A má nutrição no útero ou durante a primeira infância está relacionada a doenças crônicas ao longo da vida, um conceito atualmente denominado “Origens Desenvolvimentistas da Saúde e da Doença” (DOHAD).1 Considerando os desafios ao estudo das mudanças fisiológicas em crianças, os cientistas e órgãos reguladores normalmente baseiam‐se em estudos com animais e/ou estudos clínicos com humanos para aprimorar seu entendimento sobre as adaptações físicas que poderão favorecer os possíveis mecanismos de DOHAD. O trabalho de Alves et al.,2 nesta edição do Jornal de Pediatria, é um ótimo exemplo da pesquisa necessária para avançar nesse campo. Ainda assim, é importante enquadrar os resultados apresentados em um contexto científico e metodológico adequado para obter um entendimento claro de seu impacto sobre a ciência e a política de nutrição, bem como sobre as práticas pediátricas.
O retardo do crescimento grave o bastante para causar baixa estatura (altura por idade inferior a dois desvios‐padrão de uma população de referência, escore‐z de altura por idade (HAZ) < –2,0) é o principal resultado da desnutrição crônica e ocorre mais frequentemente no útero e/ou nos primeiros dois anos de vida, a “janela crítica” de crescimento.3 Nos primeiros 30 meses de crescimento e desenvolvimento, células, órgãos e sistemas específicos poderão ser afetados de forma diferente pela desnutrição, dependendo do ponto específico e do tamanho da restrição de energia e/ou nutrientes. De fato, o ambiente nutricional nessa “janela crítica” é o principal determinante do crescimento, ao passo que o ambiente nutricional após os dois anos de idade influencia principalmente a composição corporal, mais que os parâmetros de crescimento e desenvolvimento. Basicamente, uma criança na idade de dois anos encontra‐se em um momento em que a energia e os nutrientes que anteriormente eram direcionados ao crescimento são, agora, direcionados ao peso e à composição corporal, criando, assim, o ambiente alimentar que permitirá que possíveis adaptações da restrição de energia anterior se manifestem.
Os estudos sobre a relação entre baixa estatura e doenças crônicas iniciaram na metade dos anos 1990, quando Popkin et al.4 relataram que adultos que tiveram baixa estatura quando adolescentes tinham mais chances de estarem acima do peso que seus pares com estatura normal. Os dados de duas coortes longitudinais sugerem que o retardo do crescimento na infância predispõe uma criança a desenvolver obesidade ou ficar acima do peso na segunda infância ou na vida adulta.5,6 Contudo, alguns estudos constataram que a baixa estatura não está relacionada à adiposidade em um período posterior da vida.7,8 Apesar de esses estudos parecerem contraditórios, é importante considerar que as adaptações biológicas nem sempre se manifestam sem algum estímulo ambiental, como o consumo de açúcar refinado cada vez maior ou o balanço energético positivo crônico, condições mais comumente associadas à “transição nutricional” que acompanha o desenvolvimento econômico.9 As diferenças no nível de desenvolvimento socioeconômico que causam um ambiente “obesogênico” poderão limitar as adaptações fisiológicas e fazer com que se manifestem como massa de gordura em excesso ou obesidade. Mesmo assim, ainda existe a falta de um mecanismo biológico para explicar a relação entre a baixa estatura e doenças crônicas.
Um possível mecanismo, conforme mencionado no trabalho de Alves et al.,2 é uma adaptação no metabolismo lipídico. Em 2000, relatamos que as crianças com baixa estatura das favelas de São Paulo, Brasil, metabolizavam lipídios a uma taxa menor em comparação a crianças com estatura normal do mesmo ambiente socioeconômico, independentemente da alimentação e de outros fatores de confusão.10 Um estudo semelhante realizado com homens do Hertfordshire Cohort, na Inglaterra, constatou que os homens que sofreram restrição do crescimento intrauterino tinham uma taxa menor de oxidação de lipídios em comparação aos homens nascidos com peso normal.11 Por fim, um estudo que combinou nutrição humana e antropologia foi realizado com adultos buriatas, no sul da Sibéria, que sofriam de desnutrição sazonal após o colapso da União Soviética.12 As crises repetidas de insegurança alimentar e crescimento físico deficiente foram tão graves que a geração nascida nesse período se tornou mais baixa na vida adulta que seus pais. Os estudos metabólicos dessa geração constataram que os adultos que eram significativamente mais baixos que seus pares tinham uma taxa menor de oxidação de lipídios, independentemente da composição corporal. Assim, com base nesses três estudos com humanos de áreas geográficas e socioeconômicas bem diferentes, uma observação coerente é a de que as pessoas que tiveram algum grau de retardo do crescimento no útero ou no desenvolvimento infantil apresentam um perfil metabólico que favorece a acumulação de gordura quando cometem excessos alimentares. De fato, as crianças com baixa estatura e oxidação da gordura prejudicada ganharam mais gordura central em um período de acompanhamento de quatro anos, independentemente da massa de gordura total e do estado puberal.13
No que se refere à relação entre o crescimento deficiente e outros aspectos do metabolismo lipídico, os estudos epidemiológicos relataram que os adultos que tiveram retardo do crescimento intrauterino têm mais chances de apresentar perfis lipídicos aterogênicos e sofrer de doença cardiovascular que os adultos que se desenvolveram normalmente.14,15 Talvez o achado mais significativo de Alves et al.2 tenha sido o fato de que, apesar de se beneficiarem de um programa de tratamento intensivo, as crianças estudadas tinham experimentado melhoras em seus perfis lipídicos apenas em alguns, não todos, os parâmetros analisados. Também foi considerada, de forma astuta, uma hipótese de que as concentrações de tireoglobulina (TG) cada vez maiores poderiam ser o resultado da expressão de lipoproteína lipase (LPL). Essas observações garantem que a atenção e os dados explícitos apresentados devem ser estudados ainda mais para desenvolver uma análise mais abrangente da natureza dos perfis lipídicos dos indivíduos, incluindo uma comparação com um grupo de controle saudável de crianças e/ou incluindo medidas de fatores dietéticos que poderão contribuir para concentrações plasmáticas de lípidios. Florencio et al.16 constatou que mulheres baixas e obesas têm concentrações de colesterol total e lipoproteína de baixa densidade (LDL) significativamente maiores em comparação a mulheres obesas com estatura normal. Recentemente, relatamos que crianças de três a quatro anos de idade com estatura baixa, de uma coorte em um estudo sobre educação nutricional maternal, tinham concentrações de colesterol total significativamente maiores em comparação a crianças com estatura normal. Esses resultados foram obtidos independentemente de sexo, escolaridade maternal, IMC maternal, histórico de amamentação e circunferência da cintura da criança e persistiram mesmo quando o corte para definição de uma criança com retardo do crescimento foi diminuído para HAZ de ‐1,62.17 Considerado como um todo, um corpo de literatura cada vez maior atualmente aponta a desnutrição infantil como uma doença que poderá predispor um indivíduo a não ser saudável ou mesmo ter perfis lipídicos sanguíneos aterogênicos. Considerando que o período entre a concepção e os dois anos de idade é fundamental para o desenvolvimento e estabelecimento de parâmetros para o metabolismo lipídico, uma relação entre o baixo crescimento fetal e infantil e doenças cardiovasculares é certamente plausível.
Há vários mecanismos, bioquímicos ou epigenéticos, que poderão explicar a relação entre o retardo do crescimento e as adaptações no metabolismo lipídico. Especificamente, os dados de estudos com animais sugerem que a desnutrição durante o período gestacional cause alterações no metabolismo lipídico e alterações estruturais no fígado.18–20 Cong et al. constataram que filhotes de ratos de mães em dieta com restrição de proteínas tinham fígados de peso menor, em comparação aos nascidos de mães com nutrição adequada.18 Talvez mais importante, os filhotes nascidos de mães com deficiência de proteína tinham genes de 3‐hidróxi‐3‐metilglutaril‐coenzima A redutase (HMGCR) que se encontravam hipometilados, uma doença que permite a ativação da transcrição do gene HMGCR, resultando em uma superexpressão da proteína e síntese aprimorada do colesterol basal. Um estudo extraordinário de Sohi et al. observou que os filhotes de rato nascidos de mães em dieta sem proteínas eram hipercolesterolêmicos no nascimento e durante o desenvolvimento infantil.19 As alterações epigenéticas na mesma ninhada de filhotes incluíram maior metilação das histonas no promotor do colesterol 7‐α‐hidroxilase, resultando em uma expressão inferior do gene, permitindo menor diminuição do colesterol e hipercolesterolemia. Entretanto, ao mesmo tempo em que alguns dados justificam claramente que a privação nutricional no útero transmite alterações epigenéticas que causam perfis lipídicos aterogênicos, o conjunto das pesquisas disponíveis ainda é ambíguo.
A pesquisa citada fornece evidência razoável de que a desnutrição infantil está relacionada a elementos de um perfil lipídico “não saudável”, porém é fundamental que sejam desenvolvidos estudos futuros para explorar ainda mais os possíveis mecanismos por trás dessas relações, nos níveis bioquímico e fisiológico, com atenção restrita ao projeto do estudo e à análise dos dados. Existem vários modelos estatísticos de fácil uso para refinar nosso entendimento dos dados coletados por meio de projetos complexos. Por exemplo, é absolutamente imperativo que os possíveis fatores de confusão sejam identificados e abordados na fase de projeto (por meio de randomização) ou de análise (usando regressão linear ou outras análises avançadas). Além disso, os dados longitudinais são especialmente difíceis de serem analisados por meio de abordagens estatísticas padrão, já que o número de participantes muda em momentos específicos e as principais variáveis, como os níveis hormonais, podem mudar de acordo com a idade das crianças. Portanto, é importante limitar o potencial de resultados errôneos que poderão surgir devido ao uso de técnicas estatísticas menos robustas para análises longitudinais. Uma possível técnica seria o uso de análises “ao longo da vida”.21 Uma característica importante das técnicas “ao longo da vida” é que as medidas de diferentes variáveis em um período de tempo (por exemplo, peso ao nascer e composição corporal), bem como as medidas repetidas das mesmas variáveis (por exemplo, peso corporal, perfis lipídicos ou estatura) são adequadamente modeladas nas análises. Simplesmente, os fatores mais distantes do resultado (por exemplo, peso ao nascer) não são tratados de maneira independente, mas como modificadores dos fatores próximos ao resultado (por exemplo, composição corporal). A incorporação da coleta de dados adicionais e o uso de análises estatísticas avançadas garantirão que se possa chegar a conclusões sólidas a partir desses tipos de estudos.
As implicações do trabalho apresentado são vastas e importantes, considerando que aproximadamente 171 milhões de crianças no mundo têm baixa estatura.22 O fato de a maioria das crianças com baixa estatura não recuperar a altura é secundário às observações de que a baixa estatura seja um fator de risco para doenças metabólicas crônicas em um período posterior da vida. Essa realidade é complicada, já que os fatores econômicos, sociais e nutricionais iniciais que influenciam no crescimento de uma criança (como dieta inadequada, baixa escolaridade maternal, baixa renda ou falta de saneamento) estão, por sua vez, positivamente relacionados ao grau de crescimento deficiente (como falta de cognição, capacidade física reduzida e pobreza contínua). O “ciclo vicioso” da baixa estatura e pobreza normalmente é intergeracional23 e poderá ser percebido como uma “armadilha nutricional” da qual uma pessoa ou família não consegue escapar sem grandes mudanças estruturais, que incluem melhor saneamento, oportunidades educacionais reais e ampla assistência médica, ou, basicamente, os direitos humanos fundamentais. Se os direitos humanos não são fortes motivadores suficientes, então a produtividade econômica deve ser considerada como o segmento de uma sociedade com grande risco de baixa estatura e também o segmento que atenderá aos setores industriais e de serviços cada vez maiores de muitos países.24 Assim, para economias transitórias, ter uma população de adultos com risco de doenças caras e crônicas é uma questão econômica e de saúde.
Em conclusão, os cientistas que estudam DOHAD ainda estão longe de qualquer consenso real quanto aos mecanismos precisos que explicam a relação entre o crescimento deficiente e as doenças crônicas. Alves et al.2 apresentam dados importantes que avançam no campo ao explorarem as alterações nos perfis lipídicos de crianças com baixa estatura após o tratamento da desnutrição. Ademais, esses dados complementam os estudos existentes ao expandirem a possível esfera em que o crescimento deficiente poderá alterar os processos metabólicos normais que aumentam o risco de doenças crônicas em um período posterior da vida. Por fim, ao mesmo tempo em que as implicações científicas e sociais do trabalho são importantes, é igualmente importante reconhecer a validação do programa de tratamento desenvolvido e implementado pelos centros de recuperação e educação nutricional, onde crianças desnutridas estão se recuperando e possivelmente escapando do “ciclo vicioso” de crescimento deficiente e pobreza.
Conflitos de interesseO autor publicou manuscritos anteriormente e é um colaborador ativo, juntamente com um dos coautores deste trabalho, porém o trabalho de Alves et al.2 é independente de suas colaborações anteriores ou atuais.