Mensurada em anos de vida ajustados à deficiência, um décimo da carga de doença pode ser atribuído a fatores de risco alimentares e ao sedentarismo, superando a contribuição de consumo de tabaco, hipertensão ou qualquer outro fator de risco de predisposição.1 Em especial, a baixa ingestão de frutas e verduras está associada à maior ocorrência de doenças cardiovasculares2 e determinados tipos de câncer,3 representando, juntos, 6,7 milhões de óbitos anualmente em todo o mundo.1 Muito do que impulsiona o alto volume de morbidez e mortalidade globais atribuído à ingestão inadequada de frutas e verduras é persistência com a qual padrões de consumo recomendados não são seguidos.
Em países ricos e pobres, a maioria dos adultos não consume as cinco porções diárias de frutas e verduras recomendadas pela Organização Mundial de Saúde. Em todos os 52 países de rendas baixa e média, quase 80% dos adultos ficam aquém de cinco frutas ou verduras por dia,4 e, da mesma forma, estão os adultos canadenses5 e norte‐americanos.6 A maioria dos adultos também não atinge os níveis recomendados de ingestão de frutas e verduras no Brasil; os menos favorecidos socioeconomicamente são mais propensos a se tornarem adeptos.7 Dentre crianças e adolescentes brasileiros, estudos recentes apontaram valores nutricionais desanimadores para o consumo de frutas e verduras: apenas 2,7% das crianças entre 6‐10 anos de idade atingiram cinco porções combinadas por dia no sul do Brasil;8 a frequência de consumo de verduras ficou muito aquém daquela de refrigerantes, doces, bolos e bolachas por adolescentes em todo o país.9 Esse é um problema complexo, com raízes profundas nas forças econômicas mundiais que determinam o custo, a acessibilidade e a comercialização de alimentos saudáveis e não saudáveis, tanto quanto é uma questão de comportamento dos consumidores e de tomada de decisão pessoal.10
Estabelecendo hábitos na infância e adolescênciaNa última edição do Jornal de Pediatria, Valmórbida & Vitolo,11 pesquisadores da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (USCSPA), apresentaram outras notícias não esclarecedoras. Das 388 crianças de baixa renda em idade pré‐escolar estudadas no sul do Brasil (idades entre 2‐3 anos), para frutas e verduras, a maioria não atingiu nem mesmo uma porção diária, e muito menos as três porções recomendadas para essa faixa etária, referência atingida por apenas 9% de sua população estudada para frutas e por apenas uma criança para verduras. É impressionante como os hábitos alimentares das crianças parecem ser moldados no início da vida. Os pesquisadores da UFCSPA acompanharam uma coorte de nascimento de crianças cujas mães participaram de um estudo separado que ofereceu um treinamento nutricional voltado a profissionais da saúde trabalhando em centros de saúde municipais em Porto Alegre. Na presente publicação, Valmórbida & Vitolo relatam que os hábitos alimentares infantis observados em sua coorte envolvendo idades entre 12‐16 meses projetam uma sombra sobre o consumo infantil de frutas e verduras por crianças de 2‐3 anos. Quanto maior a frequência de frutas consumidas aos 12‐16 meses, menor a probabilidade de uma criança em idade pré‐escolar relatar consumo inferior a uma porção diária de frutas.11 A introdução de bebidas com alto teor de açúcar foi inicialmente associada a uma menor chance de consumo de uma porção completa de verduras no futuro.11
Esses resultados possuem implicações sobre o modo como criamos estratégias para melhorar maus hábitos alimentares em crianças. Em uma análise sistemática e meta‐análise recentes, intervenções escolares, me média, produziram pequenas melhorias no consumo de frutas pelas crianças e uma pequena mudança no consumo de verduras.12 As barreiras quanto ao sucesso de qualquer programa escolar são infinitas,13 incluindo, entre outros, a necessidade de desenvolver intervenções que possam ser mantidas de forma acessível, além de um compromisso pontual.12 Os achados da Universidade de Porto Alegre sugerem que, para muitas crianças, os programas escolares podem abordar tardiamente quaisquer carências alimentares que traçam suas origens ao primeiro ano de vida.
Forças socioeconômicasPelo menos parte das desigualdades socioeconômicas bem documentadas, ainda existentes na qualidade da alimentação, pode ser explicada pelos maiores custos, de maneira geral, associados aos alimentos ricos em nutrientes.14 Esse fato possui implicações importantes sobre os esforços de saúde pública para melhorar a questão da nutrição em comunidades com poucos recursos, já que as intervenções que priorizam a educação e a tomada de decisões individual podem não ser efetivas, caso as famílias considerem hábitos mais saudáveis inacessíveis ou custos proibitivos.14 Argumenta‐se que, sem esforços correspondentes para melhorar os ambientes das comunidades, aumentando a disponibilidade de produtos frescos e acessíveis em bairros desfavorecidos, mudanças individuais no conhecimento e nas atitudes pouco contribuirão para desigualdades na saúde há muito pendentes.15
Contraintuitivamente, Valmórbida & Vitolo relatam que, dentre as famílias predominantemente de baixa renda participantes de seu estudo, atingir no mínimo um baixo nível de consumo de frutas pelas crianças esteve inversamente relacionado aos recursos financeiros do agregado familiar.11 As crianças de famílias que ganham quatro vezes mais que o salário mínimo mensal apresentaram uma menor chance de atingir uma porção completa de frutas que as crianças de famílias que ganham menos.11 Há controvérsias quanto a se famílias de baixa renda buscam maximizar o poder de compra adquirindo alimentos que oferecem maior quantidade de energia por custo unitário, considerando que hábitos alimentares supostamente mais saudáveis e de baixo consumo energético podem, de fato, custar menos em termos absolutos.16 Em famílias de baixa renda, melhores resultados da saúde infantil podem não exigir maiores gastos na alimentação infantil. Por exemplo, em um estudo brasileiro, famílias de crianças que não apresentaram cáries dentárias até os quatro anos de idade não apresentaram maiores gastos na alimentação de suas crianças.17 Na verdade, hábitos alimentares presumivelmente inimigos dos dentes, como maior ingestão de doces, tipo refrigerantes e chocolates, foram associados a maiores gastos pelo agregado familiar na alimentação das crianças.17 Valmórbida & Vitolo investigam se, em comunidades socioeconomicamente desfavorecidas, aumentos na renda familiar podem levar à substituição de alimentos básicos e tradicionais por opções altamente processadas e ricas em energia. Essa hipótese possui importantes implicações na área de saúde para nações como o Brasil, que buscam associar rápido crescimento econômico a um maior potencial de ganho para populações mais pobres.
A publicação atual da UFCSPA possui pontos fortes significativos. Os dados nutricionais foram coletados de forma prospectiva desde muito cedo, fornecendo uma oportunidade relativamente rara de examinar os padrões nos hábitos alimentares infantis em uma população de base comunitária com o passar do tempo. As porções diárias de frutas e verduras foram calculadas utilizando recordatórios alimentares de 24 horas e excluíram o consumo de batatas e suco de frutas, alimentos relativamente ricos em energia, porém não necessariamente ricos em nutrientes. Esse estudo possui limitações. Ao todo, 87 participantes, quase 20% da amostra potencial, foram excluídos devido à ausência de pelo menos um recordatório alimentar de 24 horas, o que reduziu o poder estatístico e pode ter adicionado um viés de seleção, caso os fatores que contribuíram para os dados ausentes não tenham ocorrido aleatoriamente. Os principais resultados do estudo – porções diárias de frutas e verduras – aceitaram qualquer fruta ou verdura consumida de qualquer forma (exceto batatas e suco de frutas) para representar uma porção acumulada. Essa é uma forma perfeitamente razoável de se realizar uma análise nutricional, principalmente se a maior parte das orientações dos especialistas enfatizar o aumento do consumo de frutas e verduras em termos de quantidades de porções. Contudo, também levanta uma questão relacionada à forma sobre como as recomendações são feitas ao público. Podemos questionar se determinados alimentados, como frutas em conserva e vitaminas, que comumente possuem grandes quantidades de açúcar refinado, devem ser consumidos na mesma proporção que opções com menores quantidades de açúcar e mais ricas em nutrientes, ao tentar atingir as recomendações quanto ao número de porções.18
Analisando mais à frenteEsses novos achados do sul do Brasil fornecem uma visão crítica sobre os fatores determinantes no início da vida a respeito do consumo de frutas e verduras nas crianças. Está claro que as primeiras experiências são relevantes ao moldar uma vida de alimentação saudável, e os resultados do estudo fornecem a esperança de que intervenções focadas na família, visando crianças e seus cuidadores na infância, terão um espaço importante no conjunto de medidas de saúde pública para redução da carga mundial de doenças relacionadas à nutrição. Contudo, assim como acontece com muitos esforços de saúde pública, aumentar o conhecimento e a conscientização da população‐alvo é apenas um passo no complexo processo de alcançar uma mudança de comportamento sustentável. Por exemplo, o estilo parental com o qual cuidadores tentam facilitar o consumo de frutas e verduras em suas crianças é um fator fundamental para determinar se os comportamentos alimentares das crianças responderão conforme pretendido.19
Além de determinantes familiares, melhorias em longo prazo no nível de consumo de frutas e verduras exigirão mudanças generalizadas nos cenários políticos e nutricionais.15 A forte comercialização de alimentos ricos em energia e não saudáveis é uma grande barreira para o aumento do consumo de frutas e verduras, e exigirá esforços coordenados entre os governos e outros interessados para aumentar a responsabilidade e limitar ou, de outra forma, conter essa comercialização.13 Uma política de alimentação saudável já está se formando no Brasil, onde padrões estão sendo constituídos para garantir que alimentos não processados e de origem local sejam servidos em escolas, porém ainda há grandes desafios no controle de propagandas de alimentos não saudáveis.20 Para a maior parte do mundo, os padrões de consumo de frutas e verduras estão longe de serem atingidos. O recente trabalho de Valmórbida & Vitolo sugere que um elemento‐chave para alcançar nossos objetivos nutricionais será atingir uma introdução precoce.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflitos de interesse.