encontre em risco específico de hiponatremia hospitalar. Com 50 pacientes incluídos no protocolo (23 e 27 em cada grupo, respectivamente), não encontraram diferença estatisticamente significativa no sódio sérico entre os dois grupos nas 24 ou 48 horas. Também não observaram diferença nos resultados secundários de hipervolemia nem outros distúrbios eletrolíticos. Os autores concluíram, portanto, com base nesses resultados, que as soluções hipotônicas ou isotônicas são adequadas para as escolhas de fluidos intravenosos de manutenção em crianças submetidas à apendicectomia.
A história do debate acerca da escolha mais adequada de fluidos intravenosos de manutenção em crianças evoluiu de relatos de casos preocupantes e estudos observacionais nos anos 1990 e impulsionou revisões com base em pareceres no início dos anos 2000 que sugeriram um potencial nocivo de encefalopatia hiponatrêmica e mortalidade com fluidos hipotônicos.2 Aqueles a favor de soluções isotônicas argumentaram que fluidos que contêm maior quantidade de sódio e, portanto, maior tonicidade diminuem o risco de hiponatremia iatrogênica e suas sequelas no contexto de incapacidade de excretar água livre,3 ao passo que aqueles a favor de soluções hipotônicas argumentaram que a hiponatremia iatrogênica está relacionada à administração de um volume excedente de fluidos, e não a um efeito dilucional do livre consumo de água, e que o fluido isotônico aumenta o risco de hipernatremia.4 As conclusões de especialistas na área no momento foram, invariavelmente, um alerta em busca de evidências mais rigorosas nessa importante área antes de recomendações mais definitivas sobre como as práticas seguras de fluidos podem ser feitas.5,6 Posteriormente, um número cada vez maior de ensaios clínicos controlados e randomizados (RCTs) e no mínimo seis análises e metanálises sistemáticas publicados nos últimos 10 anos nos forneceram maior quantidade de evidências para encerrar esse debate.5,7‐10 Os achados e as conclusões desse conjunto de evidências foram coerentes. Comparadas com fluidos de manutenção hipotônicos, as soluções isotônicas reduzem significativamente o risco de hiponatremia iatrogênica, principalmente nas primeiras 24 horas após a administração, com algumas evidências de que essa redução persiste até 48 horas.10,11 As soluções isotônicas protegem contra a hiponatremia sem um grande risco de hipernatremia em pacientes clínicos e cirúrgicos, bem como crianças grave e não gravemente doentes.10,12 Embora haja menos ensaios clínicos que comparem o efeito do volume de fluido com o aumento de tonicidade, a evidência até o momento também sugere que a hiponatremia iatrogênica está relacionada à tonicidade da solução de manutenção, e não ao volume.13 Em outras palavras, restringir a ingestão de fluidos hipotônicos não protege contra a hiponatremia em comparação com soluções isotônicas. Na verdade, restringir o volume da ingestão de fluido isotônico, embora reduza o risco de hiponatremia, pode não evitar sua ocorrência.11 Desde que a revisão Cochrane desse assunto foi publicada em dezembro de 2014 e incluiu dez RCTs em 970 crianças, mais cinco RCTs foram publicados, além do teste de Valadão et al.,1 e envolveram mais de 1.100 pacientes.11,12,14‐16 O número de crianças incluídas em ensaios clínicos que comparam fluidos hipotônicos a isotônicos mais que dobrou no ano passado e esse número continua a fortalecer a evidência a favor das soluções isotônicas. Ao contrário das recomendações originais de Holliday e Segar e das preocupações propostas anteriormente,4 os fluidos isotônicos provaram ser seguros e estar associados a uma redução no risco de hiponatremia hospitalar. Sugeriu‐se que essa redução no risco pode, na verdade, ser subestimada, pois muitos estudos até o momento excluíram pacientes com hiponatremia no início do período.8
Então, por que os resultados do ensaio1 de Valadão et al. são contrários a essa evidência? Embora os autores concluam que seus resultados sugerem que não há aumento no risco com ambos os tipos de fluido, advertimos contra essa interpretação com base no tamanho de sua amostra. Esse foi um pequeno estudo não projetado para o primeiro resultado declarado. Houve três e quatro saídas em cada grupo; como essa não era a intenção de tratar a análise, a contribuição para os resultados não é clara. Uma diferença entre os grupos pode não ter sido detectada, pois o momento das medições de sódio sérico foi 24 e 48 horas após a cirurgia (não a intervenção) e a hiponatremia normalmente é relatada em até 24 horas da intervenção.10,12 Ambos os grupos também receberam uma quantidade significativa de fluidos isotônicos antes e durante a operação, o que possivelmente diluiu sua capacidade de detectar uma diferença no sódio sérico. Comparar a média do sódio sérico nessa pequena amostra, em vez da incidência de hiponatremia, pode não ser o resultado mais adequado para avaliar a segurança do fluido hipotônico em comparação com o fluido isotônico se considerarmos uma regressão no viés médio.17 A única diferença significativa detectada entre os dois grupos para as quais os autores chamam nossa atenção é o maior equilíbrio de fluidos antes da operação no grupo hipotônico, que eles sugerem, em sua discussão, ter contribuído para a hiponatremia no início do período. Contudo, como a duração da intervenção foi 48 horas após a cirurgia e seus dados não mostraram diferença na ingestão ou no equilíbrio de fluido pós‐operatório, essa observação pode ter sido uma casualidade.
Embora o sódio sérico não tenha sido significativamente diferente nos dois grupos, a hiponatremia se desenvolveu em vários pacientes após exposição a fluidos hipotônicos, assim como isotônicos, e em pacientes normonatrêmicos no início. É importante observar que metade (n=24) dos participantes desse teste era hiponatrêmico no início, dos quais 15 (62,5%) normalizaram seu sódio sérico durante o período do estudo, independentemente da solução administrada. Contudo, a proporção de pacientes com hiponatremia em cada grupo no início não é clara. Isso ilustra que o equilíbrio de sódio não é simplesmente influenciado pela captação de sódio e pela tonicidade de fluidos intravenosos de manutenção, porém é multifatorial. O efeito dilucional de um equilíbrio positivo de água livre depois da administração e/ou a capacidade prejudicada de excretar água livre como resultado da excreção não osmótica do hormônio antidiurético (ADH) e a hiponatremia translocacional com aumento na diferença osmolar podem ser os mecanismos responsáveis.18 Infelizmente, sem medições de ADH, osmolaridade urinária e eletrólitos neste estudo, não podemos explicar completamente os possíveis mecanismos para os resultados observados.
Apesar de recomendar aos autores que façam esse teste, advertimos os leitores a não concluírem, com base na falta de diferença evidente, que as soluções hipotônicas são tão seguras quanto as soluções isotônicas. As principais evidências até hoje indicam que as soluções de manutenção isotônicas são mais seguras do que os fluidos hipotônicos na proteção contra hiponatremia hospitalar moderada a grave em pacientes pediátricos clínicos e cirúrgicos. Se a hiponatremia fosse puramente um problema de diluição, então todas as soluções hipotônicas deveriam ser abandonadas. Embora o fluido isotônico não seja a única solução para corrigir o baixo nível de sódio, certamente é a escolha empírica mais segura. As preocupações quanto ao potencial de dano associado ao fluido intravenoso com menos de 77mmol/L, juntamente com um conjunto cada vez maior de evidências de ensaio clínico, resultaram em uma mudança na prática e nas diretrizes clínicas nacionais.19 Nosso próximo debate é sobre que fluido isotônico é melhor, uma solução salina equilibrada ou NaCl a 0,9%.20 Até hoje, os estudos não avaliaram o potencial de acidose metabólica hiperclorêmica quando fluidos isotônicos são administrados a taxas de manutenção. Essa é uma sequela bem reconhecida da expansão de volume com solução salina a 0,9% e uma preocupação cada vez maior, se considerarmos sua possível associação com morbidez e mortalidade na população gravemente doente.21 Destacamos que não há solução ideal que possa garantir a correção das anormalidades eletrolíticas. A individualização das prescrições de fluidos de acordo com a fisiologia do paciente, a vigilância com monitoramento e o ajuste posológico da composição e do volume do fluido de acordo com os objetivos terapêuticos são componentes essenciais das práticas seguras com fluidos intravenosos em crianças.
Conflitos de interesseAs autoras declaram não haver conflitos de interesse.