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Vol. 95. Núm. 4.
Páginas 382-384 (julho - agosto 2019)
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Editorial
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Autoimmune hepatitis in children
Hepatite autoimune em crianças
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Fernando Alvarez
Centre Hospitalier Universitaire Sainte‐Justine (CHU‐Sainte Justine), Division of Gastroenterology, Hepatology and Nutrition, Department of Pediatrics, Montreal, Canadá
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A hepatite autoimune (HAI) é uma doença inflamatória do fígado secundária a uma perda de tolerância imunológica contra antígenos hepáticos, resulta na destruição progressiva do parênquima hepático.1 O artigo de Porta et al. nesta edição descreve as características clínicas, laboratoriais e histológicas de uma grande coorte de crianças com HAI, inclusive uma análise da resposta ao tratamento e desfecho.2 Este estudo multicêntrico apresenta os resultados de uma revisão retrospectiva de prontuários médicos de 828 crianças, representa a maior série da literatura mundial.

Uma das principais características da HAI é o seu curso flutuante, explica parcialmente o atraso entre os primeiros sintomas ou sinais e o diagnóstico da doença, retarda o início do tratamento imunossupressor e, por conseguinte, aumenta o risco de desenvolvimento de cirrose e insuficiência hepática.1 Na presente série, o tempo registrado entre o início e o diagnóstico foi de 11 e 15 meses para a HAI tipo 1 e tipo 2, respectivamente. Para evitar esse atraso, a HAI deve ser incluída no diagnóstico diferencial de qualquer anomalia hepática, desde a descoberta acidental de altos níveis séricos de transaminases até sinais de doença hepática crônica, tendo em mente que a melhoria parcial espontânea de sinais clínicos ou laboratoriais pode ocorrer durante o curso da doença. Claramente mostrado na tabela 2 do artigo de Porta et al.,2 o nível sérico normal da relação ALT/AST não elimina o diagnóstico de HAI. Principalmente em adolescentes, um aumento normal ou leve da relação ALT/AST está associado a uma leve inflamação na biópsia hepática.3

A hepatite aguda é a forma mais frequente da HAI, embora em alguns desses casos a fibrose hepática já esteja presente na biópsia hepática, indica uma evolução subclínica prévia.1–4 Nesta coorte, mais da metade das crianças apresentou hepatite aguda, tanto na HAI tipo 1 quanto no tipo 2. Além disso, mais de um terço apresentou sinais de insuficiência hepática e 3,6 a 10% das crianças apresentaram hepatite fulminante. A função hepática é mais frequentemente afetada no diagnóstico em crianças com HAI tipo 2.5,6

No seguimento dos pacientes relatados, uma colangiografia foi feita em pacientes com GGT alto durante o monitoramento da doença ou naqueles que não responderam ao tratamento. Essa não é a melhor abordagem; seria mais apropriado procurar ductos biliares anormais (colangite esclerosante) ao diagnóstico em todas as crianças com HAI tipo 1, com valores séricos de GGT > 7‐10 vezes os valores normais e/ou proliferação de neoductos na biópsia hepática, fibrose periductal ou dano do epitélio biliar. Também deve‐se considerar que 10 a 15% das crianças com sinais de HAI podem apresentar “colangite esclerosante de pequenos ductos”, nos quais apenas anomalias histológicas do ducto biliar são registradas, mas a colangiografia não mostra anomalias nos grandes ductos biliares.1,7

Doenças autoimunes extra‐hepáticas estão presentes em mais de 20% dos pacientes no momento do diagnóstico, mesmo que esses sejam pacientes muito jovens, como mostra Porta et al.2 Doenças autoimunes também são encontradas em parentes de primeiro grau, em proporções semelhantes. Além disso, na investigação inicial de crianças com HAI, é indicado procurar as doenças autoimunes extra‐hepáticas mais frequentes, principalmente aquelas que influenciam a escolha do medicamento imunossupressor a ser prescrito. Em crianças com diabetes, a prednisona não deve ser a primeira escolha, enquanto a ciclosporina deve ser evitada em crianças com glomerulonefrite.1

A possibilidade de HAI também deve ser suspeitada em crianças com aumento das enzimas hepáticas e com qualquer doença autoimune extra‐hepática. A inflamação intestinal na doença celíaca ou nas doenças inflamatórias intestinais, como a doença de Crohn ou a colite ulcerativa, frequentemente mostra um aumento de aminotransferases séricas no momento do diagnóstico. Na maioria dos casos, os aumentos dos níveis de ALT/AST são leves ou moderados e normalizam após o início do tratamento. Tais aumentos são o resultado de células T ativadas aprisionadas no fígado e que morrem por apoptose, a chamada hepatite bystander.8 No entanto, em algumas dessas crianças, testes hepáticos anormais são a manifestação de HAI, necessitam de tratamento específico. Pacientes com HAI compartilham alelos HLA de suscetibilidade e deficiência de IgA com pacientes com doença celíaca, bem como outras doenças autoimunes.9

A incidência de cirrose foi relativamente baixa na população relatada; isso pode ser devido ao fato de 20% dos pacientes não terem feito biópsia hepática e os motivos pelos quais não fizeram não foram descritos. A presença de insuficiência hepática pode impedir a biópsia do fígado em crianças com sinais de doença hepática crônica, explica a diminuição no número de pacientes registrados com cirrose. Outra possibilidade é um erro de amostragem, já que uma biópsia hepática com agulha nem sempre permite a identificação de nódulos. Em contraste, a fibrose foi encontrada em mais de dois terços das crianças na biópsia; infelizmente, o estágio da fibrose não é relatado no artigo. Não há característica histológica patognomônica da HAI; no entanto, a observação de plasmócitos no trato portal e a hepatite de interface são de grande ajuda, mas sua ausência não exclui o diagnóstico. O curso flutuante do processo inflamatório explica essa possibilidade.1,3

Autoanticorpos circulantes contribuem para a abordagem diagnóstica. Infelizmente, em cerca de 10% das crianças com HAI esses marcadores estão ausentes e os pacientes são classificados como portadores de HAI soronegativa.1 Em algumas dessas crianças, os autoanticorpos são detectados no fim do seguimento, principalmente após um episódio de recaída. A HAI soronegativa não foi incluída no presente relato, mas não deve ser ignorada, uma vez que essas crianças apresentam boa resposta a um tratamento imunossupressor. Não foram testados os autoanticorpos anti‐citosol hepático tipo 1 (LC1), foram excluídas desse estudo cerca de 10% das crianças com HAI tipo 2 que expressam apenas esse marcador.10 Os autores reconheceram esses vieses e que os dados do artigo não representam a real prevalência de HAI em pacientes pediátricos no Brasil.

O tratamento imunossupressor é indicado para o controle da inflamação do fígado. O tratamento padrão consiste na administração de prednisona ou a associação de prednisona e azatioprina, geralmente em doses de 2mg/kg/dia e 1,5 a 2mg/kg/dia, respectivamente.3,4,11 Outros medicamentos imunossupressores, como inibidores da calcineurina ou micofenolato mofetil, são considerados para pacientes com inflamação hepática cortico‐dependente ou cortico‐resistente, ou em pacientes cujo estado clínico contraindica a terapia padrão. Os inibidores de calcineurina também foram usados para induzir o controle da inflamação, foram posteriormente substituídos por corticosteroide e azatioprina em doses baixas.12 A budesonida (Entocort), um corticosteroide extraído principalmente na primeira passagem pelo fígado, tem sido proposta como uma alternativa para a prednisona.13 Entretanto, a eficácia da budesonida é menor do que a da prednisona como parte da terapia inicial; portanto, não é recomendada para esse uso em crianças.13 O objetivo do tratamento é obter uma remissão completa, que é avaliada como a normalização da ALT/AST sérica e da IgG plasmática (ou gamaglobulinas). Na maioria das séries pediátricas publicadas, a remissão completa é relatada entre 80 a mais de 90%. Nesta grande coorte, a remissão foi de 74,7%, relativamente baixa em pacientes com HAI tipo 1. Muitas especulações podem ser propostas para explicar tais resultados: 1) crianças com colangite esclerosante foram incluídas na análise, apesar de se saber que esses pacientes não respondem bem à imunossupressão; 2) a colangite esclerosante foi subdiagnosticada, uma vez que a colangiografia não foi feita para todos os pacientes com HAI tipo 1; e 3) as doses de prednisona foram menores do que as normalmente prescritas, mesmo que isso pareça menos provável, já que as crianças com HAI tipo 2 responderam conforme o esperado.

Os níveis de bilirrubina e índice internacional normalizado (INR) ou tempo de protrombina são fatores prognósticos da resposta ao tratamento, bem como a presença de cirrose.11 Os níveis de bilirrubina total e direta e a cirrose (fibrose) não foram estatisticamente significantes entre as HAI tipo 1 e 2, embora mais pacientes com HAI tipo 2 apresentem insuficiência hepática (INR > 1,5) e insuficiência hepática fulminante (não definida nesse trabalho). No entanto, crianças com HAI tipo 2 apresentaram uma resposta melhor e mais rápida à imunossupressão. Além disso, a porcentagem de crianças que necessitaram de transplante de fígado foi semelhante na HAI tipo 1 e tipo 2, embora quase o dobro de pacientes com HAI tipo 1 tenha morrido durante a evolução. Estudos prospectivos ou de revisão dos dados já coletados podem fornecer algumas respostas a esses resultados intrigantes, se observarmos que a maioria dos trabalhos publicados considera a HAI tipo 2 em crianças como uma doença mais grave.

O trabalho de G. Porta et al. publicado nesta revista representa um esforço gigantesco, requer uma forte liderança e uma grande dedicação de todos os autores. Mesmo que esse estudo mostre uma série de deficiências menores devido à sua natureza multicêntrica retrospectiva, ele pode ser considerado uma importante contribuição para o conhecimento da HAI em crianças. Esse tipo de trabalho permite o compartilhamento de critérios entre os participantes, uniformiza as abordagens de diagnóstico e tratamento e a elaboração de estudos prospectivos para responder muitas das questões levantadas.

Conflitos de interesse

O autor declara não haver conflitos de interesse.

Referências
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Como citar este artigo: Alvarez F. Autoimmune hepatitis in children. J Pediatr (Rio J). 2019;95:382–4.

Ver Porta et al. nas páginas 419‐27.

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